O Parlamento Europeu quer criar uma União Europeia da Saúde e o mandato da Comissão para negociar a compra de vacinas em nome dos Estados-membros pode ter sido um passo nessa direção, mas também veio expor fragilidades, como ficou evidente na audição dos sete CEO das farmacêuticas que têm acordos com a Europa dos 27. A pergunta é como aumentar a produção e distribuição de vacinas, até para responder às variantes de SARS-CoV-2 entretanto identificadas, sem deixar ninguém para trás.
Enquanto uns apelam à abertura de patentes e pedem mais cooperação internacional, outros defendem o direito de propriedade e o aval da Agência Europeia do Medicamento (EMA), mesmo existindo em cada país uma agência nacional. Mas todos estão de acordo quanto à falta de transparência dos contratos firmados entre UE e farmacêuticas, que, afinal, podem não ter salvaguardado o preço das vacinas.
"Há um aspeto preocupante, que é o facto de os contratos que foram feitos com as farmacêuticas não serem públicos; quanto mais vamos destapando esses contratos, mais preocupados ficamos, nomeadamente quanto à falta da entrega de vacinas e quanto ao preço dessas vacinas - o da AstraZeneca está garantido até junho, depois disso a empresa pode atirar os preços para valores de mercado". A afirmação é do eurodeputado do PCP João Ferreira e foi feita ontem num webinar organizado pelo gabinete do Parlamento Europeu em Portugal, sobre a "Uma União Europeia da Saúde?", em que participaram também Sara Cerdas (PS), Maria da Graça Carvalho (PSD) e Nuno Melo (CDS).
Esta e outras informações sobre os acordos têm vindo a ser reveladas a conta-gotas. As últimas, conhecidas agora, revelam que o Reino Unido sozinho conseguiu em toda a linha melhores condições na compra de vacinas do que a União Europeia, que representa 470 milhões de pessoas e 27 países.
A AstraZeneca, que fornece o Reino Unido, é precisamente a farmacêutica com quem a União Europeia negociou o maior lote de vacinas e é também aquela que está a falhar os prazos de entrega, o que está a atrasar o processo de vacinação, com custos para o regresso à normalidade e implicações graves a nível económico e social.
Nuno Melo concorda que "há um défice de informação grande em relação aos contratos celebrados e que os povos europeus devem conhecê-los". "Há informações que têm de ser dadas", considera.
O facto de as vacinas não estarem a chegar aos países com a velocidade inicialmente prevista já levou alguns Estados-membros a adquirir vacinas diretamente aos laboratórios, como fez a Alemanha com a Moderna, ou a comprar vacinas ainda não autorizadas pela Agência Europeia do Medicamento, como fez a Hungria com a vacina russa Sputnik V e uma das vacinas chinesas.
O deputado do CDS preocupa-se com a falta de solidariedade, e avança que não quereria ser vacinado com uma vacina, "venha de onde vier", que não tenha passado pelo crivo da EMA, a quem compete analisar todo o processo de desenvolvimento de novos fármacos e garantir a sua segurança e eficácia.
João Ferreira contrapõe: "Não há falta de solidariedade quando o plano está a correr obviamente mal". E lembra a declaração conjunta dos ministros da Saúde de cinco Estados-membros, que recentemente criticaram severamente a estratégia de vacinação da União Europeia. "Não há nada de mal em os países, perante os constrangimentos da UE, diversificarem as suas opções de compra. Mal é alguns países não estarem a considerar essas opções, como Portugal", diz.
Até porque, diz o deputado comunista, Portugal, como os restantes países da União Europeia, têm as suas próprias autoridades nacionais do medicamento - no caso, o Infarmed.
Como é então possível superar os embaraços que os laboratórios farmacêuticos estão a evidenciar? Para João Ferreira, "uma solução, que tem vindo a ser adiada, seria a abertura das patentes". "Os direitos de propriedade industrial têm uma função de estímulo à inovação, mas os regimes de propriedade intelectual preveem com algum equilíbrio situações em que as patentes deixam de valer, como quando existe risco iminente para a saúde pública". Como é o caso.
