Chama-se Cidália, mas desde há um par de anos é "a mãe da Lara", uma criança de cinco anos a quem foi diagnosticada uma doença grave e rara, Leucodistrofia Vanishing White Matter, nome tão complicado como a sua história. O último imbróglio aconteceu com a Câmara Municipal de Braga e a candidatura ao programa que o governo promove como "Acessibilidades 360º, um país para todos". Que, afinal, parece ser só para alguns.
No total, são 48 milhões de euros de financiamento PRR em investimentos na acessibilidade de pessoas com deficiência e pessoas com mobilidade reduzida. Para o Programa de Intervenções em Habitações (PIH), "para melhorar as acessibilidades para pessoas com deficiência em habitações em todo o território de Portugal continental, e com o objetivo de apoiar intervenções em, pelo menos, 1.000 habitações", o apoio financeiro vai até "ao limite máximo de dez mil euros por habitação".
O anúncio está na página oficial do INR - Instituto Nacional para a Reabilitação, onde se lê que o aviso "é dirigido às câmaras municipais" e as candidaturas terão de ser submetidas "até ao dia 30 de setembro de 2022". Mas tudo falhou.
Até aos dois anos e meio Lara foi uma miúda perfeitamente normal. A sentença da doença degenerativa (perda progressiva de faculdades) veio depois de uma queda. Atualmente já não anda, desloca-se em cadeira de rodas, e perdeu alguma motricidade fina.
Só em terapias diárias - fisioterapia, hidroterapia, terapia da fala, terapia ocupacional, hipoterapia, acupuntura -, "são cerca de 700 euros todos os meses", conta a mãe da Lara, que deixou de trabalhar para se dedicar à filha. "Recebemos de assistência, de bonificação ou por deficiência, menos de 10% do que gastamos. É uma luta permanente", desabafa.
Este apoio do PRR representava, por isso, a oportunidade para alargar as portas da casa onde moram, por onde a cadeira de rodas não passa (Lara tem de ser levada ao colo), para colocar uma cadeira elevatória para subir as escadas e para adaptar o terraço. "Não é um luxo, é uma necessidade. Não vou alterar a minha casa porque quero uma casa melhor, pelo contrário, mas é para melhorar o conforto da Lara. Porque não sei se para a semana ela estará aqui".
A culpa nunca é de ninguém
A mãe da Lara não soube das ajudas pela Câmara Municipal de Braga, que tampouco informou os munícipes da abertura de candidaturas através do seu site oficial. A informação chegou-lhe por portas travessas e o resto foi pesquisar diretamente no site do Instituto Nacional para a Reabilitação.
"Soubemos destes apoios já tarde e, como não foram divulgados pela câmara de Braga, seguimos o prazo do INR. Foi difícil perceber como nos podíamos candidatar, tive de pedir vários orçamentos - submeti os mais baratos - e, quando consegui tudo, fui à câmara entregar o processo, exatamente no último dia de manhã", explica. "Não fui impedida de me candidatar, nem me foi dito que a candidatura já não seria considerada. Aceitaram tudo, estava tudo corrcto e fiquei descansada da vida".
Um descanso que durou até há dias, quando a outro propósito telefonou para a câmara e acabou por perguntar pelo processo. "Já que estava em linha, pedi para passar outra vez à recepcionista para saber saber da candidatura. É então que falo com uma senhora, Ângela Faria, que me diz que é responsável pelos apoios comunitários. "Ah, entregou no dia 30? Não foi aprovado!" "Mas porquê?", perguntei. "Porque não tivemos tempo", foi esta a resposta", recorda a mãe da Lara.
A funcionária terá ainda dito que a câmara não tinha técnicos suficientes nem a capacidade de andar de casa em casa a confirmar as informações dos processos, pelo que no dia 30 de setembro estariam a ser verificados dados de candidaturas anteriores. "O da Lara nem sequer foi visto", conclui.
