No princípio tudo parece fácil, o seguro é do melhor que há, cobre tudo, de roubo a danos acidentais, mas quando chega a altura de acionar a apólice a resposta é um redondo não. Ao SAPO24 chegaram diversos relatos, mas a desculpa das letras pequeninas já não serve e há práticas de venda que são ilegais.
Manuel sentiu-se enganado quando precisou de recorrer ao seguro para smartphones da Assurant Europe Insurance, sediada em Amesterdão, nos Países Baixos, e descobriu que o furto só está segurado quando "praticado por quem faça da prática destes crimes o seu modo de vida". "Como é que se prova isto, vai-se às Finanças?", ironiza.
Nem os advogados contactados pelo SAPO24 conseguem esconder uma gargalhada quando se mostra esta cláusula. E recordam que, no âmbito da defesa do consumidor, quem está a vender os seguros também tem regras de conduta. O prestador de serviços pode ser responsabilizado por violação do direito à informação ou prestação de informação falsa ou incompleta.
Mafalda desconhecia a diferença entre roubo, furto e furto qualificado, uma realidade que descobriu a duras penas, num posto da PSP e já depois de apresentar a queixa por escrito. "Para mim, um ladrão é um ladrão e roubar é roubar", escandaliza-se.
Só que não. Juridicamente, roubo (com violência) e furto, que pode ser simples (sem deixar vestígios) ou qualificado (com arrombamento), significam crimes diferentes. Foi o polícia de serviço quem chamou a atenção, e ainda comentou: "Não me parece que a seguradora vá pagar". É que casos como este são às centenas.
O seguro que fez para o iPhone da filha custa 191,88 euros por ano. Quando foi comprar o telemóvel, o funcionário que a atendeu garantiu que estava tudo coberto e até exemplificou: "Imagine que agora enquanto estamos a falar pousa o telemóvel no balcão, alguém passa e o leva. O seguro cobre", conta Mafalda.
Mas a seguradora, a Domestic & General Insurance, sucursal em Espanha, diz o contrário: não cobre furto, apenas roubo. Isto apesar de o Documento de Informação sobre o Produto de Seguros indicar o furto como segurado. E como risco não segurado também.
A verdade é que Mafalda está há dois meses numa correria, cartas e e-mails para trás e para a frente, mas a seguradora continua a dizer que não paga. A loja da Worten onde fez a compra, por sua vez, também não se responsabiliza.
Francisco também teve um problema, água em cima do telemóvel comprado na MediaMarkt. O documento de informação garante logo na primeira linha dos "riscos segurados" o "dano acidental, inclusive os danos decorrentes ou causados por líquidos e humidade". Não serviu de nada, e foi assim que perdeu o dinheiro do seu primeiro salário.
Esta é uma situação que tem vindo a preocupar a DECO, que já denunciou histórias do género. Como a de Cristina, que comprou um portátil para o filho e, no momento em que quis acionar o seguro, devido ao derrame de leite no teclado, recebeu como resposta que estavam incluídos acidentes com líquidos desde que não fossem corrosivos (como se o leite fosse corrosivo). Acabou por pagar da sua carteira o arranjo de 120 euros.
Depois de analisar uma série de apólices, a DECO concluiu que "as cláusulas abusivas são muitas" e "as exclusões são tantas que o seguro se torna inútil". Na verdade, muitos destes seguros não cobrem mais do que aquilo que está está previsto na garantia legal dos eletrodomésticos, que desde o início de 2022 é de três anos, em vez dos dois anos anteriores.
Apesar de os seguros não serem de subscrição obrigatória, os testemunhos revelam que as lojas tentam persuadir o comprador a contratar o seguro, o que em muitos casos configura a prática de "venda agressiva", vindo a verificar-se um desfasamento entre as condições anunciadas e as condições reais.
O número de queixas na DECO relativo a 2022 "ainda não está fechado", mas a associação de defesa do consumidor garante que se o número de reclamações o justificar "avaliará medidas concretas", o que poderá incluir uma ação coletiva contra seguradoras e lojas que vendem os seguros em causa.
Contratos podem ser anulados e aplicadas coimas
A Autoridade Supervisora de Seguros e Fundos de Pensões (ASF) tem consciência deste tema. Contactada pelo SAPO24, garante que "tem emitido entendimentos sobre o tema, solicitando a adequação das cláusulas contratuais sempre que se verifique que alguma pode potenciar a falta de clareza quanto à cobertura ou a sua restrição" e "desvirtue a natureza do risco coberto".
E dá o exemplo da cobertura de furto ou roubo e prazo de participação às autoridades (ASF - Cobertura de furto ou roubo em seguros multirriscos e prazo para participação às autoridades competentes). O problema, é que não passa de uma recomendação.
A ASF salienta, no entanto, que "o mediador de seguros ou a empresa de seguros estão obrigados a informar o cliente, de acordo com a complexidade do produto proposto e com o tipo de cliente, sobre o contrato mais conveniente à transferência do risco".
E lembra que "a questão da utilização de “letras pequenas” foi alterada desde a entrada em vigor do regime jurídico do contrato de seguro, em 2009. As apólices devem assim apresentar em carateres destacados e de maior dimensão do que os restantes, nomeadamente, as cláusulas que estabeleçam o âmbito das coberturas, designadamente a sua exclusão ou limitação, que é o que aqui parece estar em causa".
Por isso, e "sem prejuízo do regime legal aplicável prevenir as situações descritas, pode verificar-se um comprovado incumprimento dos deveres de informação a que as empresas de seguros, os respetivos mediadores de seguros ou mesmo os tomadores de seguros de grupo estão sujeitos. Nesses casos, além de o incumpridor incorrer em responsabilidade civil e de algumas faculdades que a lei confere para a resolução ou redução do contrato ou consideração de determinadas cláusulas como nulas, poderão advir para as entidades sob supervisão da ASF responsabilidades contraordenacionais".
No limite, assegura o supervisor, "a prática descrita pode, de facto, configurar uma prática comercial desleal, com as inerentes consequências civis e contraordenacionais".
Além das competências de regulação e supervisão, cabe à ASF apreciar as reclamações que lhe sejam submetidas - desde que não estejam pendentes noutras instâncias (como mecanismos alternativos de resolução de litígios ou tribunais) -, embora não tenha competências para intervir na fixação do valor da indemnização.
Outra alternativa é o CIMPAS - Centro de Informação, Mediação, Provedoria e Arbitragem de Seguros, que permite mediar conflitos de seguros de forma mais simples, mais célere e mais barata do que o recurso a tribunais. Em Lisboa, Porto e Coimbra, por exemplo, o tempo médio de resolução é de quatro meses - em Évora ou Albufeira poderá ser um pouco mais.
O recurso ao CIMPAS (apenas conflitos até 5 mil euros) pode ter duas fases, a primeira de mediação, com tentativa de obtenção de acordo, a segunda de arbitragem, com audiência de julgamento. São cobradas despesas processuais correspondentes a 3% do valor reclamado (para um prejuízo mínimo de 70 euros e máximo 700 euros).
Na capital existe ainda o Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo de Lisboa, que na fase de mediação pode custar entre dez e 50 euros.
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