Olhamos para o rankig feminino de futebol da FIFA e a bandeira norte-americana, no topo, a coroar a lista, parece um corpo estranho para quem não acompanhe futebol feminino. Mas mesmo quem acompanha e sabe que há vários anos que este lugar é ocupado, ora pelos EUA, ora pela Alemanha, o pode estranhar.
Quando pensamos em desporto e em Estados Unidos da América vêm-nos umas quantas modalidades à cabeça até chegarmos ao soccer. Aliás, o facto de do outro lado do oceano Atlântico se chamar soccer ao futebol dá uma grande pista sobre a popularidade desta modalidade nesse país.
Mas se é verdade que no setor masculino essa tendência nunca se inverteu - o futebol aparece como quarto desporto mais popular atrás de basebol, futebol americano e basquetebol -, no feminino a conversa é outra. Por isso, quando vemos a bandeira dos Estados Unidos acima de países como a Alemanha, Inglaterra ou França, de larga tradição no futebol, temos de perceber como é que viemos aqui parar.
A grande pergunta é esta: como é que um país que no futebol masculino tem uma seleção que soma no seu palmarés apenas seis Gold Cups, a competição organizada pela CONCACAF, que rege a modalidade na América do Norte e Centro, que nos últimos dois Mundiais não passou dos oitavos de final, cuja melhor prestação num Campeonato do Mundo remonta à primeira edição da competição, em 1930, com um terceiro lugar, tem uma seleção feminina que é número um do mundo, conquistou quatro Mundiais, quatro medalhas de ouro nos Jogos Olímpicos e três Golden Cup?
Tudo terá começado na década de 70, quando, em 1972, foi aprovada a Title IX, uma lei federal de direitos civis que proibia a discriminação baseada no género nas instituições educativas. Tal lei obrigou a um investimento em programas desportivos escolares e universitários para mulheres que, na altura, eram praticamente inexistentes.
Havia algo a fazer: diminuir a discrepância entre o número de atletas masculinos e femininos. Nesse sentido, as escolas e universidades fizeram um simples exercício de matemática e perceberam que criar equipas de futebol, que integravam um grande número de atletas, iria acelerar esse processo de equilíbrio.
A partir daí criou-se um movimento que foi crescendo aos ombros do sucesso. Quando em 1991 a seleção norte-americana de futebol venceu o primeiro Campeonato do Mundo feminino, várias marcas como a Nike a Umbro, começaram a associar-se à equipa oferendo uma visibilidade cada vez maior ao futebol feminino nos EUA.
Mas o ponto alto desta história acontece em 1999, ano de Mundial feminino, edição essa organizada pelos Estados Unidos e que culminou com uma final entre a seleção anfitriã e a China num estádio repleto. No Rose Bowl, em Pasadena, na Califórnia, estavam mais de 90 mil espetadores, uma assistência que ainda hoje se mantém um recorde no futebol feminino. A mítica final terminou empatada a zeros e teve de ser decidida através do desempate por grandes penalidades. Com cinco penáltis convertidos, contra apenas quatro, os EUA foram campeões do mundo pela segunda vez.
Aquele que é ainda hoje considerado o maior evento do desporto feminino nos Estados Unidos, fez com que cada rapariga sonhasse ser futebolista. Em termos práticos e desportivos: maior popularidade significou mais talento disponível para ser trabalhado e para manter o nível de conquistas. Se a primeira conquista de um Mundial em 1991 tinha feito disparar o número de atletas para mais de 120 mil, a vitória em 1999 mais do que duplicou este número para 250 mil futebolistas. Um número que, na altura, representava 20% do universo de atletas femininas nas universidades e que fez com que o futebol ultrapassasse o basebol e se tornasse no terceiro desporto mais popular entre as norte-americanas, apenas superado pelo futebol americano e o basquetebol.
Assim, a seleção norte-americana beneficiava de um aumento de popularidade nos Estados Unidos e tinha cada vez mais talento disponível, o que era uma grande vantagem se pensarmos que países de grande tradição futebolística baniram o futebol feminino durante vários anos. É exemplo disso a Inglaterra, que o fez devido à guerra, entre 1921 e 1971, o Brasil, que por considerar que o futebol não era compatível com a condição da mulher proibiu o desporto entre 1941 e 1981, Alemanha, que, seguindo uma ideia semelhante à do governo brasileiro, baniu a prática feminina da modalidade entre 1955 e 1970. De acordo com a FIFA, em 1971 só havia três seleções femininas, e nesse ano só ocorreram dois jogos internacionais.
Com este contexto internacional, os Estados Unidos detinham uma certa dose de hegemonia e que ainda é visível nos dias de hoje. Em 2006 existiam três milhões de jovens futebolistas em todo o mundo. Mais de metade delas nos EUA. Este valor pesa nos dias de hoje: de acordo com um estudo realizado pela FIFA em 2014, 53% das jogadoras federadas de futebol feminino estão nos Estados Unidos e Canadá.
Este domingo, a seleção feminina norte-americana sagrou-se campeã do mundo pela quarta vez, a segunda consecutiva. Portanto, qual é a resposta à pergunta que dá título a este artigo? Primeiro ponto, os Estados Unidos têm um projeto há muito desenhado, que ganhou uma grande popularidade e adesão no final do século XX, o que enraizou o desporto na cultura desportiva feminina. Segundo, o resto do mundo demorou muito tempo até investir no futebol feminino, o que criou uma grande discrepância entre os Estados Unidos e o resto do mundo. Elas sabem-no, não se fazem rogadas e continuam a vencer.
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