Um antigo quartel militar na cidade de Leiria foi casa, durante quase uma década, de centenas de retornados das ex-colónias e o estado em que viviam comoveu, em julho de 1980, o primeiro-ministro, Francisco Sá Carneiro.

“Ele até chorou, coitado, estava comovido de ver tanta pessoa, tanta desgraça”, afirmou à agência Lusa José de Jesus, de 87 anos, no apartamento no bairro social Dr. Francisco Sá Carneiro, nos Marrazes, concelho de Leiria, que perpetua o nome do antigo chefe do Governo a quem se deve a construção.

Maria Teixeira, de 81 anos, também moradora no bairro corroborou: “Ele chorou e nós mais chorámos”.

Em 13 de julho de 1980, o primeiro-ministro e vários membros do Governo deslocaram-se a Leiria, numa visita de trabalho.

De acordo com a edição de 18 de julho desse ano do semanário Região de Leiria, no Centro de Acolhimento Coletivo para Desalojados de África, que tinha sido quartel do Regimento de Artilharia Ligeira (RAL) n.º 4, o representante dos desalojados “pediu a influência do primeiro-ministro para remediar a situação das cerca de 700 pessoas que ali se encontram, mas mal alojadas, entre as quais muitos idosos, crianças e deficientes”.

“Em resposta, Sá Carneiro, visivelmente comovido, disse ‘que era para isso que estava ali para resolver esses problemas’”, lê-se no jornal.

Depois de uma visita aos edifícios, “notando-se o aspeto de grande degradação”, quando “o primeiro-ministro ia já a retirar, foi-lhe chamada a atenção no sentido de visitar ainda uma dependência mais distante, por uma ali alojada, mas o Dr. Sá Carneiro disse que havia já visto mais do que o suficiente para notar que aquelas instalações não eram próprias para o alojamento de pessoas, e que a dignidade destas necessitava de outro mais condigno”.

“Isto não é vida. Vocês estão a viver pior que mal”, referiu Sá Carneiro (1934-1980) citado pelo semanário, tendo garantido: “Vão-se construir casas para vocês e, se ainda não chegarem, mais se construirão”.

Maria Teixeira adiantou que a situação era “péssima, péssima”. Muita gente, “para cima de 500 pessoas”, para pouco quartel, desabafou.

“Puseram-nos aqui. A gente ficou. Estávamos ali como sardinhas em lata”, relatou, explicando que chegou ao antigo RAL em 1976, com marido, uma filha e grávida de outra, proveniente de Angola, para onde foi da ilha da Madeira, aos 8 anos, com a família a juntar-se ao pai, que “foi à frente”.

No antigo quartel, que também foi Paço Episcopal e hoje é a sede do Comando Distrital de Leiria da Polícia de Segurança Pública, a família de Maria Teixeira viveu quase uma década.

Menos tempo esteve a família de José de Jesus, igualmente proveniente de Angola, e cuja bagagem transportava pouco mais do que as memórias de uma vida boa, interrompida pela guerra civil.

“Não trouxemos nada, nada, zero. Só roupa”, afiançou. A mulher, Maria José, de 80 anos, completou: “E não foi toda (…). Nem um garfo para espetar numa batata”.

Antes de o quartel se tornar na casa da família, incluindo alargada, José de Jesus, a mulher e quatro filhos menores, todos nascidos portugueses no país que se tornara independente um ano antes, foram para a Cúria (Anadia, Aveiro), em 1976, e depois para Cinfães (Viseu).

Em Leiria, a família de nove pessoas distribuiu-se por “dois quartinhos e uma salinha pequenina”, contou José de Jesus, recordando que “a casa de banho era um buraco, atrás do prédio”.

“Passámos um mau bocado. Tivemos de viver, mal e porcamente”, realçou.

A tristeza surge-lhe quando recorda os tempos bons que viveu em Angola: “Quem não tem saudades de uma terra que era nossa?”, questionou.

Já Maria de Fátima Mendonça, de 76 anos, nascida em Angola, lembrou o embate que teve quando chegou ao quartel.

“O choque foi pelas condições, disseram-nos que era uma pensão, mas não foi uma pensão”, disse, para enumerar situações de falta de água e também eletricidade.

Fugida de Angola, Maria de Fátima veio para Portugal aos 28 anos, casada e com dois filhos, em 12 de março de 1976.

“Fomos transferidos, de acordo com o alojamento que nos foi oferecido, para o então Sanatório das Penhas da Saúde [Covilhã, Castelo Branco]”, declarou, precisando que em julho do mesmo ano já habitava no antigo RAL.

O avô paterno de Maria de Fátima, que ali já se encontrava, com a ajuda de platex, criou uma “divisão dentro do quartel”.

“Éramos 15 pessoas nessa divisão, mas a casa de banho era comum e o banho também”, recordou.

Em janeiro de 1983, o Centro Regional de Segurança Social de Leiria efetuou um recenseamento no “GETTO ex-RAL”, como designou aquela entidade, segundo o número zero do Jornal de Leiria, publicado em 22 de março de 1984.

De acordo com o recenseamento, viviam no antigo quartel “621 indivíduos pertencentes a 130 famílias” e, com a exceção de quatro famílias, “uma proveniente da Guiné e três de Moçambique, todas as outras vieram de Angola”.

Sá Carneiro (1934-1980) não chegou a ver concluído o bairro para os retornados. Morreu cerca de cinco meses após a deslocação a Leiria.

O bairro social foi inaugurado em fevereiro de 1985, com a entrega de habitações a 136 famílias, num total de 614 pessoas desalojadas do ex-quartel, de acordo com a imprensa da época.

“Ele prometeu que o bairro era para os retornados de lá [quartel], para viverem em boas condições. A promessa não foi cumprida”, criticou José de Jesus, inquilino do bairro.

Maria de Fátima, que também vive num apartamento arrendado, acrescentou: “Tenho pena de não ser a nossa casa, porque foi uma promessa”.

*Por Sílvia Reis, da agência Lusa