Preços baixos e promessas de “tratamentos quase milagrosos” atraem portugueses para fazer intervenções estéticas, tratamentos dentários, implantes capilares, cirurgia bariátrica, em países como a Turquia, Venezuela ou Brasil, correndo risco de complicações sérias por falta de acompanhamento no pós-operatório.
“Os doentes vão à procura daquilo que é o melhor para eles, mas, muitas vezes, o que parece melhor no primeiro contacto revela-se um pesadelo”, disse à agência Lusa David Ângelo, diretor clínico do Instituto Português da Face, onde já recorreram doentes após intervenções mal sucedidas no estrangeiro.
Contou o caso grave de um doente que foi para a Venezuela para realizar uma cirurgia ortognática (para corrigir deformidades ósseas na face e nos maxilares) e teve uma “complicação muito séria”, que o obrigou a ser transportado “ainda em estado pós-operatório” de avião para Portugal para ser tratado.
“Isto é uma situação gravíssima que aconteceu e pôs em risco a vida dele e, às vezes, é por uma diferença em termos financeiros, muito pequena”, disse David Ângelo, nas vésperas do Dia Mundial do Doente.
O Ministério dos Negócios Estrangeiros informou que as representações diplomáticas portuguesas na Turquia e na Venezuela não receberam contactos de portugueses com problemas decorrentes dos tratamentos, mas estão cientes da situação, havendo até um alerta no Portal das Comunidades Portuguesas.
Na página sobre a Turquia é referido que se trata de “um destino popular de turismo médico”, avisando que a Embaixada de Portugal em Ancara não oferece assistência legal ou financeira em caso de conflito com prestadores de saúde.
A embaixada recomenda que os cidadãos consultem o médico em Portugal antes de viajar, informando-se sobre os riscos, benefícios e custos do tratamento. Além disso, é aconselhado a garantir que os prestadores de cuidados médicos estejam credenciados e a pedir um acordo escrito com todos os detalhes do tratamento e pós-operatório.
Estas recomendações também são feitas pelos bastonários da Ordem dos Médicos, Carlos Cortes, e da Ordem dos Médicos Dentistas, Miguel Pavão, e pela e Entidade Reguladora da Saúde (ERS).
Apesar de não ter competência sobre os casos em que as pessoas viajam para o estrangeiro “a título totalmente particular”, sem qualquer referenciação, a ERS realça que, sendo tratamentos cirúrgicos e invasivos, é importante garantir que as condições sejam seguras e que os utentes recebam todas as informações necessárias para tomar decisões informadas.
Quanto ao acompanhamento e complicações após cirurgias no estrangeiro, a ERS afirma que os utentes têm direito a cuidados de saúde no SNS.
É com “alguma frequência” que o Centro de Responsabilidade Integrado do Tratamento Cirúrgico da Obesidade (CRITCO) da ULS São José (Lisboa) recebe doentes que fizeram cirurgia bariátrica na Turquia, Espanha e Brasil ser qualquer avaliação ou preparação prévia.
Quando regressam a Portugal os doentes procuram habitualmente o médico de família que os reencaminha para o CRITCO, onde todos, “sem exceção”, são acompanhados multidisciplinarmente e realizam exames para avaliar o seu estado de saúde, já que o sucesso da cirurgia depende da abordagem antes e após a operação.
“A cirurgia isolada não tem sucesso a longo prazo”, refere a instituição, sublinhando que “as complicações cirúrgicas graves do pós-operatório são felizmente pouco frequentes”.
O bastonário dos dentistas alerta para os pacotes turísticos oferecidos fora da União Europeia com preços “muito apetecíveis” que incluem tratamentos médicos e dentários “quase milagrosos em tempo recorde” que acabam por ter “desfechos desastrosos”.
“Os doentes veem imagens, apenas do antes e do depois, e não percebem bem a evolução dos tratamentos e nem pensam também nas consequências”, realçou Miguel Pavão.
Carlos Cortes alerta, por seu turno, que embora possam surgir complicações em qualquer tratamento, é essencial as clínicas terem capacidade de as resolver, o que nem sempre acontece.
Os doentes acabam por recorrer a hospitais em Portugal, mas por vezes é complicado para os médicos porque desconhecem os procedimentos feitos no estrangeiro.
“É absolutamente essencial e necessário que o médico que trata essa situação conheça o historial, saiba exatamente aquilo que aconteceu, e, em muitos casos, isso pode ser difícil, porque não tem acesso a essa informação”, vincou Carlos Cortes.
ERS alerta para falta de regulamentação em publicidade a tratamentos médicos fora da UE
Contactada pela Lusa, a ERS explicou que as práticas publicitárias relacionadas com cirurgias e tratamento realizados fora da UE não possuem regulamentação específica.
Contudo, afirma que poderá intervir e instaurar processos contraordenacionais se a intermediação para este tipo de prestação de cuidados de saúde no estrangeiro for promovida por um prestador de cuidados de saúde sujeito à sua regulação.
No que respeita a reclamações de doentes e instituições, a ERS esclarece que não tem indicadores específicos que permitam identificar estas práticas.
O regulador da saúde aconselha os utentes a informarem-se sobre as condições do local, do equipamento e da equipa médica onde se vai realizar o procedimento no estrangeiro, para garantir a sua segurança.
Este apelo também é feito pelos bastonários e por David Ângelo que alertam ainda para a importância de ter “um bom seguro de saúde” que cubra eventuais problemas que careçam de internamento, cuidados intensivos ou mesmo resgate para Portugal.
“Se eu for operado num país, como nos Estados Unidos, onde tudo é privado, em que só para entrar num bloco operatório custa quase 50 mil euros, isto pode arruinar a vida de alguém”, alertou o cirurgião, sublinhando que as pessoas precisam de adquirir consciência que os cuidados de saúde nesses locais são “completamente distintos” dos de Portugal e que “não há responsabilização de ninguém”.
David Ângelo frisou que este é um “tema sensível” numa área “um bocadinho cinzenta até em termos legais”, defendendo que é preciso caminhar para haver “uma abordagem mais clara e mais transparente para defender os direitos dos doentes”.
No entender de Miguel Pavão, as pessoas já estão mais conscientes dos riscos destes tratamentos, mas observa que “há um contínuo aliciamento” de entidades estrangeiras que acabam por encontrar formas de marcar presença em Portugal para tentar persuadir os doentes a irem ao estrangeiro procurar um "tratamento quase milagroso".
* Helena Neves e Sandra Moutinho, da agência Lusa
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