É impossível identificar 'loucos' e 'sãos' entre os reunidos no antigo hospital psiquiátrico para o cortejo na quinta-feira, véspera do carnaval.
"Quem é louco e quem não é na nossa sociedade? No carnaval todos colocam sua loucura para fora", diz à AFP Adriana Carvalho Lopes, 46 anos. "Isso aqui faz parte da imaginação de pessoas que os ditos 'normais' acham que não sonham, vivem num mundo doente, quando essa parte da população também é produtiva", completa Bruno Coutinho, 42 anos.
O casal de professores foi ao bloco vestindo chifres, tridentes e capas de diabo.
Enquanto isso, 'A Insandecida', bateria do bloco, aquece os instrumentos. Entre os quarenta ritmistas, a maioria pacientes, está Renata Alves, 23 anos. Molestada aos seis, sofreu abusos que a levaram às drogas e a tentar o suicídio.
"O bloco foi minha salvação. Aqui fiz amigos, tenho uma família", conta Renata, que toca surdo.
Desde 2016, frequenta o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Clarice Lispector, dentro do Nise, onde conheceu a Oficina Livre de Música.
Os CAPS são unidades públicas de tratamento comunitário para transtornos mentais e dependência química, criados com a Reforma Psiquiátrica, em 2001, que prevê a progressiva desativação dos manicómios.
Renata mora com a família em Piedade, também na zona norte. Além das sessões no CAPS e das aulas de percussão, escreve, compõe e desenha.
"Gostava dessa parte, da cultura, porque quando estava em surto, fazia versos de tudo o que sentia e desenhava. A arte sempre esteve presente", relata.
Nise, pioneira
Usar a arte para tratar transtornos mentais é um legado da psiquiatra alagoana Nise da Silveira (1905-1999), que renomeou o Centro Psiquiátrico Pedro II, onde o bloco foi criado.
Única mulher formada na Faculdade de Medicina da Bahia em 1926 e discípula de Carl Jung, trabalhou nos anos 1940 no Centro Psiquiátrico Nacional, que se chamaria Pedro II.
Recusando-se a seguir os tratamentos correntes — eletrochoque, lobotomia e coma insulínico —, criou a secção de terapia ocupacional, usando artes plásticas para tratar os internados.
Descobriu talentos e criou, em 1952, o Museu de Imagens do Inconsciente, hoje com 350 mil obras, expostas no Brasil e no exterior, e aberto ao público.
"A arte, uma lição de Nise da Silveira, é apaziguadora, organizadora, permite a elaboração inconsciente através das obras. Ajuda no processo de cura", explica a psicóloga Ariadne Mendes, 69 anos, coordenadora e cofundadora do Loucura.
Desde 1983, Ariadne, que coordenou o ambulatório do Pedro II entre 2000 e 2001, acompanha a desinstitucionalização manicomial.
"Antigamente, a política era isolar da família, da sociedade. Você encarcerava, escondia as pessoas", conta. "Este é um centro de convivência diferente. Há acolhimento, é um lugar de iguais e de aprendizado para nós, profissionais, porque aqui a loucura não tem caráter patologizante. A gente convive com isso naturalmente", completa.
Desde 2010, o Ponto de Cultura Loucura Suburbana tem oficinas de música, percussão e informática, gratuitas e abertas à comunidade.
A de informática formou mais de 600 pessoas e tem pacientes como professores. A de música conta com usuários de serviços de saúde mental ou não.
"A música é uma ferramenta para unir pessoas em diversidade e construir uma solidariedade nova", afirma o músico Abel Luiz, 37 anos, fundador da Oficina Livre.
Política oficial
"Acolhimento é importante, mas é preciso tratar" o transtorno, argumenta o psiquiatra Quirino Cordeiro Júnior, ex-coordenador-geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde, hoje secretário de Cuidados e Prevenção às Drogas do Ministério da Cidadania.
Internações curtas para quadros agudos são fundamentais, avalia. Por isso, a nova Política Nacional de Saúde Mental, publicada em 2017, prevê a reabilitação de leitos em hospitais psiquiátricos e enfermarias especializadas em hospitais gerais. Passada a crise, o tratamento segue em unidades como os CAPS.
"Não estou falando de modelo manicomial, de apartar a pessoa do convívio social. [Mas] É irresponsabilidade mandar para casa, fazer tratamento em CAPS o indivíduo que está se colocando em risco, prestes a se matar", diz, ressaltando que nestas unidades não há internação.
Em tratamento no CAPS Manoel de Barros, em Jacarepaguá (zona oeste), Adilson Nogueira, 62 anos, porta-estandarte e compositor do Loucura, passou por diversas internações.
"Na internação, você dorme no chão, fica preso, vê a família uma vez por semana, é como um bicho. No CAPS, o tratamento é melhor porque você tem carinho, liberdade de se tratar e ir pra casa", conta o operador de máquinas aposentado, casado e pai de três filhos.
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