Richard III, personagem de William Shakespeare, teve o inverno do seu descontentamento; Portugal aproxima-se do verão do seu desconfinamento.
Ao fim de mais de dois meses de desafios e privações causadas pela covid-19, o país entra no dia 1 de junho, próxima segunda-feira, na terceira fase do desconfinamento operado pelo Governo depois de findado o estado de emergência que vigorou no país.
Como António Costa enumerou depois de um extenso Conselho de Ministros que se reuniu hoje, em junho é a vez dos cinemas e teatros, creches, lojas do Cidadão, centros comerciais e até ginásios reabrirem, tentando acompanhar os outros estabelecimentos e espaços que já tinham obtido essa benesse, à medida que o país tenta recuperar a sua economia e os portugueses a sua normalidade.
Também por isso, o teletrabalho vai deixar de ser obrigatório — ainda que com exceções —, as celebrações religiosas comunitárias regressam já este fim-de-semana e vai deixar de estar estabelecido o dever cívico de recolhimento.
É um suspirar de alívio, um fardo que aos poucos começa a ser aliviado, a pandemia aos poucos deixa de ser um ataque sobre nós para passar a ser um trauma, esperando-se que, com o tempo, seja superado.
Mas as coisas não são assim tão simples. Quando António Costa referiu este progressivo aliviar das proibições e encerramentos forçados, mencionou que estas medidas se dirigiam à “generalidade do país”, só que a língua portuguesa é perita nestes eufemismos.
A verdade é que o país não está todo a lidar com pandemia da mesma maneira. Se no início foi o Norte a região mais flagelada, se Ovar ou Povoação (nos Açores) foram seladas com cercas sanitárias, agora é a região da “metrópole”, Lisboa, a braços com a pandemia.
Tendo como ponto mais sensível o surto ainda decorrente na Azambuja, a região de saúde de Lisboa e Vale do Tejo representou 323 dos 350 novos casos em Portugal, segundo o boletim epidemiológico hoje apresentado.
A situação “é complexa”, admite a Diretora-Geral da Saúde, Graça Freitas, pois como explicaria ao SAPO24 dois dias antes, o retrato dos infetados e o padrão das infeções é mais imprevisível, devendo-se a "várias e diversas causas". Do acima mencionado caso da Azambuja ao Bairro da Jamaica, no Seixal, há surtos em fábricas, lares, obras e bairros, tendo como ponto comum o contágio dos mais desfavorecidos e mais desprotegidos (especialmente do ponto de vista laboral).
Por isso mesmo, António Costa referiu que a Área Metropolitana de Lisboa (AML) ainda não sentirá o doce fragor do desconfinamento da mesma forma que o resto do país, tendo de ser aplicadas as seguintes medidas:
- Reforço da vigilância epidemiológica, nomeadamente das obras de construção civil e empresas de trabalho temporário, sendo estes "dois tipos de atividade que se puderam caracterizar como concentrando um número concentrado de focos de infeção", como disse o primeiro-ministro;
- Será um implementado um "plano de realojamento de emergência", à semelhança do que foi feito nos lares de terceira idade;
- Ajuntamentos permanecem limitados a 10 pessoas na AML (no resto do país passa a 20);
- Veículos privados de transporte de passageiros continuam com lotação máxima de 2/3 dos passageiros e o uso de máscara é obrigatório.
- Permanecem encerrados até dia 4 de junho, dia em que decisão será reavaliada, os centros comerciais, lojas de cidadão e lojas com mais de 400m2. Feiras podem realizar-se este fim de semana, mas voltam a estar limitadas a partir de segunda-feira
Para além desta contrariedade, há ainda uma incógnita a encarar nestas próximas semanas.
António Costa apressou-se a indicar logo no início da sua declaração, fazendo uso dos dados epidemiológicos ao seu dispôr, de que o número de casos no país não aumentou muito depois da reabertura do país, pelo que isso "significa que do conjunto das medidas de desconfinamento, não podemos inferir que tenha havido um aumento do risco de transmissibilidade".
Centrando o discurso em Lisboa, o primeiro-ministro, inclusive, recordou que o aumento dos casos não se deveu ao desconfinamento mas às dinâmicas laborais e sociais acima mencionadas. No entanto, pela sua densidade demográfica e volume dos movimentos pendulares por toda a sua área, Lisboa vai continuar a ser motivo de preocupação, a ponto de Graça Freitas ter desabafado quanto a uma “concentração de pessoas para lá do desejável" na cidade nos últimos dias.
É conhecido o lamento generalizado de que “Portugal é Lisboa e o resto é paisagem”. Com a capital privada do desconfinamento vindouro, esta é uma situação onde, talvez, para muitos lisboetas e respetiva vizinhança fosse preferível ser paisagem.
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