Apesar de não estar no topo da lista dos países europeus com maiores níveis de consumo de álcool, Portugal continua a preocupar os especialistas, principalmente pelas restantes perturbações associadas à dependência.

Carolina Cabaços, médica psiquiatra e investigadora na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, alertou para o estigma associado à saúde mental, numa conferência na Unidade de Alcoologia de Coimbra, onde o SAPO24 esteve presente.

Segunda a investigadora, a estigmatização do “bêbado perigoso” tem grandes impactos na saúde, nas famílias e na autoestima do doente. Apesar de ser pouco estudado, e “até certo ponto descredibilizado face a outras condições médicas da dependência”, o estigma é altamente pejorativo para as dinâmicas sociais dentro e fora do hospital e até no acesso aos serviços de saúde.

“Nem todos os estigmas são visíveis a olho nu”, acrescenta, são estereótipos que agrupam e criam conflitos entre pessoas diferentes, algumas em situações mais vulneráveis. Em última instância, “promovem o consumo” e “limitam a liberdade destes doentes”.

As consequências do estigma

“Só existe estigma porque existe estigmatizador, que estabelece uma relação hierárquica, que privilegia quem está acima da assimetria de poder”, sublinha Carolina Cabaços. O estigma segrega grupos pelos papéis sociais que representam, pelo seu comportamento e rotula os doentes.

Para explicar essa assimetria, questiona quais as diferenças entre alguém com uma doença mental e uma perturbação de uso de álcool de alguém que se diz saudável. De facto, “a fronteira é difícil de definir” e facilmente motiva a descriminação “entre nós e eles, sem notarmos que podemos passar de um estado para o outro sem nos apercebermos”.

A médica dá o exemplo de em Portugal pelo facto de o "consumo estar tão normalizado", haver uma necessidade constante de se distinguir um "consumo saudável" do de um "bêbedo".

Segundo a investigadora, a própria psicologia social explica a necessidade de afirmarmos ser alguém diferente daquilo que tememos tornar-nos. O problema é sistémico e vai além da “perceção que temos sobre nós próprios e sobre os outros”.

Para um doente, a antecipação da rejeição pode gerar “graves dificuldades em aceitar que se tem um problema, porque entre ser saudável e ter um síndrome de dependência alcóolica há todo um espectro muito mais complexo que não é reconhecido. A passagem não é direta”, explica.

A perceção do estigma pode também levar à interrupção da medicação e ter consequências graves na autoestima, afetada pelas representações discriminatórias associadas à pessoa com perturbação do consumo de álcool.

“A forte conotação moral associada a este tipo de perturbações é percetível na culpa e na atribuição de rótulos”, observa a psiquiatra, acrescentando: “a magnitude do problema leva ainda a situações de abuso e negligência, desigualdades nos cuidados de saúde e à resistência na procura de ajuda”.

Ser isolado prejudica a saúde mental do doente

Contactos de apoio à saúde mental

Catarina Cabaços adiciona ainda que associada à perturbação do álcool pode estar também uma perturbação psiquiátrica. “Ou o doente tem dificuldade em aceitar o problema com o uso de substâncias ou em aceitar que tem uma perturbação psiquiátrica”, o que traz uma nova dimensão para o estigma internalizado.

A relação com os profissionais de saúde, a família e a comunidade em que está inserido potencia essas reações e promove o isolamento. “É mais fácil e economizador de tempo pôr as pessoas na mesma caixa e deixar que o viés nos influencie, porque de facto não existem esses recursos”. No dia a dia, “humanizar dá muito trabalho”, mas é necessário.

Como resultado, o cidadão comum “adota um comportamento defensivo” perante a pessoa que sofre com esse estigma. “Temos necessidade de nos afastar”, reforça, “e mostrar que somos diferentes”.

Esta reação tem também impacto no reconhecimento de que se tem um problema, até ao momento em que se consegue pedir ajuda. “Mesmo quando o doente não se sente discriminado, o estigma existe”, reforça. A interação com os profissionais de saúde determina, também, a forma como o doente perceciona o problema.

A intervenção no estigma internalizado

Carolina Cabaços tem um projeto de saúde mental associado à música: Desmente: Ouvir para Crer, um projeto de música de intervenção para a saúde mental.

A missão dos três músicos é "dar voz a quem vive com uma doença mental e contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e empática com maior literacia em saúde mental e menos preconceitos".

E, por isso, na sua opinião, a intervenção tem de acontecer a todos os níveis, porque só assim terá efeito. “E até podem inventar o medicamento mais XPTO, mas o problema [do estigma] vai estar sempre por baixo da pele e não vamos estar a abordar a verdadeira causa da perturbação mental, assim como na área das adições”, comenta.

“Mais estigma gera menos financiamento público, menor serviços de saúde, e significa uma perda para a sociedade, a partir do momento em que as pessoas se sentem privadas dos seus direitos e liberdades deixam de contribuir”, acrescenta Catarina Cabaços, referindo que, em última análise, “o estigma pode ainda ser uma causa da perturbação”.

“Quem tem mais estigma, tem mais probabilidade de desenvolver perturbações mentais e de consumo de álcool”, termina, acrescentando que, de facto, “a dependência está entre as condições médicas mais estigmatizadas do mundo, inclusive por parte dos profissionais”.

Catarina Cabaços ainda não tem uma resposta para o problema, mas começa por sugerir que a solução passa por olhar “para a linguagem e identificar quais são as crenças que queremos modificar”. No entanto, nem tudo depende “da educação e literacia”, defende, “se não os médicos não eram estigmatizadores”.

A intervenção tem de ser feita “pelo contacto pessoal, processos de empatia, nos diferentes níveis e papéis que desempenhamos: como familiar, colega de trabalho e ainda como cidadão com poder de voto”, termina.