Quando assumiu o cargo em outubro de 2017, Graça Freitas estava longe de pensar que iria enfrentar a batalha contra uma doença que mudou temporariamente o mundo, matou cerca de 29.000 pessoas em Portugal, impôs o isolamento social e transformou a forma de comunicar e até de comer.

Em entrevista à agência Lusa, a especialista em saúde pública relatou como foi viver a primeira fase da pandemia de covid-19, que descreveu como “muito intensa” e com várias etapas.

Disse lembrar-se “perfeitamente do último dia do ano de 2019” quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou para uma nova doença provocada por um vírus desconhecido em mercados onde se vendiam animais vivos na China.

Inicialmente, a reação não foi “nem de alerta nem de alarme”, uma vez que todos os anos surgem notícias sobre novos vírus, mas a experiência com a síndrome respiratória aguda grave (SARS) em 2003, fez com que os médicos se mantivessem vigilantes, embora confiantes de que o foco seria contido.

À medida que chegavam mais informações, as autoridades perceberam que “a situação podia complicar-se” e, no dia 21 de janeiro de 2020, a DGS criou uma "task force", com especialistas que trabalharam em todas as epidemias desde 1997.

Tinham, contudo, diferentes correntes de pensamento, com alguns mais conservadores e outros mais flexíveis nas medidas a adotar.

No meio da discussão sobre como lidar com Covd, especialistas encomendaram, pela primeira vez, refeições por estafetas

As divergências criaram “uma espécie de rutura interna” e levaram a uma discussão de “tantas horas” que os especialistas encomendaram, pela primeira vez, refeições por estafetas.

“Mal sabíamos que se iria tornar uma coisa corriqueira nos dias de hoje e ia ser tão importante na pandemia”, comentou Graça Freitas, com um sorriso.

Antes de a OMS declarar a pandemia, em 11 de março, Portugal já tinha ativado o plano de contingência utilizado na pandemia de gripe A em 2009, que tinha como referência os hospitais São João, no Porto, Curry Cabral e Dona Estefânia, em Lisboa, que se prepararam para lidar com o aumento de casos.

A Linha de Apoio ao Médico, antes voltada para doenças como o Ébola e a SARS, foi reforçada com dezenas de médicos para responder ao aumento significativo de chamadas com casos suspeitos.

Até que, “no dia 2 de março foi como um vulcão; eclodiram, finalmente, os dois primeiros casos”, um com origem em Itália e outro em Espanha: “Sabíamos que os íamos ter, só não sabíamos quando”.

Os casos aumentavam diariamente e, em 26 de abril, o país entrou na fase de mitigação (vírus disseminado), e passou “a atender-se gente em todos os hospitais, em todos os serviços de saúde”.

Para Graça Freitas, o que se passou naquelas primeiras semanas “hoje até parece irreal”, como o encerramento da cidade de Whuan, o número de mortos em Itália, além de imagens marcantes, como a do Papa a celebrar “a missa sem ninguém a assistir”.

A comunicação também se tornou “um desafio imenso” à medida que a pandemia alastrava, com o dia 11 de março a ser determinante para a sua transformação.

“Percebemos que era preciso haver uma comunicação direta e diária (…) porque eram semanas de enorme incerteza” e “havia uma velocidade enorme de notícias, de imagens do mundo inteiro” e a passar nas redes sociais, salientou.

Nos bastidores das conferências de imprensa diárias

Uma das grandes mudanças trazidas pela pandemia foi o formato das conferências de imprensa ‘online’. Durante a primeira videoconferência, a 11 de março, Graça Freitas teve de improvisar a indumentária, recorrendo aos lenços de uma amiga para esconder a roupa informal, antes de entrar no ar, para estar “mais apresentável”.

Estas videoconferências passaram a ser diárias com a ministra da Saúde ou o secretário de Estado da Saúde e a diretora-geral da Saúde a transmitirem informações em tempo real.

“Foi uma pandemia ‘online’. As coisas aconteciam diretamente e ao vivo”, disse Graça Freitas, acrescentando: “Todos os dias tínhamos uma aprendizagem nova”.

O objetivo era ser “o mais transparente possível e claro”, não entusiasmando demasiado as pessoas, mas também não as angustiando demasiado.

A nova forma de comunicar envolvia a parte técnico-científica, liderada pela DGS, e a política, relacionada com a responsabilidade final pelas decisões e medidas adotadas.

Nem sempre a DGS e o Governo estiveram de acordo nas medidas tomadas, “mas cada um cumpriu a sua parte”.

Exemplificou com uma medida que a DGS defendeu de um fecho seletivo de escolas em Felgueiras, onde ocorreu o primeiro surto de covid-19, e “o Governo decidiu, por motivos de alarme social, fechar todas as escolas até à Páscoa”.

“E não foi uma medida errada”, disse, comentando: “Os políticos tinham de pensar no impacto na sociedade, na economia, e muitas vezes no pânico que podia gerar-se na segurança das pessoas e, portanto, houve aqui uma complementaridade”.

“Fiquei sempre muito confortável, mesmo quando as opiniões não convergiam, porque eram, de facto, papéis e visões diferentes", explicou.