Livre, partido de esquerda. PAN, que diz não ser de esquerda, nem de direita. E Chega, que se assume como o único de direita. Enquanto o primeiro e o último se farão escutar pela primeira vez na Assembleia da República, o PAN viu reforçada a sua representação parlamentar, passando de um para quatro deputados. Para dar voz às minorias, entre as quais as mulheres afrodescendentes, para lutar pelos direitos dos animais ou para defender uma ideia de Portugal com base nos valores da família. Os eleitores deram-lhes quatro anos para, mais do que falar, fazer.
Desde o encerramento das urnas até ao final da contagem dos votos, o SAPO24 percorreu os locais que estes partidos escolheram para acompanhar a noite eleitoral — que se viria a revelar de celebração.
No Museu de Lisboa, Palácio Pimenta, assistimos, ao ar livre, à conferência de imprensa do PAN; seguimos para o Braço de Prata, Marvila, Lisboa, onde, submersos em cultura, conversámos com militantes e simpatizantes do Livre e terminámos a noite com a contagem final de votos, até à última, já no reduto do Chega, num Novotel, em Lisboa. É que se PAN já sabia ao que ia (só não sabia até onde ia), o Livre e, em especial o Chega, de André Ventura, tiveram de esperar até ao fim para gritar “vitória”.
(No que a novas vozes diz respeito, há ainda que salientar a conquista de um deputado pelo Iniciativa Liberal cujo relato da noite ficou nas mãos de Tomás Albino Gomes, ele que fez o roteiro da direita. Enquanto isso, o Pedro Botelho "guinou" à esquerda para contar a noite eleitoral)
PAN: Dois pavões e quatro deputados
Fred. Desengane-se quem pensa que se trata do nome de um aspirante a deputado. É um pavão branco que vive há nove anos no Museu de Lisboa, local de celebração eleitoral do Partido das Pessoas, Animais e Natureza. O animal ganhou o nome por se diferenciar da cor dos demais, conforme explica, informalmente, João Costa, segurança deste palácio no Campo Grande. “Vai para oito ou nove anos”, tem a companhia de Jerónima, acrescenta. “Suspeitamos que seja uma pavoa" que anda por ali “há três anos”, revela. “São 36 ao todo. São livres, como gaivotas, e dormem todos numa árvore, onde se sentem seguros”, explica o segurança do museu municipal, cujos jardins albergam ainda “patos, aves, um pica-pau, que ainda não vi, mas já ouvi e papagaios”, resumiu.
Fred e Jerónima pavoneiam-se pelo jardim das Tílias e ainda dão uma espreitadela à cozinha principal, local de refeição para jornalistas e simpatizantes. Serviram-se vários pratos, bem cuidados, de canapés, chocolate ou amendoins. Não entrou carne. Avisos escritos para se colocar as beatas num beateiro e uma caneta para marcar o nome nos copos para beber sumos, águas e cafés, explicaram o N (Natureza) do PAN.
Os pavões ora se aproximavam dos jornalistas, ora se assustavam com estes, que por sua vez, ou distribuíam migalhas ou fugiam a sete pés. A relação entre pavões e jornalistas encontrou semelhanças com a relação entre os simpatizantes e militantes e os profissionais dos media: muitos evitaram as perguntas e poucos se aproximaram. Dores de crescimento de um partido que “não está à espera deste mediatismo. Estão agora a habituar-se à política”, soltou alguém que preferiu não se identificar.
No entanto, Maria Fátima Cabral, 51 anos, respondeu às questões que lhe colocámos. Embora o partido tenha mais de uma década (só foi reconhecido pelo Tribunal Constitucional em 2011), só despertou para este em 2015, numa altura em que, diz, o partido aprofundou “as políticas e objetivos”, com os quais se identificou desde “a primeira hora”, tendo ainda sido cativada pelo “misto de trabalho e medidas”.
Alexandra Rodrigues, que já votou em vários partidos, “da esquerda à direita, mas não tanto à direita”, deixou-se seduzir pela iniciativa legislativa para o fim do abate de animais, na qual participou, tendo feito o mesmo no programa eleitoral.
Nelson Silva, que veio do “Bloco depois da morte de Miguel Portas”, disse “nunca” ter gostado muito de partidos, mas encontrou no PAN “um partido de causas, que pensa no futuro”, afirmou o militante.
Ontem, ao conquistar quatro deputados à Assembleia da República, foi tempo de ouvir o líder dizer que “o conservadorismo perdeu a maioria que tinha no parlamento" e que é tempo de "avançar em convergência com os valores do século XXI”.
Um Braço de Prata que já foi hospital e agora é multicultural e multiétnico
Por entre corredores encurtados por estantes sem fim, livros sem número certo e cartazes de espetáculos colados, subimos uma escadaria e parámos no primeiro andar, numa sala com a exposição da artista plástica brasileira Rosarlette Meireles. Nem de propósito, uma artista que se dedica a retratos de minorias étnicas — sendo que a exposição “Refugiados” retrata a ida à Guiné-Bissau. Já explicaremos.
