
Francisco Mota Saraiva junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 24 de abril, uma quinta-feira, pelas 21h00. Consigo traz "Morramos ao menos no Porto", publicado pela Quetzal.
"Morramos ao menos no porto" pediu o título emprestado a Séneca e venceu o Prémio José Saramago no final de 2024. Em declarações ao SAPO24, o autor explica que "o livro surgiu da observação de um detalhe, da observação do comportamento orgânico de uma determinada matéria, como se orientado por certo um tipo de método científico embora de científico tenha muito pouco na construção que se lhe seguiu".
"Quando escrevi o livro, vivia numa dessas casas antigas, de soalho de madeira, soalhos que rangem, que se tomam de cores em função das luzes, de sons em função das horas, de tamanhos em função de nós; um tipo de soalho donde sobretudo eclodem ruídos, uns mais distinguíveis que outros, mas que nos despertam aquela curiosidade de abismo; é o típico chão das casas que têm vidas dentro (todas as casas as têm, mas, a bem da verdade, algumas parecem que têm nelas outras vidas para além das nossas)", começa por dizer.
"Imaginei, então, como seria se os nossos mortos vivessem debaixo desse chão, se debaixo dele – e através dele – nos quisessem falar; como seria se os nossos mortos continuassem a existir debaixo de nós, todos os dias, até nos juntarmos a eles. E, depois, fui construindo em camadas, um chão sobre outro chão, um personagem sobre outro personagem, uma vida por cima da outra; partir do núcleo até ao húmus, e o que depois dele nasce, fica para o leitor", explica.
Com isto, surge, como se lê na sinopse, uma história que "acompanha a ligação de Silvina e António, um retrato de um casamento de vinte e cinco anos contado em diferentes dimensões. Um livro sobre amor, finitude e memória, que dá voz aos mortos que murmuram debaixo do chão de casa".
Quanto à forma como a obra tem sido recebida pelos leitores, Francisco Mota Saraiva diz que, para já, "ainda é cedo para ter uma ideia de conjunto".
"Existe expectativa, isso eu sei que sim, e tem-me sido transmitida. É curioso este ofício em que produzimos uma obra como ato de individualismo extremo, quase egoístico, e, no final, sem que essa seja a nossa primeira intenção (ou, pelo menos, a mais imediata), ela se dirige à apreciação, ao gosto, ao prazer dos outros", reflete.
Assim, "escritor e leitor unem-se por um objeto – o livro, a obra – que, a dado momento, deixa de pertencer ao primeiro, mas que também não pertence propriamente ao segundo. O livro, como qualquer objeto artístico, é algo de profundamente complexo, sujeito a uma análise e a um juízo muitíssimo subjetivos: cada leitor tem a sua experiência de leituras anteriores, sentimentos que adquiriu com maior ou menor expressão em função do seu percurso de vida, cânones e valores críticos que foram ditados por um sem número de fatores; ao passo que, para o escritor (pelo menos, no meu caso), a sua obra não passa de uma veleidade, nunca chega a ser algo, nem em próprio nem no metafísico".
De olhos na atualidade e num mundo cada vez mais tecnológico, Francisco Mota Saraiva lembra que os livros também aqui se encaixam. "O livro, enquanto objeto primordial de sustentáculo à leitura, é, em si mesmo, um objeto tecnológico: da tradição oral, chegámos ao signo, à palavra, à pontuação; evoluímos do papiro para o pergaminho, para o códice, para a palavra impressa, para a tipografia da grande distribuição; da pintura rupestre chegámos aos suportes digitais; sem, contudo, perdermos o ato de leitura desde que nos conhecemos como espécie socialmente organizada e, dita assim, civilizada".
Considerando toda esta evolução, o autor acredita "que a leitura assumirá um papel cada vez mais preponderante na sociedade: no futuro, existir, enquanto ser social, só será possível para os que aprendam a ler, e, sem querer exagerar, ler será uma necessidade tão básica como comer ou dormir. Aliás, a ligação ao mundo atual (de pessoas, bens, serviços, etc.) por via da tecnologia digital mostra-nos isso mesmo".
"Em todo o caso, não posso deixar de reconhecer que a tecnologia com que hoje laboramos tem por condão promover formas de afastamento (ainda que algumas meramente virtuais) e de alienação que não conhecíamos e que colocam seriamente em causa os modelos de relacionamento que nos foram passados pelos séculos e séculos como bons ou, no mínimo, como aceitáveis", nota também.
"Não quero parecer demasiado optimista nem demasiado pessimista, mas o livro e a leitura (a leitura, aqui, entendida enquanto ato de sumo prazer ou de conhecimento pelo simples conhecimento, sem mais nenhuma outra necessidade) sempre foram o espaço estrito de apenas alguns – os poderosos; e, quer sejam eles poderosos do dinheiro, da política, do saber ou das artes, os poderosos serão sempre um punhado deles. E, também esses, hoje, precisam de mais livros e mais leituras para que não se afastem demasiado do outro".
Questionado sobre um livro onde gostaria de viver, o autor começa por enumerar várias obras — mas talvez não quisesse entrar realmente em nenhuma. "Por vezes, ainda sou aquele miúdo que se julga o Jim Hawkins, escondido no barril das maçãs, na Ilha do Tesouro, de R. L. Stevenson; ou um terceiro companheiro de Sherlock Holmes e Dr. Watson, de Conan Doyle; ou o Ralph naquela ilha do Deus das Moscas, de William Golding; Tintin e Haddock, pela mão de Hergé; ou o biografado David Copperfield, de Charles Dickens. E, no entanto, tenho sérias dúvidas se gostaria de viver em algum livro. A ficção é, para todos os efeitos, imperfeita; ao contrário da realidade que, apesar de todas as suas imensas falhas, é, em termos absolutos, perfeita, pautada pelos seus imperativos categóricos e pela sua dimensão transcendental que nenhum objeto artístico é capaz. Há uma pura perfeição no Homem que, quando decalcada para a sua atividade criativa, se torna necessariamente imperfeita".
Quanto ao clube que se aproxima, diz sentir "sempre grande entusiasmo" quando está com os leitores. "É engraçada a forma como nos relacionamos nesses encontros: sem que nos apercebamos, contrariamente às típicas relações sociais de troca (amorosas, comerciais, familiares, etc.) em que um e outro esperam dar e receber simultaneamente ou em que um apenas dá e o outro apenas recebe, neste tipo de encontros, julgo que escritor e leitores partem todos com vontade de receber apenas, o que dá azo a uma relação relativamente atípica que se à partida poderia parecer algo de muito egoístico, é, curiosamente, algo que vejo como profundamente generoso".
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