"Sinto-me mal e faço coisas que nunca imaginei fazer na vida. Sou reservada e gosto tanto de manter a minha privacidade, mas, por causa da Lara, tenho de me expor, expor os meus filhos, expor a minha vida. E isto não devia ser necessário"
Indignada, Cidália decidiu denunciar a situação na página de Facebook criada para a ajudar a pequena Lara, o que gerou uma onda de solidariedade. E algumas justificações, do presidente da Câmara Municipal de Braga, Ricardo Rio, à secretária de Estado da Inclusão, Ana Sofia Antunes. Para muitos que ali comentam, pior a emenda que o soneto.
"[...] A data limite de submissão das candidaturas pelas Câmaras ao INR (e não a data de submissão dos cidadãos aos Municípios) foi o dia 30 de setembro. No caso de Braga, optámos por não fixar uma data limite para recebermos as manifestações de interesse dos particulares para não privar o máximo possível de beneficiários do acesso a este Programa [...]", responde Ricardo Rio no post da mãe da Lara.
O presidente do município termina a dizer: "Lamento pela perda do apoio, mas não havia nada que a Câmara pudesse ter feito de diferente (que não vetar a submissão de candidaturas a partir de uma data anterior, o que não fizemos pelas razões que referi). A nossa expectativa é que possam ser lançados novos avisos para aproveitar as verbas não utilizadas, o que depende do INR".
O SAPO24 quis saber por que motivo as candidaturas, tendo como destino os munícipes, não foram publicitadas no site da Câmara Municipal de Braga, ou a razão de não ter sido fixado um prazo limite para a entrega dos processos na câmara, para não defraudar as expectativas dos candidatos. Mas estas e outras perguntas não obtiveram resposta do presidente ou sequer do provedor do munícipe, Carlos Alberto Pereira, também contactado.
Da secretária de Estado da Inclusão, uma garantia: "Mãe, da minha parte só posso dizer que vamos reabrir candidaturas a partir do princípio do próximo ano. Espero que a Câmara de Braga submeta o processo nessa altura. Vou tentar garantir que assim aconteça", escreveu Ana Sofia Antunes.
Quem respondeu ao SAPO24 foi o vereador sem pelouro da oposição (PS), Hugo Pires. "Este já não é um assunto novo na câmara de Braga. Hoje é a Lara, mas já houve outros. O caso da Lara reflete a insensibilidade social do município perante as questões destas crianças com necessidades específicas. Não é aceitável que o INR aceite as candidaturas feitas pelos municípios até 30 de setembro e que a câmara anuncie essa data como último dia para as pessoas apresentarem uma candidatura e depois pura e simplesmente diga que, afinal, não pode aceitar".
Mas, e o que faz o PS enquanto partido fiscalizador da gestão do PSD? "Tivemos conhecimento disto há dois ou três dias. Os pais que denunciam publicamente estes casos são pais que já estão em desespero, porque os que têm alguma possibilidade não se expõem. Temos consciência de que se não fosse a denúncia da mãe da Lara, não saberíamos o que se passa. Não estamos dentro dos serviços, não estamos no dia-a-dia da câmara, não somos vereadores a tempo inteiro, é nas reuniões de câmara que perguntamos e fiscalizamos a ação da câmara", diz Hugo Pires.
E conta que ultimamente, a propósito de outros temas, os vereadores do PS têm recorrido à CADA - Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos para conseguir informações que o executivo não quer dar. "Esta é a câmara que se candidatou a Capital Europeia da Democracia", ironiza, "como se a forma de agir se regesse pelos mais altos padrões da transparência e da democracia a nível europeu. As políticas de inclusão e de apoio social, sobretudo na faixa da deficiência, são absolutamente inexistentes na câmara de Braga", garante.