Carla Santos, 39 anos, Antropóloga Social, pega na deixa. Está com o partido “acima de tudo pela candidata, pelo seu histórico, percurso em que me revejo”, sustentou Carla, também ela afrodescendente. “Precisamos de ter essa representatividade, mais mulheres e africanas, para ter a legitimidade de falar de temas das minorias”, disparou. “Temos que olhar para os municípios multiculturais, onde não temos essa representatividade. E vêm aí as autárquicas”, avisou.
A conversa foi tida a olhar para uma mesa, de partilha, cuja fartura inicial depressa foi rareando de comida. Produtos de origem africana, batatas fritas, palmiers, vinho e sumos fizeram parte do menu que foi sendo retirado de diversos sacos com os logos das grandes cadeias de distribuição. “Haja pão e ninguém fica mal”, exclamou uma voz anónima. Pão houve. Faltou foi o acompanhamento. Do lado oposto, ouviu-se “sou vegetariano”, disse alguém bem alto, junto à porta de saída da sala em nos encontrávamos. Ao lado, na sala Chaplin, para a meia-noite estava agendado um espetáculo reservado de Guida Scarllaty, um dos mais antigos e mais sonantes nomes da arte do travesti em Portugal.
Se hoje é a cultura quem mais ordena no Braço de Prata, frequentada por muitos jovens, urbanos, durante muitos anos foi a medicina do trabalho que comandou as operações na antiga Fábrica de Material de Guerra de Braço de Prata. Memórias trazidas por Maria do Rosário que ali exerceu a especialidade durante “mais de 20 anos”. “Este edifício diz-me imenso. Foi um local de grande aprendizagem. Não havia em Portugal um médico que tivesse contacto com tantas profissões e atividade fabril”, resumiu a médica que “foi das últimas a sair” e que se apresenta como “filha de um médico pneumologista que também exerceu medicina do trabalho” por aquelas bandas. “Simpatizante”, como se define, assumiu já “ter votado mais vezes” no Livre.
O nervosismo apodera-se à medida que a noite avança em apuramentos de freguesias. A expectativa sobre a possível eleição de um deputado à Assembleia da República tomava de assalto a sala cheia, com gente anónima espalhada pelos corredores. Uma assessora do partido deixou transpirar uma ponta de nervosismo, num ambiente saudável que não vivia da obsessão da eleição. “Estou com a 'noiva'”, disse, em jeito de brincadeira. À pergunta se a candidata por Lisboa, Joacine Katar Moreira estava nervosa, respondeu ao lado: “Não está garantido”. Puro engano. Foi eleita. A festa fez-se com abraços, gargalhadas, danças, onde entrou Rui Tavares e com a comida que havia. “Quero o sem-precedente. Joacine presente”, foi o hit da festa. De seguida entrou a voz e corpo de Joacine, uma das três afrodescendentes a sentar-se em São Bento na próxima legislatura, a par de Beatriz Dias (BE) e Romualda Fernandes (PS): “Não há lugar para a extrema-direita no parlamento”, disse, salientando que o Livre será “a esquerda antifascista e antiracista” na Assembleia da República, sublinhou.
Chega: a pressa de ser o primeiro a entrar na Assembleia da República
“Chega de roubalheira. Chega de bagunça, caos e, agora que atingimos o ponto alto, é preciso dizer chega”, atirou, a frio, Pedro Cassiano Neves, 54 anos, jurista e historiador. “Estamos fartos de impunidade e de ninguém respeitar os valores da família e as tradições”, continuou, dando seguimento à lista de reclamações numa sala do Hotel Novotel, em Lisboa. Depois de alguma ansiedade, que levou mesmo à saída precipitada de alguns apoiantes, chegou o tão esperado momento: “Pela primeira vez, Portugal terá um deputado que diz o que se diz à mesa, em casa e restaurantes e não está integrado no sistema”, atira.
Na sala imperavam homens, com algumas mulheres e crianças à mistura. Via-se barbas e bigodes bem desenhados e aparados. Heterogéneos nas idades. Sousa Lara, professor universitário, antigo deputado e secretário de Estado da Cultura de Cavaco Silva, atestou da “atitude nova relativa à política”, trazida pelo Chega. “É preciso dar cabo da Terceira República e criar uma nova, é necessário um novo fôlego pela via democrática”. “É preciso rebentar com as coisas aconchegadas”, acrescentou.
“Todos os partidos são liberais e todos têm preocupações sociais, mas este é único que à partida tem ética e é conservador dos bons valores. Faz a diferença”, atirou Cabral Moncada, secundado por Bernardo Meirelles, que enaltece “os valores da família”.
Se antes da confirmação da eleição, os apoiantes de André Ventura permaneceram na sala para convidados, na altura da apoteose acompanharam o líder partidário à sala de imprensa, onde os jornalistas esperavam a água e café.
Discurso de vitória com o autoelogio de ser o primeiro novo partido (o “único de direita”) a chegar mais rápido ao parlamento. Depois, a promessa de não ficar por aqui: quer ser governo. Até lá, promete não deixar as promessas por boca alheia.
A vontade de se sentar no hemiciclo foi tão grande que André Ventura convidou os seus pares a “marcharem” até à Assembleia da República. Assim foram de carro e uma vez lá chegados mostraram, para já, os seus dotes verbais. Cantaram o Hino de Portugal com uma bandeira na mão na escadaria da AR debaixo do olhar, distante, de alguma polícia.
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