A escritora Lídia Jorge presidiu às comemorações do 10 de Junho em Lagos. No seu discurso, lembrou "a data da morte de um poeta", Luís Vaz de Camões, para falar "numa obra tão vigorosa" que fala da "vitalidade de um povo".

"A fidelidade que Camões manteve em relação à pátria, quando estava em paragens tão remotas", é também ponte para todos os portugueses que atualmente estão longe do seu país. "As comunidades portuguesas são corpo essencial do nosso ser identitário", realça.

A escritora lembrou ainda a importância de Lagos no tempo dos descobrimentos, história também contada pelo poeta. "Sobre este areais aconteceram acontecimentos decisivos para o mundo. Lagos e Sagres representaram tanto".

Lídia Jorge referiu também alguns temas do passado que se refletem na atualidade, como o tráfico negreiro e os perigos do racismo.

A escritora Lídia Jorge alertou ainda contra a possibilidade de loucos atingirem o poder e contra “a fúria revisionista que assalta pelos extremos”, num discurso em que condenou o racismo, a escravatura e a cultura da mediocridade.

Na sua intervenção, com cerca de 30 minutos, citou Shakespeare, Camões e Cervantes, “três autores perceberam bem que, em dado momento, é possível que figuras enlouquecidas, emergidas do campo da psicopatologia, assaltem o poder e subvertam todas as regras da boa convivência”.

“O poder demente, aliado ao triunfalismo tecnológico, faz que a cada dia, a cada manhã, ao irmos ao encontro das notícias da noite, sintamos como a terra é disputada. E os cidadãos são apenas público que assiste a espetáculos em ecrãs de bolso. Por alguma razão, os cidadãos hoje regrediram à subtil designação de seguidores e os seus ídolos são fantasmas”, indicou.

Depois, numa crítica ao racismo, a escritora referiu que "em pleno século XVII cerca de 10% da população portuguesa teria origem africana – população que os portugueses tinham trazido arrastados”.

“O que significa que por aqui ninguém tem sangue puro e a falácia da ascendência única não tem correspondência com a realidade, cada um de nós é uma soma do nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco, do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou”, declarou.

Neste contexto, a conselheira de Estado criticou “a fúria revisionista que assalta pelos extremos nos dias de hoje um pouco por toda a parte”, um revisionismo que coloca em causa “os fundamentos institucionais científicos, éticos, políticos”.

“O princípio da exemplaridade - essa conduta que fazia com que o rei devesse ser o mais digno entre dignos - está a ser subvertido pela cultura digital. O escolhido passou a ser o menos exemplar, o menos preparado, o menos moderado, o que mais ofende”, apontou

Numa alusão ao Presidente norte-americano, referiu que “o chefe de Estado de uma grande potência, durante um comício, disse adoro-vos, adoro os pouco instruídos”.

“E os pouco instruídos aplaudiram. Pergunto pois qual é o conceito hoje em dia de ser humano, como proteger esse valor que até há pouco funcionava e não funciona mais”, completou.

No seu discurso, Lídia Jorge realçou a importância das “terras do infante”, entre Lagos e Sagres, na História de Portugal, salientou a atualidade de Camões, mas não fugiu à polémica sobre a escravatura como “remorso” da epopeia dos Descobrimentos.

“Sagres passou para a História e para a mitologia como lugar simbólico de uma estratégia que mudaria o mundo. Mas existe uma outra perspetiva - e hoje em dia o discurso público que prevalece é sem dúvida sobre o pecado dos descobrimentos e não sobre a dimensão da sua grandeza transformadora. Lagos oferece às populações atuais, a par do lado mágico dos Descobrimentos, também a imagem do seu lado trágico”, considerou.

De acordo com a conselheira de Estado, “Lagos expõe a memória desse remorso” e “mostra esse passado ao mundo para que nunca mais se repita”.

“Lagos, a cidade dos sonhos do Infante D. Henrique, de que Sagres é metáfora passados todos estes séculos, promove a consciência sobre o que somos capazes de fazer uns aos outros”, acentuou a presidente das Comemorações do 10 de Junho de 2025.

A partir deste ponto relativo à escravatura, Lídia Jorge falou sobre a realidade atual dos migrantes.

“A cena nossa contemporânea passa-se no mar, num navio enorme com armas defensivas, quando um tripulante avista ao longe uma barca frágil, rasa, carregada de imigrantes”, disse.