Tampinhas de plástico pagam terapias
Como é ser mãe de uma criança com necessidades especiais em Portugal? "Desgastante. Deixamos de ter vida própria, passamos a viver em função do outro. O sentimento é sempre de impotência, porque a resposta que mais ouvimos é não", responde a mãe da Lara.
É desconcertante, mas Cidália considera que "a maior parte das escolas não estão preparadas para este tipo de crianças" e "serviços como a Segurança Social não sabem como ajudar, porque nem sequer têm informação". E lembra que há meses que está à espera de uma cadeira para casa e de uma cadeira para o banho, "outra polémica".
"A última vez que estive na Segurança Social a senhora pediu-me para ter calma, que até 2023 de certeza iria receber o dinheiro para comprar as cadeiras. Até lá, a Lara espera por um apoio que é urgente, para ontem, por causa da postura".
"Estamos constantemente revoltados e a gerar polémica. Sinto-me mal e faço coisas que nunca imaginei fazer na vida. Sou reservada e gosto tanto de manter a minha privacidade, mas, por causa da Lara, tenho de me expor, expor os meus filhos, expor a minha vida. E isto não devia ser necessário. A Lara tem cinco anos, merece ser feliz".
"Em dois anos recolhemos perto de 30 toneladas. As tampinhas vão para a Resialentejo, uma central de reciclagem, que paga diretamente ao centro de terapêutica os tratamentos da Lara"
Casada e mãe de mais dois filhos, ele de 16, ela de 24 anos, a mãe da Lara admite que "esta é uma loucura e afecta toda a família, toda a gente que está próximo. Mas a nossa luta é a Lara e temos de andar para a frente, fazemos recolha de tampinhas para ajudar nas terapias porque, infelizmente, no hospital não temos vaga".
E assim ficamos a saber que a recolha de tampas de plástico não é um mito e tem um objetivo que se cumpre. "Em dois anos recolhemos perto de 30 toneladas. As tampinhas vão para a Resialentejo, uma central de reciclagem, que paga diretamente ao centro de terapêutica os tratamentos da Lara. O dinheiro nunca passa pelos pais, o que para nós é ótimo, porque não temos de gerir essa parte", afirma.
Uma tonelada de tampinhas vale cerca de 350 euros. Ou seja, em dois anos a mãe da Lara (e família e amigos) conseguiu o equivalente a 10.500 euros.
Cidália não trabalha, o marido sim. "Estou com aquele subsídio de assistência a filho com doença grave. Uma fortuna, perto de 340 euros", ironiza. "Porque o subsídio de cuidador informal não existe, é uma farsa para iludir meninos", assegura.
A verdade é que os cuidadores, muitas vezes, também precisam de ser cuidados. "O Estado podia ajudar mais", acredita a mãe da Lara, "e fazer com que não tivéssemos de andar atrás das coisas, porque já estamos completamente ocupados com as pessoas de quem cuidamos. E ainda temos de andar sempre a lembrar toda a gente, para não se esquecerem de nós".
Lara está numa IPSS - Instituição Particular de Solidariedade Social onde já estava quando lhe foi diagnosticada a doença. "A escola é muito boa e está muito bem adaptada à Lara, estão muito familiarizados com a doença, também porque acompanharam a sua progressão. Se estivesse numa escola pública, não sei se teria as mesmas condições". Em breve irá para a Primária, "ainda não entrou e já morro de medo", suspira. "Esta é uma doença muito perigosa, não pode bater com a cabeça, não se pode assustar com sons, tudo isso pode fazer piorar o seu estado, pode perder algumas faculdades com esses eventos, deixar de ver, deixar de falar, deixar de se movimentar. Em janeiro vamos começar as reuniões com as direções das escolas para saber a que melhor se adapta à Lara. Mais uma luta".
Mas, para já, uma esperança: Lara está inscrita num ensaio em Amesterdão, nos Países Baixos, que está a ser um sucesso. "Não é uma cura, mas não deixa a doença avançar e isso, para nós, já seria muito bom".
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