Tudo mudou, no espaço de uma semana. O que antes era rotina, agora é muito impossível ou mesmo proíbido. Com as regras do estado de emergência, decretado a 20 de março devido ao atual surto da Covid-19, sair à rua é para alguns interdito, para todos os outros desaconselhável e sujeito a regras muito específicas.
Com a inibição da circulação pública em nome do isolamento social, foi também proibido o funcionamento da generalidade dos estabelecimentos e serviços, em particular os que trabalham com atendimento ao público. Mas não todos.
Foi para indicar as exceções que foi criado o “Estamos Abertos”, um projeto criado pela Câmara Municipal de Lisboa (CML), contando com o apoio da AHRESP - Associação da hotelaria, restauração e similares de Portugal, da UACS - União de Associações do Comércio e Serviços e das Juntas de Freguesia da cidade.
“O objetivo foi criar um diretório único que seja fácil para qualquer pessoa consultar os serviços, os negócios e os estabelecimentos que estão a funcionar em Lisboa, tendo em conta o Estado de Emergência em que estamos e os condicionamentos que existem”, informa João Camolas, assessor da CML, trabalhando com o vereador Miguel Gaspar.
Foi procurando informar o público dessa lista de exceções — que pode ser aqui consultada — que o mapa foi criado “internamente e em tempo recorde”. Abrindo o mapa, é possível ver Lisboa pontilhada de diferentes cores, cada uma indicando um tipo de estabelecimento conforme se pode verificar a legenda a acompanhar. Selecionando um desses pontos, é abre-se uma janela que identifica que tipo de estabelecimento é, o seu nome e morada, que serviços presta, contactos, horário, se faz takeaway e/ou entregas e que meios de pagamento aceita.
O mapa ainda se encontra numa fase inicial, com as informações apenas disponibilizadas pelos parceiros acima mencionados porque são “entidades que são mais próximas, estão no terreno e que têm acesso a essa informação já validada”, explica João Camolas. No entanto, o objetivo é este mapa ir ficando cada vez mais repleto de pequenos pontos às cores e para tal acontecer passa pela participação pública.
“Numa segunda fase, vamos disponibilizar um formulário online, qualquer pessoa vai poder submeter o seu próprio negócio e vamos tornar aquela plataforma um bocadinho mais colaborativa, adianta o assessor da CML, especificando que tanto responsáveis por estabelecimentos como outros cidadãos vão poder ajudar. “Qualquer pessoa poderá submeter negócios do seu bairro de que tem conhecimento, desde que saiba aqueles campos de informação que vamos pedir”, indica João Camolas.
Tendo também em conta que nem toda a gente se sente confortável a usar a internet ou tem sequer acesso à mesma, João Camolas sublinha que o site permite imprimir listagens e exportar bases de dados para que se distribuir as folhas com os contactos a quem necessite.
Mas para além de indicar quais os locais abertos, a CML quis certificar-se que as pessoas não abandonam mesmo os seus lares ao contactar diferentes operadores de transportes para fazer entregas de negócios que não dispusessem desse serviço.
“Tentámos fazer a ponte com um operador de Taxi, a Cooptáxis, e com um de TVDE, a Kapten. Eles criaram uma oferta que permite aos comerciantes disporem de um serviço de entrega ao domicílio através deles”, indica João Camolas. No entanto, já depois desta conversa com o SAPO24, a CML anunciou que operadora de entregas Glovo também passou a trabalhar neste regime.
As entregas feitas com estes serviços tem um custo acrescido de quatro euros (cinco com a Glovo), mas o assessor frisa que o contrato é “feito entre o comerciante e o operador”, sendo que a câmara “só teve o papel de colocar as duas partes em contacto”.
Assim, esta iniciativa, adianta o assessor, permite que “as pessoas possam evitar sair de casa ou juntar-se em vão à procura daquilo que precisam”, mas também ajuda a “continuar a manter alguma atividade comercial” dos estabelecimentos em funcionamento. “Tudo o que permitir a estes negócios manter a sua atividade regular são iniciativas válidas e que nós devemos apoiar e criar”, justifica.
Entre o ceticismo e a cautela, a entreajuda deve imperar
Tanto o impacto negativo da crise como o positivo deste mapa ainda são difíceis de calcular, e é com um espírito cauteloso que os comerciantes se manifestam quanto ao futuro.
Proprietário do Pomar de Alvalade, restaurante situado no bairro que lhe dá nome e que já está presente no mapa, Carlos Martins acolhe esta medida de braços abertos mas considera ainda ser “muito prematuro” aferir o seu impacto. “Não sei é quais benefícios que podemos ter. As pessoas não podem andar na rua…”, confessa.
Como todos os outros restaurantes a operar neste momento, o Pomar de Alvalade não pode servir refeições no seu estabelecimento, limitando-se a confecionar para takeaway, já que não aderiu ao sistema de entregas facilitado pela iniciativa, com Carlos a dizer não ter sido contactado.
Neste momento, o volume de negócio desceu para "1%, talvez 2%, não mais", o que se traduz em “10 ou 11 refeições por dia, 13 no máximo". A quebra foi brutal, de tal forma que “nem os mais otimistas estariam preparados para uma situação destas", defende. Apesar de tudo, quer acreditar que a retoma vai acontecer mais cedo do que se crê.