Na parte inicial do seu discurso, Lídia Jorge destacou a atualidade de Camões, considerando “reconfortante saber que os professores deste país o continuam a ler às crianças, o que mostra que os portugueses continuam vivamente enamorados pelo seu poeta maior”.

“Ao regressarmos a todos esses versos escritos há quase 500 anos, encontramos coincidências que nos ajudam a compreender os tempos duros que atravessamos. Camões, tal como nós, conheceu uma época de transição, assistiu ao fim de um ciclo”, acrescentou.

Marcelo, "as naus do futuro" e o cuidado dos compatriotas

Marcelo Rebelo de Sousa, que falou pela última vez num 10 de Junho, num discurso com cerca de dez minuto, lembrou que foi de Lagos que partiram "as naus do futuro" e que é nesta cidade que "hoje se encontram tantos dos nossos emigrantes regressados à pátria", juntamente com pessoas de outros locais do mundo.

"Aqui somos chamados a recordar, a recriar e a agradecer", apontou o presidente da República. "Este recriar Portugal é a nossa obrigação primeira neste novo ciclo da nossa História, 50 anos depois de termos chegado à democracia e à liberdade", declarou o chefe de Estado.

"Mas recordar é também recriar. Temos o dever de nos recriar, de nos ultrapassar, cuidar melhor da nossa gente, para que seja mais numerosa, mais educada, mais atraída a ficar nesta pátria feita de um retângulo e dois arquipélagos, se quiser ficar, ou a partir para voltar, e nunca perder a saudade da terra, se quiser partir", defendeu, em seguida.

Segundo o Presidente da República, é preciso "cuidar mais do que puder e dever ser feito, produzido, inovado, investido, exportado e sobretudo proporcionado a quem é nela a viver".

"Cuidar dos que já ficaram para trás ou estão a ficar. E são sempre entre dois e três milhões, e são muitos há muito tempo, regime após regime, situação após situação, intoleravelmente são muitos, são de mais", prosseguiu, condenando a pobreza que persiste no país.

"Nós somos portugueses porque somos universais — e somos universais porque somos portugueses", disse Marcelo, lembrando de seguida que é preciso olhar com atenção para o povo.

O chefe de Estado e comandante supremo das Forças Armadas apelou também a que se cuide dos emigrantes portugueses, "compatriotas que todos os dias criam Portugal por todo o mundo", e "do mar, dos oceanos".

"[Há que] cuidar da fraternidade com os povos e os estados que como nós falam português e fazem do português uma grande língua mundial. Cuidar da nossa pertença na Europa, unida, aberta, que acredita em valores humanos, de dignidade, respeito pelas pessoas, seus direitos e deveres, sua pluralidade de cultura e de vida", acrescentou.

Além disso, o presidente da República descreveu os portugueses como uma mistura de povos vindos de todas as partes ao longo de séculos e defendeu que ninguém se pode dizer mais puro ou mais português.

Ao "recordar os quase 900 anos da pátria comum", Marcelo Rebelo de Sousa expressou "orgulho naqueles que a fizeram, vindos de todas as partes: gregos, fenícios, romanos, germânicos, nórdicos, judeus, mouros, africanos, latino-americanos e orientais".

"E desde as raízes, lusitanos, lioneses, borgonheses, gauleses, saxões, os mais antigos aliados políticos. Recordar esses e muitos mais que de nós fizeram uma mistura, em que não há quem possa dizer que é mais puro e mais português do que qualquer outro", acrescentou.

No início da sua intervenção, o Presidente da República referiu que antigamente em Lagos "se somavam os estaleiros das naus do futuro e o mercado dos escravos" e agora se cruzam "emigrantes regressados à pátria conjuntamente com residentes europeus, das Américas, das Áfricas e das Ásias".
Marcelo Rebelo de Sousa retratou o passado de Portugal como composto por guerras perdidas e vencidas, independências perdidas e recuperadas, epopeias, acertos e erros.

"[Há que recordar] o que delas soubemos acertar, aprender, converter em futuro nosso e da humanidade, mas também o que errámos, o que desperdiçámos, o que não fizemos em continentes e oceanos", disse.

"Tudo isto e muito mais definiu o que somos: experientes, resistentes, criativos, heróis nos momentos certos, capazes de falar línguas, de entender climas e usos, de conviver com todos, de fazer construindo dia a dia pontes", considerou.

*Com Lusa