A crescente vaga de migrantes indianos, em geral com menos qualificações e canalizados para trabalhos mais sazonais, nos setores da agricultura e da construção, não é a primeira.
Antes, houve pelo menos dois grandes fluxos para Portugal, um primeiro decorrente da anexação da colónia portuguesa de Goa pela Índia, em 1961 — invasão para uns, libertação para outros. E um segundo após o 25 de Abril de 1974, oriundo de Moçambique (sobretudo) e de Angola.
Segundo o relatório de asilo e migrações do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) relativo a 2019, existem 17.619 cidadãos estrangeiros de origem indiana em Portugal, dois terços dos quais homens.
Jesus Lee Fernandes, 42 anos e chegado a Portugal com 14, não consta desta estatística. É goês e, como quase todos, também tem nacionalidade portuguesa — quase 500 anos de presença lusa em Goa garantem antepassados para o efeito.
Da cozinha do seu restaurante em Lisboa, “Jesus é Goês”, saem pratos de paladar intenso. O proprietário-chef vai logo avisando que quem não gostar de picante está no sítio errado. Mas garante que a malagueta verde — levada pelos portugueses para Goa — é um picante diferente, que não contamina o sabor.
“Saber misturar bem as especiarias” é o segredo de uma gastronomia que se generalizou chamar de indiana, mas que é muito diversa, e que ganha corpo numa centena de restaurantes em Portugal.
À mesa, Virgínia Brás Gomes, goesa de outra geração, está pronta para saborear os petiscos de Jesus e comentar as tradições gastronómicas da ex-colónia portuguesa, agora o menor em tamanho e um dos menos populosos estados indianos, ainda que rico em PIB per capita.
Conselheira da direção-geral da Segurança Social, Virgínia, com 70 anos e há praticamente 50 em Portugal, mantém raízes em Goa, onde vive a mãe, que visitava regularmente antes da pandemia.
Ambos estão preocupados com a evolução da pandemia de covid-19 na Índia e lamentam que esta tenha invalidado a vinda a Portugal do primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, para encontros com a União Europeia (UE), a que Portugal preside até final de junho.
Os ‘bojés’ — que “parecem pastéis de bacalhau”, mas são de farinha de grão — chegam acompanhados por chutney de coco fresco, coentros, alho, tamarindo, sal, sumo de limão e malaguetas. Seguem-se os ‘bhajituri’, pãezinhos de massa integral e sal, que se comem recheados, no caso com batata, sementes de mostarda, curcuma (ou açafrão-da-índia), cominhos e malagueta.
Para pratos principais, Jesus preparou caril de camarão com quiabos e cafreal de frango, que aportuguesou ao fazê-la mais malandra do que em Goa. “Aqui as pessoas gostam de comida com molho”, justifica.
O arroz branco que tudo acompanha tem de ser sempre farto à mesa — se começa a escassear é reposto imediatamente, mesmo que não se coma. A sobremesa resulta de uma “invenção” — chamuça de tâmara com gelado de gengibre e cardamomo.
“Os portugueses comem mais comida goesa do que os próprios goeses aqui e aguentam mais o picante. O goês come uma malagueta começa a transpirar, o português não transpira”, rejubila Jesus, que veio para Portugal porque quis e não se arrepende.
Jesus é fã da comida portuguesa, “bastante rica”, mas acrescenta-lhe “um toque goês”. Abriu o restaurante em plena crise, há mais de uma década, e não sabe se conseguirá dar a volta ao prejuízo da pandemia. Mas está otimista — o restaurante tem a proteção do deus Ganesha, da fortuna e prosperidade, que, na crença dos hindus, remove os obstáculos.
Jesus e Virgínia estão entre os 15 mil goeses contabilizados pela Embaixada da Índia em Portugal.
Virgínia chegou com 19 anos, pouco antes do 25 de Abril de 1974. Jesus veio em 1994 e não tinha relação nenhuma com Portugal. Foi bem acolhido e foi ficando.
“Você é indiano? Não, sou goês. Somos diferentes do resto da Índia. Goa é uma mistura do português com o indiano. Há uma diferença muito grande, culturalmente, pessoalmente, até na gastronomia. Indiano sentir-me-ia sempre em último lugar. Primeiro português, depois goês, já vivi mais anos em Portugal do que em Goa”, reflete.