Enquanto tal não acontece, há que procurar soluções no imediato. Para Miguel Peres, dono do restaurante Pigmeu, estas passam pela criação de “cadeias curtas de abastecimento e apoiar o comércio local”.
Esse espírito de entreajuda, diz, está bem presente no Campo de Ourique, bairro onde o Pigmeu se localiza, e tem sido fomentado pela própria Junta de Freguesia. Tal pode explicar porque é que no mapa “Estamos Abertos” — que considera ser “ótima iniciativa” —, o bairro é daqueles que mais espaços tem listados, já que “a junta já tentava fazer algumas iniciativas com o comércio local sem ser em tempos de crise” e “se calhar também foi mais fácil porque já tinham esse levantamento feito”.
É com esse comunitarismo em mente que o Pigmeu não só decidiu fazer o seu abastecimento junto de outros negócios locais, como decidiu lançar um serviço de entregas de mercearia, para além das entregas de refeições que já fazia.
“Juntámo-nos com os nossos produtores e fornecedores e lançámos no site uma mercearia online que faz entregas todas as quartas e sábados e que permite aos nossos clientes encomendar vegetais, carne, pão, legumes, vinho”, explica Miguel Peres. Depois das escolhas serem feitas, os clientes podem levantar na loja ou receber em casa por um valor de entrega, sendo grátis para todas as pessoas acima de 65 anos ou que sejam profissionais de saúde.
O sucesso foi imediato, tanto que as encomendas desta semana já esgotaram, mas Miguel Peres não pretende lançar os foguetes para já, porque o impacto desta paragem foi “gigante, não só para o Pigmeu, como para qualquer outro restaurante que vivia de portas abertas”.
Segundo o proprietário, as entregas e a mercearia ajudam a equilibrar as contas, mas "ainda falta um bocadinho”. “Estamos na luta, a tentar ter ideias, a sermos criativos, a tentar arranjar maneiras de, pelo menos, chegarmos ao final de cada mês e pagar os salários. Neste momento não estamos a conseguir, temos as nossas reservas para os primeiros tempos, mas vamos ter de arranjar mais soluções” afirma Miguel Peres.
No seu caso, com um restaurante pequeno e com uma equipa reduzida, o futuro é desafiante, até porque é preciso manter “quatro postos de trabalho que no fundo são o rendimento de quatro famílias”, mas Miguel Peres vê outros casos com maior preocupação.
"As empresas locais de cada bairro estão muito em risco, porque enquanto nós conseguimos criar rapidamente um site em dois dias para vender produtos, alguém mais velho vai ter mais dificuldade de se adaptar neste momento", lamenta.É por isso que deixa um apelo aos consumidores e recorda o papel do mapa “Estamos Abertos”, pedindo a que cada um procure no seu bairro “quais são os negócios que quer apoiar e fazer lá as compras”.
A necessidade de reinvenção
Nem só de restaurantes se faz este mapa: talhos, mercearias, farmácias, papelarias ou lojas com requisitos específicos podem continuar a operar e estão representadas neste mapa. É o caso da Loja da Avô, estabelecimento especializado não só na venda de bens para o mercado sénior, como também em serviços de apoio domiciliário.
Ana Garcia, proprietária e responsável pela loja, considera a iniciativa “muito boa”, até porque “todas as ajudas nesta altura são poucas". Numa primeira fase, a situação de estado de emergência não afetou muito as vendas porque os consumíveis que têm à disposição — “fraldas, cremes, toalhitas, coisas que as pessoas compram quando os seniores estão acamados” — mas agora a situação é outra.
Mesmo tendo em conta que o seu público alvo, a terceira idade, é um dos grupos de risco que está impedido de abandonar a sua residência durante a pandemia, Ana Garcia recorda que, por norma, os clientes que fazem as compras são os filhos. Ainda assim, sentiu “um grande impacto” porque também estes ”não estão na rua"
“O impacto é brutal. Nós estivemos abertos hoje das 10 às 16 e vendas muito pouco”, lamenta Ana Garcia. Mesmo avisando os clientes através da sua página de Facebook que a loja continuava aberta e que era possível fazer pedidos por email ou telefone, foram poucas as solicitações.
O que permite à proprietária manter a sua loja aberta é o facto de ter um serviço de entregas, agora mais necessário do que nunca. Para diminuir os riscos de contágio dos seus trabalhadores, Ana diz que estes vão trabalhar duas vezes por semana, pois é "quando há entregas dos fornecedores”, tentando assim conciliar o fornecimento com a agenda de entregas para os clientes.
Ainda assim, apesar de já acostumada aos sistemas de entregas e ao meio digital, Ana Garcia diz não saber muito bem ainda como irá lidar com os próximos meses. “Este período, por um lado é uma tragédia para todos nós, por outro, obriga-nos a reinventar um bocado as coisas”, confessa, dizendo que a aposta no online não só será uma aposta, mas sim uma necessidade absoluta.
“O que fizemos até agora não é suficiente porque não nos conseguimos manter exclusivamente com o comércio online, nem de perto nem de longe, nem um salário paga. É porque não o estamos a fazer bem", considera. Do “passa-a-palavra”, será agora necessário “angariar novos mercados”.
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