O eurodeputado do PCP dá o exemplo do que há alguns anos aconteceu com o Tamiflu (um antiviral usado no tratamento da gripe por Influenza), nos Estados Unidos, e que deu origem à aprovação de uma versão genérica, o que mostra que esta é uma questão política, mais do que técnica: "É a Comissão Europeia que está a impedir o levantamento de patentes, ao adotar uma postura de defesa dos interesses da indústria farmacêutica, que está a ter lucros muito significativos e que são lucros que têm custos", afirma. Ainda por cima, "quando muita desta investigação foi financiada em larga escala com dinheiros públicos", um facto já denunciado pelo presidente do Parlamento Europeu, David-Maria Sassoli.
João Ferreira garante que não é contra a solidariedade, mas sim "muito a favor da cooperação". E não percebe por que razão, numa situação como estas, "a União Europeia não está a cooperar com os Estados Unidos, com a Rússia, com a China, com todos aqueles que já demonstraram ter capacidade. Ir buscar fora conhecimento que outros entretanto desenvolveram não é uma brecha na solidariedade", assegura.
Maria da Graça Carvalho, do PSD, recorda que nesta área tem havido muita partilha de informação, mas acentua que a investigação científica é mais rápida se for feita em colaboração, a nível europeu e mesmo a nível global. E avança, a este propósito, que será finalmente criada, sete anos depois de proposta, uma agência para a investigação biomédica, cujos estatutos deverão estar prontos no final deste ano.
"Outro domínio de colaboração importante", diz, "é o da partilha de dados. Os países que têm estado a andar mais rapidamente têm uma característica: a digitalização do seu sistema de saúde. É o caso de Israel e do Reino Unido, que estão muito mais avançados do que os Estados-membros da União Europeia na digitalização".
A deputada social-democrata reconhece que o processo de fabrico das vacinas é complexo - "para a sua produção, disseram-nos, são necessárias, em média, 100 companhias e mais de 400 componentes" -, pelo que seria necessário mapear as instalações existentes na Europa com capacidade para produzir a vacina. No entanto, as sete farmacêuticas - seis já com acordos firmados com a União Europeia (Pfizer, AstraZeneca, Moderna, Johnson&Johnson, CureVac e Sanofi GSK) e uma em negociação - "não responderam sequer se estão ou se vão utilizar universidades, academia" ou até outros laboratórios para incrementar a sua capacidade de produção, recorda Sara Cerdas.
Mas há boas notícias do lado da ciência: caso haja uma mutação do vírus - até agora foram apenas encontradas variantes -, e no caso de uma vacina que use a tecnologia do RNA mensageiro (responsável pela transferência de informações do ADN), os laboratórios garantem conseguir produzir uma nova vacina eficaz em 100 dias, alterando apenas o código genético.
Quanto às novas variantes que têm vindo a ser identificadas um pouco por todo o mundo, "a CEO da Pfizer avançou que os dados que a farmacêutica está a obter em escala real, por exemplo em Israel, um grande ensaio clínico à escala real, são muito bons em relação à variante do Reino Unido, mas estão apreensivos no que toca à variante da África do Sul", avança Maria da Graça Carvalho. A empresa já está a preparar um terceiro reforço para ser aplicado em pacientes seis meses após terem recebido a segunda dose da vacina. Também a CureVac está a preparar-se para variantes futuras.
Nem sempre os avanços significam só boas notícias: a BioEnTech, que estava a trabalhar numa vacina contra o cancro, redirecionou o seu trabalho para o desenvolvimento da vacina contra a Covid-19.
Apesar do otimismo, Maria da Graça Carvalho admite que o Conselho, de que Portugal tem neste momento a presidência, tem especial importância e "pode ser, do meu ponto de vista, mais ambicioso no programa que tem para a Saúde".
Neste ponto, Nuno Melo é igualmente crítico: "Não está tudo a correr bem. E, aí sim, diferencio o plano nacional do plano europeu. No plano europeu, as coisas estão a correr melhor agora, janeiro e fevereiro de 2021, do que em março, abril, maio e junho de 2020. No plano nacional, as coisas estão a correr muito pior agora, janeiro e fevereiro de 2021, do que correram em março, abril de 2020".
Sara Cerdas esclarece que, apesar de todos os contratempos, muito tem feito a União Europeia para ajudar os 27 países numa matéria, a Saúde, cuja competência e soberania é de cada Estado.
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