Com uma carreira internacional – representou Portugal no Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas -, Virgínia sente-se cidadã do mundo e não tem “tanta certeza assim” sobre uma identidade goesa.
“Talvez tivéssemos ficado com as melhores coisas das duas culturas [a indiana e a portuguesa]”, arrisca dizer. “Tenho alguma dificuldade em dizer que sou portuguesa primeiro, indiana primeiro, goesa primeiro… sinto-me mais confortável sabendo que tenho várias filiações”, confessa.
Mas os dois concordam nas saudades: da chuva, da trovoada, do cheiro a terra molhada. Jesus até se arrepia, só de pensar.
“Gosto de tudo em Portugal, não há nada de que não goste. Gosto da comida, gosto das pessoas, gosto da língua portuguesa, é complicada, mas gosto, e aprendi. Gosto de viver cá, não há outro país melhor do que este na Europa”, constata Jesus.
“Também gosto de viver cá. A sociedade portuguesa (…) é uma sociedade acolhedora. Não quer dizer que não haja casos isolados em que as coisas não tivessem funcionado bem. (…) Temos muitas vantagens, falamos a língua, todos temos aqui relações familiares, amigos, é uma integração fácil”, corrobora Virgínia.
Uma comunidade indiana diversa e dialogante na fé
Hindus, muçulmanos, sikhs e católicos, a comunidade indiana em Portugal é diversa na fé, dialogando entre si e sem conflitos inter-religiosos.
De acordo com dados fornecidos pela Embaixada da Índia, a comunidade em Portugal é feita de 45 mil hindus, 35 mil sikhs, 25 mil muçulmanos (20 mil sunitas e 5 mil xiitas ismaelitas) e 15 mil católicos (goeses).
O desconfinamento avançou a tempo de permitir a celebração do nascimento do deus Rama, no Templo Hindu Radha Krishna, em Telheiras, inaugurado em 1998.
A comunidade está em festa, mantendo distanciamentos e cuidados. A ‘puja’ – cerimónia patrocinada por uma ou várias famílias – dura toda a manhã, numa sucessão de orações, cânticos, oferendas. No final, surgem bandejas com flores, fruta e frutos secos e bandejas com velas são elevadas aos altares.
Cerca de 60 crentes, mulheres de um lado (envergando ‘saris’ de muitas cores), homens do outro, participam de um ambiente dourado, animado por um grupo de músicos, que cantam e tocam tabla, harmónio e mais uns quantos instrumentos tradicionais.
Nos bastidores dos altares dedicados às divindades hindus, um computador assegura a transmissão da cerimónia em direto, através do canal YouTube.
No final, o presidente da Comunidade Hindu de Portugal, Kirit Bachu, transmite informações importantes – a autarquia de Lisboa deu finalmente luz verde para passar a haver gás natural no templo.
Saem em fila para voltar a erguer na cúpula a bandeira colorida, retirada para ser limpa, e que indicará ao longe que ali está um templo hindu. Vai dentro de um cesto e circula de cabeça em cabeça, acompanhada por palmas e cânticos (Hare, Hare / Krishna, Krishna).
Em pleno Ramadão, mês sagrado para o islão, os muçulmanos fazem fila à porta da Mesquita Central de Lisboa. Nem a pandemia nem a chuva os afastam da oração da uma da tarde.
Mais homens do que mulheres chegam de todas as idades e origens, vestidos a rigor ou com a farda do trabalho. Uma equipa de voluntários coordena as entradas e encaminha os fiéis para as várias salas de oração, agora com regras de distanciamento e um quarto da capacidade.
Ao final do dia, às 20:21, será quebrado o jejum diário. Durante o Ramadão, a Comunidade Islâmica de Lisboa (CIL) distribui “800 refeições por dia”, agora em formato ‘take away’, para famílias, hospitais e prisões. Fora deste período, oferecem sopa, diariamente, a quem precisar, sem pedir cartão do cidadão ou perguntar a religião.
O recém-empossado presidente da CIL, Mohamed Iqbal, estima que existam cerca de 60 mil muçulmanos em Portugal e que um terço sejam indianos (sunitas e xiitas juntos).
A comunidade está “perfeitamente” integrada na sociedade, garante o sucessor do banqueiro Abdool Vakil, moçambicano de origem indiana que foi líder da comunidade durante mais de três décadas.
