Toi, assim conhecido na terra, é dono de uma mercearia frequentada por migrantes do subcontinente indiano que trabalham nos campos alentejanos – tal como Catarina Eufémia fazia, em 1954, quando, na sequência de uma greve de assalariadas rurais, foi assassinada pelas costas por um agente da GNR, tornando-se mártir da ditadura salazarista.
“Eles compram de tudo. A princípio não bebiam, não levavam bebidas alcoólicas, mas agora já levam. Batatas, cebolas, gastam muita cebola, vinho, daquele barato”, conta.
“Especiarias é que eles gastam muito. Gengibre! Eu nem conhecia gengibre”, confessa, explicando que começou a adquirir “esses produtos que não se vendiam [antes], porque ninguém procurava”.
Toi pede auxílio à ajudante de mercearia para se lembrar de mais uma novidade que introduziu nas prateleiras e, ‘voilà’, couscous!
“Agora está mais fraco, mais parado. Eles agora têm pouco trabalho, não vêm tanto e, quando vêm, em vez de gastar dez gastam só dois, três [euros]”, compara.
Ali bem perto há habitações onde se concentram migrantes, da Índia, Nepal, Bangladesh. Estão por casa, sem trabalho.
O cenário repete-se no centro de Beja, nas traseiras de uma casa apalaçada. A porta que dá para a rua não deixa perceber o que se passa no interior – num só quarto, duas dezenas de migrantes de origem asiática, todos homens, encavalitam-se em beliches.
Uns dormem ainda, outros cozinham, ali mesmo, em latas de tinta, alguns conversam. São dois por três metros quadrados, não mais. Passa uma pessoa entre as duas fileiras de beliches e é difícil não raspar nalgum dos ocupantes, quanto mais pensar em distanciamento para evitar a covid-19.
Ali, a pandemia é outra e chama-se desemprego. Aqueles homens estão prostrados, à espera que algo aconteça, sem nada para fazer, numa região que pouco mais tem para lhes oferecer do que trabalho sazonal, no campo.
Sumit, nome fictício, indiano de 30 anos, desabafa: “Não estou feliz aqui, não há regras, empregos, nada.” Mas resigna-se a ficar, para obter autorização de residência e trazer a família para Portugal.
“Não me parece que isto seja uma casa… É uma velha pensão, má. [Pago] cem euros por uma cama e coabitamos talvez umas 15 a 20 pessoas num único grande quarto. A situação é muito má. Tudo é velho aqui, olha à volta, esta casa de banho, esta cozinha devem ter uns cem anos, tudo é mau aqui”, descreve.
Chegado em setembro de 2019, Kishore Kumar também é migrante de origem indiana, mas já subiu um degrau na escala social – tem a sua própria empresa, através da qual contrata pessoas para fazerem trabalhos agrícolas nas quintas da região.
“É um tempo difícil para as pessoas que trabalham na agricultura, não são bem pagas. Em Portugal, estrangeiros da Índia, Paquistão, Nepal e Bangladesh são a coluna vertebral da agricultura, estão a suportar a agricultura, viajam uma hora para o trabalho, outra hora de volta, para jornadas de oito horas, em condições difíceis, e recebem salários muito baixos”, denuncia.
Em Beja, o casal Jawsinder Kaur, 28 anos, e Charanjit Singh, 25 anos, recém-pais de Naureen, pagam 500 euros de renda por um T2 (sem despesas incluídas). Dormem os três no mesmo quarto – no outro, em frente, estão dois estudantes.
É frequente haver famílias que dividem casa com outras pessoas, o que gera “constrangimentos”, porque “perdem toda a privacidade familiar”, relata Teresa Martins, assistente social da Cáritas de Beja, que gere o Centro Local de Apoio à Integração de Migrantes.
A habitação, diz, “é um grande constrangimento à integração da comunidade neste território”, onde “as rendas são muito caras”.
O casal Jawsinder e Charanjit vai ter de deixar a casa em julho e não sabe para onde vai viver a seguir, com a filha de três meses, que nasceu prematura em Évora.
Casaram-se na Índia e passaram a lua de mel na Holanda, onde tinham família a viver. Foi aí que ouviram falar de Portugal, um país “com muita história” – tal como a cidade que os viu nascer, Amritsar, centro da religião sikh, no estado indiano do Punjab.
Chegaram em 2019 e decidiram ficar. “Viemos para Beja em abril do ano passado. Foi uma boa decisão, sem dúvida que Beja é uma boa cidade, com muitos supermercados, centros comerciais, é muito confortável, há muito transportes. O problema é que é muito difícil encontrar casa e trabalho”, queixa-se Jawsinder.
Com mestrado em inglês, chegou a dar aulas no Punjab. Em Portugal, trabalhou num restaurante, onde aprendeu algumas palavras (garfo, copos) e a perguntar “tudo bem?”.
