A criadora está a celebrar os 20 anos da fundação de O Rumo do Fumo, estrutura artística de Lisboa que lançou em 1999 para produzir os seus trabalhos, e, a propósito da efeméride, apresentará um conjunto de atividades e espetáculos até 2020.
"A ideia de que um país precisa de cultura, e que é um bem essencial da vivência dos cidadãos, desapareceu, e é muito inquietante", alertou a coreógrafa, entrevistada pela agência Lusa.
Numa conversa em que recordou o seu início de carreira, a forte ligação à natureza, e também abordou os apoios às artes e a política cultural, Vera Mantero conclui que “o mais importante é a visão que se tem de um país, e do papel da cultura na vida dos cidadãos".
"A partir do momento que isso não está no centro da discussão e da visão do que é um país, quem vai querer financiar a cultura?", questionou a fundadora de uma estrutura artística que tem trabalhado na criação, produção, difusão e investigação da dança contemporânea.
Mantero considera que o apoio que existe na cultura, em Portugal, "é, de facto ínfimo, e diminuto, e não se percebe a razão porque com governos supostamente de esquerda, e também de direita, chegamos à conclusão que ninguém está interessado na cultura".
"Tivemos uma campanha eleitoral em que a cultura estava completamente ausente, e não faz parte das preocupações de ninguém, não é motivo de discurso de ninguém", observou, sobre as últimas eleições legislativas.
Face a este diagnóstico, conclui que "um ministro ou uma ministra vão ter dificuldade em reivindicar verbas para a cultura".
Questionada sobre o caso específico de O Rumo do Fumo, em Lisboa, explicou que criou esta estrutura "por razões muito práticas".
"Eu já estava em atividade há dez anos, durante um tempo com o Fórum Dança e também com a Eira, que produziram o meu trabalho, mas o volume de atividade foi aumentando, de ambas as partes, e percebi que tinha mesmo de ter a minha própria estrutura", recordou.
O Rumo do Fumo tem recebido apoios, inicialmente através dos concursos anuais da Direção-Geral das Artes e, mais recentemente, dos concursos bienais.
"Durante a época da crise foi cortado pela metade. Houve anos complicados e ainda não voltámos ao que era antes da crise, mas tem vindo a recompor-se", declarou à Lusa.
Ainda sobre os concursos, tem uma opinião crítica: "É uma história muito complicada. Os media têm falado bastante sobre isso, e é um processo nada fácil. Fazer as candidaturas é muito duro, e depois há também os relatórios. Trazem um peso de trabalho extra para as estruturas artísticas, mas percebo que é preciso prestar contas. No entanto, noutros países não é tão complicado, como no Reino Unido", exemplificou, recordando a sua experiência de trabalho nesse país.
"A complexidade é muito elevada, mas os valores financeiros não são assim tão elevados. Há uma desproporção entre a dificuldade do processo, e os apoios", lamenta a coreógrafa, que estudou dança clássica com Anna Mascolo, e fez parte do Ballet Gulbenkian, entre 1984 e 1989, tornando-se num dos nomes centrais da Nova Dança Portuguesa.
Para Vera Mantero, "a cultura é fundamental porque é a maneira de entender o mundo onde estamos, e de ter vivências que não sejam só estritamente materialistas e utilitárias".
"Cultura é tudo o que tem a ver com imaginação, 'sensorialidade', com o entendimento do que está à nossa volta. Tudo isto são coisas que tornam uma vida enriquecida, densificada. Se se tirar isso, é pobre", defendeu.
A coreógrafa vai apresentar a peça "O Limpo e o Sujo", sobre a sustentabilidade do planeta, a 29 e 30 de novembro, na Culturgest, em Lisboa, para assinalar os 20 anos de O Rumo do Fumo.
As preocupações ecológicas são uma constante na carreira desta criadora. No ano passado, participou, pela segunda vez, num projeto desenvolvido no Brasil, na região da Amazónia, onde artistas de todo o mundo estiveram a realizar 'workshops' que ligavam a arte e a natureza.
Vera Mantero acredita que a arte pode dar um contributo para combater a crise climática: "Pode ajudar através de alertas, difundir uma mensagem. Aliás, os teatros nacionais já começaram também a fazer esse trabalho, reduzindo os gastos energéticos".
"Mas o que tem de ser feito para travar este processo dramático não vai lá só com arte. São necessárias medidas agressivas", defendeu.
Até julho de 2020, O Rumo do Fumo irá apresentar um programa de celebração, que reúne um conjunto de atividades próprias, entre as quais a festa de aniversário a ter lugar no dia 14 de dezembro no Espaço da Penha e para a qual estão planeadas diversas apresentações em Portugal (Lisboa, Porto, Viseu, Guimarães), e no Uruguai (Montevideu).
Ao longo destes dez meses vão também destacar um conjunto de projetos produzidos pel’O Rumo do Fumo que serão apresentados em instituições parceiras, entre os quais “O Limpo e o Sujo”, de Vera Mantero, “Era um peito só cheio de promessas”, de Miguel Pereira, “Ma vie va changer”, de Nuno Lucas, e “Dias Contados”, de Elizabete Francisca.
Vera Mantero iniciou a carreira coreográfica em 1987, e mostrou o seu trabalho um pouco por toda a Europa, Argentina, Uruguai, Brasil, Canadá, Coreia do Sul, Estados Unidos e Singapura.
Desde 2000, dedicou-se também ao trabalho de voz, cantando repertório de vários autores e cocriando projetos de música experimental.
Em 1999, a Culturgest organizou uma retrospetiva do seu trabalho, intitulada "Mês de Março, Mês de Vera".
Representou Portugal na 26.ª Bienal de São Paulo, em 2004, com "Comer o Coração", projeto criado em parceria com o escultor Rui Chafes.
Em 2002, foi-lhe atribuído o Prémio Almada, do Instituto Português das Artes do Espetáculo/Ministério da Cultura, e, em 2009, o Prémio Gulbenkian Arte, pela sua carreira como criadora e intérprete.
*Por Ana Goulão, da agência Lusa
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