“Mais de 85% de toda a roupa consumida na Europa provém da Ásia, o que quer dizer que a Europa está refém da Ásia. Isto significa que a Europa tem que repensar a forma como se vai posicionar no futuro, porque qualquer coisa que acontece, neste caso na China, tem um efeito devastador na Europa e no mundo”, afirmou o presidente da Associação Nacional das Indústrias de Vestuário e Confeção (ANIVEC) em declarações à agência Lusa.
Recordando o impacto em curso de problemas como o ‘Brexit’ e a guerra comercial entre os EUA e a China, o dirigente associativo considera que esta nova crise surge agora como um “‘cocktail molotov’”.
De acordo com César Araújo, o setor dispõe normalmente de ‘stocks’ de matérias-primas e acessórios para quatro semanas, pelo que, “se o impacto do coronavírus se prolongar no tempo, poderá ser dramático para as empresas de vestuário, mas também para outros setores”.
Também em declarações à Lusa, o presidente da Associação Têxtil e Vestuário de Portugal (ATP) disse não ter ainda “conhecimento de empresas em rutura por falta de abastecimento que venha da China”, mas admitiu que tal poderá acontecer “se a situação se prolongar muito”.
“Já se começam a ouvir alguns comentários de que está a ser mais difícil encontrar este ou aquele material, mas felizmente existem ainda outras zonas produtoras de matérias-primas concorrentes da China”, disse Mário Jorge Machado.
Como exemplos apontou “algumas fibras, nomeadamente as fibras sintéticas, onde a China é o grande produtor mundial”, enquanto no caso do fio e dos tecidos de algodão “já não é assim tanto, porque embora sendo a China um produtor importante, há outras zonas do globo que também são grandes produtores”.
Ainda assim, a ATP diz que “as últimas informações” recebidas por parte dos seus associados apontam que “nos próximos dias poderão já começar a sair novamente da China as compras que lá tinham sido colocadas” e “a situação será desbloqueada”.
“Há encomendas que já estavam em trânsito quando a crise explodiu e estão neste momento a chegar cá para alimentar as cadeias de abastecimento. Eu diria que o problema de escassez [de matérias-primas] ainda não se sente hoje, mas pode sentir-se a partir de meados de março, que é quando aquilo que devia ter saído da China deveria estar a chegar”.
Além deste problema ao nível da cadeia de abastecimento, o presidente da ANIVEC receia que um prolongamento da crise do coronavírus Covid-19 venha a prejudicar as encomendas feitas às empresas portuguesas, sobretudo no segmento dos produtos de luxo.
“Uma grande parte das cadeias de luxo, que são muitos dos nossos clientes, têm como maior mercado de vendas a China. Se eles encerram as suas lojas lá porque os trabalhadores estão em quarentena, é normal que não vendam e, ao não venderem, reduzam as encomendas”, disse.
Afirmando-se “muito atento e preocupado”, César Araújo vem mantendo contactos regulares com os ministérios da Economia e do Trabalho e a secretaria de Estado da Internacionalização, que diz estarem a acompanhar “de perto” a situação.
Questionado pela Lusa sobre a eventual necessidade de vir a ser criado um regime transitório de exceção que permita às empresas do setor mitigar os efeitos desta crise, o presidente da ANIVEC considerou que os instrumentos atualmente previstos são, por enquanto, suficientes.
“Nesta fase ainda existem na lei e no contrato coletivo de trabalho instrumentos, como a possibilidade de dar férias e de utilizar a adaptabilidade, que nos permitem aligeirar com muita harmonia [a situação]. Vamos para já tentar que estes mecanismos sejam suficientes. Agora se o coronavírus se prolongar…”, disse.
No mesmo sentido, a ATP defende que a situação “tem de se ir avaliando, para então se reagir de uma forma adequada à dimensão do problema”: “Se vier a ser necessário, cá estaremos, mas de momento não está de todo em cima da mesa uma situação dessas”, assegurou Mário Machado.
Para este dirigente, a situação criada com o surto do coronavírus demonstra “a importância de se ter na Europa setores industriais fortes”: “Isto é uma boa oportunidade para os políticos europeus perceberem da importância da indústria e de que não devemos perder a indústria na Europa, porque isto pode ter consequências graves em termos da sustentabilidade económica do continente europeu”, salientou.
Por outro lado, disse, esta crise pode ser encarada como “uma oportunidade”, já que “várias marcas estão a perceber como é importante a diversificação de mercados na colocação das suas produções”.
“Com a guerra comercial entre os EUA e a China os principais compradores e marcas já estavam a levar em linha de conta que por razões geopolíticas é uma boa prática não pôr todos os ovos no mesmo cesto, que foi o que foi feito durante anos numa atitude míope de procura só de um determinado tipo de proveitos. Há os riscos políticos, há os riscos económicos e, agora, há os riscos de saúde e já notamos essa perceção por parte das marcas”, sustentou.
No setor do calçado, o diretor de comunicação da Associação Portuguesa dos Industriais do Calçado, Componentes, Artigos de Pele e Seus Sucedâneos (APICCAPS) considera serem “difíceis de prever” as consequências do coronavírus, embora dê como adquirido que “será sempre um impacto negativo, porque traz incerteza ao universo dos negócios e pode contribuir para um arrefecimento da economia mundial”.
De acordo com Paulo Gonçalves, a importação de matérias-primas da China “não é particularmente relevante no setor do calçado” e, se “alguns dos componentes do calçado, nomeadamente acessórios”, são adquiridos, direta ou indiretamente, àquele país, “neste momento isso ainda não está a ter efeitos” na produção em Portugal.
No que diz respeito às vendas, os dados da APICCAPS apontam que as exportações portuguesas de calçado para a China e Hong Kong somaram 30 milhões de euros em 2019, mais 10% do que no ano anterior, sendo estes mercados em crescimento para o setor.
“Para já, ainda há uma aparente normalidade, mas o que nos preocupa é o evoluir da situação e a incerteza no mundo dos negócios. Um prolongamento desta crise é que nos preocupa”, admitiu.
Comentários