Estas “promessas vazias e falsas”, feitas por governos de países desenvolvidos e por grupos como o G7 ou o G20 constituem “uma das maiores traições do nosso tempo”, sublinha a organização humanitária no seu relatório anual sobre a situação dos direitos humanos no mundo, hoje divulgado.
No documento, a organização conclui que os Estados mais ricos, juntamente com os grandes grupos económicos internacionais, “aprofundaram a desigualdade global” devido a uma “perniciosa ganância corporativa, a um brutal egoísmo nacional e ao abandono das infraestruturas públicas de saúde por governos de todo o mundo”.
Segundo a organização, foi incutida “a esperança de que as vacinas acabariam com os estragos da pandemia” e que a recuperação tornaria o mundo melhor, mas “tais promessas foram quase sempre em vão” e “alguns governos até intensificaram a exploração da pandemia para consolidar as suas posições”.
“O ano de 2021 deveria ter sido um ano de cura e recuperação, mas, em vez disso, fez nascer uma desigualdade mais profunda e uma maior instabilidade, um legado corrosivo para os próximos anos”, criticou a secretária-geral da Amnistia Internacional, Agnès Callamard.
“A trágica traição”, como sublinhou a responsável afetou o mundo inteiro, mas “as principais consequências foram suportadas pelas comunidades mais marginalizadas, incluindo aquelas na linha de frente da pobreza endémica”.
Apesar de haver produção suficiente para vacinar toda a população mundial em 2021, apenas menos de 4% da população dos países mais pobres recebeu o regime completo até ao final do ano.
“Nas cimeiras do G7 [grupo dos 7 países mais industrializados], G20 [as 19 maiores economias do mundo mais a União Europeia] e COP26 [Conferência das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas], os líderes políticos encheram a boca com promessas de que poderiam gerar uma grande mudança no acesso à vacina, bem como reverter a falta de investimento em proteção social e enfrentar o impacto das mudanças climáticas”, enquanto os dirigentes das grandes empresas farmacêuticas e de tecnologia prometiam “responsabilidade social”, afirmou Agnès Callamard.
Países ricos como os Estados-membros da União Europeia, Reino Unido e Estados Unidos acumularam mais doses de que as que precisavam, enquanto “olhavam para o outro lado” quando as grandes farmacêuticas “punham os seus lucros à frente das pessoas”, recusando-se a partilhar a tecnologia e permitir maior distribuição de vacinas, condena a Amnistia.
A Pfizer, a BioNTech e a Moderna preveem lucros exorbitantes de cerca de 50 mil milhões de euros referentes a 2021, mas a quantidade de vacinas oferecidas aos países mais pobres não chega a 2% do total do que produziram, sublinha a organização que acrescenta que as farmacêuticas não foram os únicos gigantes corporativos a preferir fazer mais lucros a ajudar a recuperação de mais população.
“Empresas de redes sociais como o Facebook, o Instagram ou o Twitter forneceram terreno fértil para a desinformação sobre a covid-19, permitindo que as hesitações em tomar as vacinas crescessem”, acusa a Amnistia.
Estas empresas “permitiram que os seus algoritmos espalhassem desinformação prejudicial sobre a pandemia, preferindo o sensacionalismo e a discriminação à verdade”, acrescentou Agnès Callamard, referindo “a magnitude dos ganhos que obtiveram com a desinformação e o impacto que isso teve na vida de milhões de pessoas”.
De acordo com as conclusões do relatório, enquanto muitos países do hemisfério sul sofriam com “o conluio” entre gigantes corporativos e governos ocidentais, a devastação foi agravada pelo colapso dos sistemas de saúde, já negligenciados há décadas.
“Em nenhum lugar isso foi mais claro e cruelmente observado do que na África, razão pela qual a Amnistia Internacional decidiu, este ano, apresentar o seu relatório na África do Sul”, explica.
No documento, a Amnistia também critica a fraca resposta internacional face à multiplicação de conflitos registados no ano passado.
“Em 2021, novos conflitos eclodiram e os não resolvidos persistiram no Afeganistão, Burkina Faso, Etiópia, Israel e Territórios Palestinianos Ocupados, Líbia, Myanmar e Iémen, em que as partes opostas violaram o direito internacional e o direito internacional humanitário”, refere o documento, sublinhando que “a população civil se tornou um dano colateral, tendo milhões de pessoas sido deslocadas, milhares morrido e centenas sofrido violência sexual”.
A ineficácia da resposta internacional a estas crises ficou clara pela paralisação do Conselho de Segurança da ONU, que não agiu em relação às atrocidades cometidas em Myanmar (antiga Birmânia), nem às violações dos direitos humanos no Afeganistão ou aos crimes de guerra na Síria.
“Esta inação vergonhosa, a paralisia contínua de organizações multilaterais e a ausência de prestação de contas dos Estados poderosos contribuíram para preparar o terreno para a invasão da Ucrânia pela Rússia, que violou flagrantemente o direito internacional”, concluiu a Amnistia Internacional.
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