"Concretamente, solicito à Assembleia da República que pondere clarificar quem define a incapacidade física do doente para autoadministrar os fármacos letais, bem como quem deve assegurar a supervisão médica durante o ato de morte medicamente assistida", escreveu o chefe de Estado, na carta dirigida ao parlamento.
Marcelo Rebelo de Sousa argumenta que "numa matéria desta sensibilidade e face ao brevíssimo debate parlamentar sobre as duas últimas alterações, afigura-se prudente que toda a dilucidação conceptual seja acautelada, até pelo passo dado e o seu caráter largamente original no direito comparado".
O quarto diploma do parlamento sobre a morte medicamente assistida foi aprovado em votação final global em 31 de março e, após fixação de redação final, publicado em Diário da Assembleia da República na quinta-feira passada, 13 de abril.
Em nota divulgada pela Presidência da República sobre este veto, refere-se que nesta decisão "o Presidente debruça-se, apenas, sobre o aditamento introduzido nesta nova versão, que vem considerar que o doente não pode escolher entre suicídio assistido e eutanásia, pois passa a só poder recorrer à eutanásia quando estiver fisicamente impedido de praticar o suicídio assistido".
Na opinião do chefe de Estado, "como resultado dessa inovação, importa clarificar quem reconhece e atesta tal impossibilidade" e, "por outro lado, convém clarificar quem deve supervisionar o suicídio assistido", definindo-se "qual o médico que deve intervir numa e noutra situação".
"O Presidente da República entende que em matéria desta sensibilidade não podem resultar dúvidas na sua aplicação, pelo que solicitou à Assembleia da República que clarificasse estes dois pontos, tanto mais que se trata de uma solução não comparável com a experiência de outras jurisdições", acrescenta-se na nota.
Na carta dirigida à Assembleia da República, Marcelo Rebelo de Sousa refere que o Tribunal Constitucional, quando declarou inconstitucional a anterior versão do decreto sobre esta matéria, considerou que não estava claro se era exigido "cumulativamente, sofrimento físico, psicológico e espiritual, ou se bastaria um deles para justificar o recurso à morte medicamente assistida".
"O legislador retomou agora a versão originária da norma, a qual se limitava a referir o sofrimento de grande intensidade, sem especificar de que natureza se tratava", mas "resolveu ir mais longe, alterando duas outras normas, estas relativas à relação entre o suicídio assistido e a eutanásia", realça.
O Presidente da República menciona que houve declarações de voto de juízes do Tribunal Constitucional nesse acórdão n.º5/2023 expressando "censura pelo facto de o legislador não ter determinado qualquer relação entre o suicídio assistido e a eutanásia, parecendo que era possível a opção entre ambos".
"Ora, nesta nova versão, o doente deixa de ter o direito à escolha entre suicídio meramente assistido ou eutanásia", salienta o chefe de Estado.
Em causa está a nova norma introduzida no decreto segundo a qual "a morte medicamente assistida só pode ocorrer por eutanásia quando o suicídio medicamente assistido for impossível por incapacidade física do doente".
Além desta, Marcelo Rebelo de Sousa destaca outra alteração "estabelecendo-se que a administração de fármacos letais pelo médico ou profissional de saúde ocorre quando o doente estiver fisicamente incapacitado de os autoadministrar".
Segundo o Presidente da República, "suscita-se, assim, a questão de saber quem define tal situação". No seu entender "a supressão da escolha entre suicídio meramente assistido ou eutanásia" agora introduzida levanta também problemas de "compatibilização" com a restante redação do decreto.
O decreto hoje vetado que regula as condições em que a morte medicamente assistida deixa de ser punível, alterando o Código Penal, foi aprovado no parlamento em votação final global em 31 de março, com votos a favor da maioria da bancada do PS, da Iniciativa Liberal, do Bloco de Esquerda, de seis deputados do PSD e dos deputados únicos de PAN e Livre.
Teve votos contra da maioria da bancada do PSD, Chega, PCP e de cinco deputados do PS. Houve duas abstenções, de um deputado socialista e de um social-democrata.
Este é o quarto decreto aprovado pelo parlamento para que a morte medicamente assistida deixe de ser punível em determinadas condições.
Propõe-se que possa ocorrer legalmente "por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento de grande intensidade, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde".
Quando surgiram as primeiras iniciativas legislativas sobre esta matéria, Marcelo Rebelo de Sousa, católico praticante, defendeu um longo e amplo debate público, mas colocou-se de fora da discussão, remetendo o seu papel para o fim do processo legislativo parlamentar.
Ao receber o primeiro decreto do parlamento sobre esta matéria, enviou-o para o Tribunal Constitucional, que o declarou inconstitucional em março de 2021, por insuficiente densificação normativa.
Em novembro de 2021, perante o segundo decreto, o chefe de Estado usou o veto político, por considerar que continha expressões contraditórias.
Já na atual legislatura, ao receber o terceiro decreto do parlamento, enviou-o para o Tribunal Constitucional, que o declarou inconstitucional, em 30 de janeiro.
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