Na verdade, nem por isso, admite, mas sem nunca perder o sorriso. Quer assentar em Portugal e elogia a facilidade em obter autorizações de residência. “Noutros países é muito difícil, são precisos muitos anos de espera”, compara.
Considerada mais aberta, a política migratória de Portugal é o principal motivo que atrai migrantes do subcontinente indiano – que, por seu lado, vieram preencher as vagas no setor da agricultura.
Em 2019, a Índia foi origem do 4.º fluxo migratório mais relevante para Portugal, atrás de Brasil, Reino Unido e Itália.
Estamos agora no Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina, com clima ameno e terrenos planos e arenosos, mas poucos braços para a agricultura e gente envelhecida.
Entre 2010 e 2018, o concelho de Odemira mais que duplicou a população migrante, para 24,8%.
“Há dois, três anos tínhamos, mercê da legislação que estava em vigor, uma dificuldade grande em ter a mão de obra que precisávamos de ter”, recorda o presidente da associação dos Horticultores, Fruticultores e Floricultores dos Concelhos de Odemira e Aljezur.
À entrada da Summer Berry Company, em São Teotónio, Odemira, onde a paisagem alentejana está agora pontuada por estufas, Luís Mesquita Dias realça que as alterações na legislação facilitaram o acesso, mas também colocaram “pressão” sobre as estruturas sociais da região. A habitação “é um problema na região não só para os migrantes, mas também para os próprios locais”, assinala.
Desde 2020 que as quintas, “na ausência de habitação nas povoações”, podem instalar os trabalhadores nos seus terrenos. Porém, “é de uma burocracia tal que as empresas têm dificuldade em passar isso à prática”, critica.
A Summer Berry Company, que emprega duas centenas de trabalhadores e produz sobretudo framboesas, dispõe de 30 contentores habitacionais. Dentro de cada um, dois beliches, em quartos autónomos, uma casa de banho, cacifos altos, uma janela.
Fora, numa mesa corrida de madeira, Amrit, indiano de 22 anos, conversa com mais cinco migrantes. Estão todos de saída para o almoço na cantina, que oferece pratos portugueses, asiáticos e vegetarianos. Na parede, cinco relógios de parede indicam as horas em Lisboa, Nova Deli, Katmandu, Daca, Sófia.
A seguir ao almoço, um grupo vai aproveitar o autocarro fornecido pela empresa para ir às compras a São Teotónio. No carrinho põem ovos, salada, fruta, chá darjeeling.
Rui, o motorista, conta que nas primeiras viagens os migrantes “não percebiam por que não podia ir mais gente no autocarro”, quando nos seus países o chão também é assento.
Dos indianos diz que “são mais reservados e falam um dialeto próprio para os outros [asiáticos] não perceberem”.
Na empresa agrícola Maravilha Farms também reina a framboesa, mas não há dormitórios para trabalhadores. Na sua grande maioria asiáticos, distinguem-se pelas tonalidades de pele, pela língua que falam, pelo que vestem - os tailandeses, por exemplo, usam máscaras totais, apenas dois buracos para os olhos, para se protegerem do sol.
O indiano Prince Polsingh chegou à empresa em 2018, mas a Portugal há sete anos, menor de idade, juntamente com os pais. Os irmãos ficaram na Índia.
Na quinta, há quem trabalhe na colheita e quem trabalhe na tutoragem (tratar das plantas). É o caso de Prince e acompanhá-lo num túnel de estufim é como entrar dentro de uma colmeia. O zumbido das abelhas é ensurdecedor.
Prince não tinha framboesas, agora a sua fruta preferida, no Punjab, onde o cultivo “é mais difícil” e planta-se pimento, tomate e brócolos.
Com 22 anos, já fala um pouco de português, suficiente para explicar o que tem de fazer: ter muito cuidado para não partir as plantas. “Quando a planta parte, não dá fruta nem nada”, resume.
Prince participa no programa “Português para Todos”, projeto de filantropia da Maravilha Farms, onde 95% dos trabalhadores são estrangeiros – aos 300 de base juntam-se os sazonais, nos picos de campanha.
Após um questionário que identificou claramente a barreira linguística como o maio obstáculo à integração, a empresa contactou os agrupamentos de escolas locais e conseguiu que o Ministério da Educação financiasse 20 turmas (470 alunos) de português para estrangeiros no ano letivo de 2019/2020.
Como a mobilidade desta população é muito complicada, a empresa tem um acordo com a rodoviária, que assegura quatro carreiras que trazem os trabalhadores para a quinta. Às vezes, os migrantes já conseguem fazer uma ‘vaquinha’ para comprar um carro, que há de ser comunitário.
[Sofia Branco (texto), Mário Cruz (fotos), da agência Lusa]
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