De origem indiana e nascido em Moçambique, onde já se tinham instalado avós e bisavós, Iqbal chegou a Portugal com 16 anos, logo após a revolução de 1974.
Nessa altura, recorda, não havia mesquita. Mas já havia comunidade muçulmana, fundada há mais de 50 anos, por duas dezenas de estudantes, fundamentalmente de origem indiana.
As orações de sexta-feira começaram por ser feitas na embaixada do Egito e depois num espaço cedido pela Câmara de Lisboa, no Príncipe Real.
Assim foi até à década de 1990, quando a Mesquita Central foi construída num terreno cedido pelo Governo português, com o apoio de países islâmicos e mecenas vários.
Hoje existem várias mesquitas em todo o país, Lisboa, Porto, Algarve. “Não tem comparação qualquer com aquilo que era quando os primeiros muçulmanos chegaram”, reconhece o bancário, há mais de 20 anos em Portugal.
Hoje, diz, há “um fluxo maior” de migrantes indianos. “Há uma nova vaga, que veio à procura de oportunidades em Portugal”, na agricultura, mas também nos serviços.
Chegou à mesquita num Uber conduzido por um indiano, há três anos em Lisboa e a falar “50% de português”, oriundo do estado do Gujarate – também o seu e o do primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, cuja deslocação ao Porto, em maio, para reuniões com a União Europeia (UE), foi cancelada, devido à situação pandémica na Índia, para desgosto da comunidade em Portugal.
Com um legado de filantropia e voluntariado (basta pensar nos projetos da Fundação Aga Khan), a comunidade muçulmana xiita ismaelita chegou a Portugal igualmente a partir de Moçambique e também com raízes na Índia.
“No início, era sobretudo uma comunidade que se estabeleceu por conta própria, com vários negócios, sobretudo na área do mobiliário e hotelaria”, recupera Rahim Firozali, presidente do conselho nacional ismaelita, acrescentando que hoje há uma “maior diversificação das atividades económicas”.
A educação é considerada “primordial” pela comunidade. “Praticamente 100% da nossa juventude frequenta o ensino superior”, frisa, sublinhando que não há “qualquer tipo de distinção” de género. Aliás, o anterior imã indicou aos crentes que, se tivessem recursos para educar apenas um descendente, deviam “privilegiar a rapariga”, que tem depois “o papel de educadora da família”.
Portugal começou a despertar o interesse da comunidade ismaelita mundial a partir de 2015, quando se celebrou o acordo entre o Estado português e o Imamat Ismaíli para o estabelecimento da sede mundial em Portugal (que está a ser construída num palácio de Lisboa).
A curiosidade aumentou quando o líder espiritual dos ismaelita, Aga Khan, decidiu celebrar o final do seu jubileu de diamante em Lisboa, em 2018, trazendo cerca de 45 mil fiéis de todo o mundo.
Em resultado, nos últimos anos, têm-se estabelecido mais ismaelitas em Portugal, fazendo investimentos bastante significativos. E a comunidade, que começou por ser “muito homogénea”, da Índia e Paquistão, é hoje mais diversa, com gente da Ásia Central, Afeganistão, Irão.
Comunidade indiana desperta cremação em Portugal
Kantilal Jamnadas lembra-se perfeitamente do local onde, durante uma década, a comunidade hindu cremou os seus mortos em pira de lenha, no cemitério do Alto de São João, quando essa não era ainda uma prática comum em Portugal.
Duas gigantescas árvores, uma abraçada pela outra, um banco de jardim e a visão do Tejo ao fundo são o cenário do local, isolado num dos extremos do recinto, que garantia a privacidade das cerimónias, que só se podiam fazer ao fim do dia, quando, para todos os efeitos, o cemitério lisboeta já estava fechado.
A pira de lenha, ainda utilizada em zonas remotas da Índia, faz-se ao ar livre e, portanto, obrigava ao resguardo de olhares curiosos.
Nada se passava às escondidas, mas com autorização da Câmara Municipal de Lisboa, confrontada com a chegada, depois do 25 de Abril de 1974, de muitos indianos, oriundos sobretudo de Moçambique e “poucos” de Angola, para quem a cremação é um imperativo filosófico-religioso.
