“Um estudo recente afirma que na Bélgica, que tem há quase 20 anos uma lei tolerante sobre o direito de as pessoas decidirem [eutanásia], as pessoas que mais recorriam à morte antecipada tiveram acesso a cuidados paliativos”, disse à agência Lusa o médico Bruno Maia, coordenador do Movimento Cívico Direito a Morrer com Dignidade, que há quatro anos avançou com a petição que lançou o debate no país sobre a despenalização da eutanásia, tema que volta a ser discutido no parlamento no dia 20.

O estudo, publicado em 2017 na revista internacional Palliative Medicine, refere que a percentagem de pessoas que teve acesso a cuidados paliativos na Bélgica é superior entre os que solicitaram eutanásia do que na restante população que não morre de morte repentina.

“É curioso, ou seja, das pessoas que não quiseram cuidados paliativos ou que tiveram dificuldades no acesso, a maioria não queria eutanásia”, enquanto as que tiveram acesso a estes cuidados “a maior parte delas queria antecipar a sua morte”, comentou o médico.

Nesse sentido, “as duas coisas não são nada antagónicas e não são nada contraditórias”, sublinhou o coordenador do movimento, que lançou a petição “Profissionais de saúde apelam à despenalização da morte assistida”, que já foi assinada por quase mil pessoas.

Os peticionários apelam para a “aprovação de uma lei que defina com rigor as condições em que ela [eutanásia] possa vir a verificar-se sem penalização dos profissionais de saúde”.

“Uma lei que não obrigue ninguém, seja doente ou profissional, mas que permita a cada um encarar o final da vida de acordo com os seus valores e padrões”, defendem na petição.

O psiquiatra Júlio Machado Vaz é uma das personalidades que apoia este movimento. Em declarações à Lusa, defendeu que cada pessoa “tem o direito de, em determinadas situações, considerar que aquilo que lhe está a acontecer já não é viver, mas apenas sobreviver, e que nessas condições de vida prefere partir mais cedo”.

“A minha vida é aquela que eu construí naquilo que dependia de mim e daquilo que me foi acontecendo porque nós não controlamos as nossas vidas” e “eu acho que tenho o direito de tentar viver essa vida de acordo com os meus conceitos de dignidade até ao fim”, defendeu.

“Se eu não pude ser ouvido, por definição, no início da minha vida, em contrapartida, gostaria de ter o direito de ser ouvido no fim da minha vida, porque a morte sempre fez parte da vida”, sustentou o médico.

Sobre os argumentos usados no debate sobre a eutanásia, Júlio Machado Vaz afirmou que todos concordam que “Portugal não tem, nem de perto nem de longe, a cobertura necessária em termos de cuidados paliativos”.

“Talvez todos nós tenhamos alguma responsabilidade nisso porque não pressionamos suficientemente os diversos governos para que os meus colegas que trabalham nessa área tenham melhores condições de trabalho”, sublinhou.

Para o médico, onde há divergências é na visão defendida por muitos clínicos e outros cidadãos de que, se existirem “os cuidados paliativos por todos desejados, isso significará que ninguém terá necessidade de pedir o direito a terminar a sua vida”.

“Aqui há diferença de opiniões porque, pese embora todo o avanço que a medicina em geral teve e, por arrasto os cuidados paliativos, o facto de sermos hoje em dia capazes, por exemplo, de dominar como nunca a dor física, não é sinónimo de sermos capazes de dominar o sofrimento, sobretudo, no contexto, que eu e outros defendemos, de que a morte faz parte da vida”, vincou.

Relativamente ao referendo sobre a eutanásia, afirmou que se acontecer aceitará “a decisão de quem de direito”, mas considera que “não tem lógica nenhuma” fazê-lo, porque “o que está em causa não é nenhum conflito de interesses”.

“É um conflito entre aqueles que defendem que a pessoa tem o direito de decidir sobre a sua própria vida e o seu fim e aqueles que, com a melhor das intenções, convencidos dos seus argumentos, esperam, ganhando o referendo, impor a outros aquilo que é a sua vontade porque é bom recordarmos a questão básica, ninguém é obrigado a pedir para morrer”, disse Júlio Machado Vaz.

A Assembleia da República debate em 20 de fevereiro cinco projetos de lei, do BE, PS, PAN, PEV e Iniciativa Liberal, sobre a despenalização da morte assistida, que preveem essa possibilidade sob várias condições.

Em 2018, o parlamento debateu projetos de despenalização da eutanásia, apresentados pelo PS, BE, PAN e Verdes, mas foram todos chumbados, numa votação nominal dos deputados, um a um, e em que os dois maiores partidos deram liberdade de voto.

Há dois anos, o CDS votou contra, assim como o PCP, o PSD votou dividiu-se, uma maioria no PS votou a favor. O BE, PAN e PEV votaram a favor.

Este ano e a duas semanas do debate parlamentar, um grupo de cidadãos iniciou uma recolha de assinaturas para realização de um referendo sobre a matéria, que tem o apoio da Igreja Católica. Dos partidos com representação parlamentar, apenas o CDS-PP e o Chega apoiam a ideia, assim como vários dirigentes do PSD.