Empresário fundador da Dan Cake Portugal, Kantilal Jamnadas chegou a Portugal, vindo de Moçambique, em janeiro de 1976 – “ninguém imagina” o “conturbado” país que veio encontrar – e, pouco tempo depois, morreu um jovem indiano. Manda a tradição hindu que era preciso cremá-lo e aí se percebeu que não havia onde.
Apesar de legalizada em 1911, no Código de Registo Civil, a cremação não se praticava em Portugal há 40 anos.
Sara Gonçalves, da divisão de gestão cemiterial da Câmara Municipal de Lisboa, mostra a Kantilal – convencido de que, na altura, a cremação era ilegal – o “Livro de registo de incinerados e vala de chumbos”, páginas amareladas pelo tempo.
A primeira incineração em Portugal foi feita a 28 de novembro de 1925. Daí até 1936, realizaram-se 22. Só depois disso foi interrompida.
Até 1976, quando a morte daquele jovem desencadeou um longo processo, que culminaria em 1985, com a reabertura do forno crematório do cemitério do Alto de São João.
Kantilal liderou os contactos com a autarquia, que mostrou “muita compreensão” e nunca se opôs à cremação. Porém, a “complexidade burocrática” da matéria fez com que a pira de lenha fosse a única alternativa durante anos.
“Na altura, sugeriram que levássemos o corpo para outro lado, mas a nossa filosofia é: o destino quer que a gente nasça num determinado local e a cremação deve ser feita onde [se] deixou a vida”, explica.
“Nós, os hindus, gostamos de lembrar as nossas pessoas queridas como elas eram em vida”, sintetiza. Parece simples: do nada vimos, para o nada vamos, ficam as memórias.
Organizada, a comunidade hindu tinha fornecedores habituais, aos quais começaram por explicar de que “tipo de lenha” precisavam e que “depois passaram a produzir com essas especificações”.
Não era necessário muito mais: lamparina, algodão, incenso.
O difícil na cremação é que “é preciso saber gerir o vento”, explica Kantilal, reconhecendo que “é mais penoso assistir a uma cremação em pira de lenha do que no crematório”.
Os familiares dos mortos asseguravam o custo da cerimónia, mas toda a comunidade apoiava nos preparativos. “Levamos as cinzas, que tradicionalmente devem ser atiradas ao rio ou ao mar”, refere.
“As agências funerárias começaram a habituar-se e acabou por se normalizar”, regozija-se Kantilal, numa altura em que já existem perto de 30 fornos crematórios em Portugal, onde se realizam quatro mil cremações por ano.
Em Lisboa, onde existem três fornos crematórios, a maioria dos mortos já é cremada: 60 por cento, segundo dados de 2020, fornecidos por Sara Gonçalves.
Hoje em dia, o processo de cremação dura aproximadamente duas horas. No cemitério do Alto de São João, com 24 hectares, há cendrários (depósitos coletivos de cinzas), mas as cinzas também podem ser depositadas em jazigos, ossários e columbários (gavetões com tamanhos diferentes).
“Foi um grande serviço que prestámos à comunidade”, considera Kantilal, mencionando ainda duas outras “dádivas” de inspiração hindu: o yoga e o vegetarianismo.
Fundador da Comunidade Hindu de Portugal e chairman cessante da Dan Cake Portugal (entretanto vendida a uma empresa francesa), Kantilal não nega as raízes, os pais são indianos, e já foi à Índia “mais de cem vezes”, duas das quais em comitivas presidenciais.
Primeiro, em 1992, com Mário Soares – que foi o primeiro chefe de Estado português a visitar a Índia, momento celebrizado com uma fotografia usando um turbante de marajá, em cima de um elefante, tirada em Jaipur – e depois com Cavaco Silva, em 2007. O atual Presidente, Marcelo Rebelo de Sousa, visitou a Índia em 2020.
“Sou um estrangeiro na Índia, nunca lá vivi”, frisa Kantilal, mencionando as “dificuldades” que sentiu, enquanto dono da Dan Cake, quando tentou instalar negócio no país asiático.
“Costumo dizer que tenho alma indiana, coração português e físico moçambicano”, resume o rosto mais conhecido da Comunidade Hindu de Portugal, que fundou e a que presidiu durante dezenas de anos (até 2018).
[Sofia Branco e Mário Cruz (fotos) da agência Lusa]
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