O relatório da comissão de inquérito da Ordem dos Médicos para avaliar as circunstâncias clínicas do surto de covid-19 num lar em Reguengos de Monsaraz, a que a Lusa teve acesso, diz que não era possível cumprir “o isolamento diferenciado para os infetados ou sequer o distanciamento social para os casos suspeitos”.
“Não existia, por exemplo, definição de circuitos de limpos e de sujos, o que foi feito apenas a 26 de junho, nove dias depois de ter sido confirmado o primeiro caso”, sublinha o relatório da auditoria.
A comissão conclui que “os recursos humanos foram insuficientes para a prestação de cuidados adequados no lar, mesmo antes da crise de covid-19, uma situação que se agravou com os testes positivos entre os funcionários, que os impediram de trabalhar”.
Uma das consequências mais graves é que “vários doentes estiveram alguns dias sem as terapêuticas habituais, por falta de quem as preparasse ou administrasse”, diz o documento, sublinhando que “houve casos de preparação e administração de fármacos por pessoal sem formação de enfermagem”.
O relatório afirma ainda que os doentes não foram tratados “de acordo com as boas práticas clínicas”, com responsabilidades “para quem, sabendo que não tinha os recursos humanos adequados e preparados, permitiu que esta situação se protelasse no tempo”.
Diz que foram criadas todas condições para a “rápida disseminação, com responsabilidades para quem geria o espaço, o processo de rastreio epidemiológico e a aplicação das normas da DGS”.
“O processo inicial de rastreio – desde a primeira zaragatoa até aos resultados finais de todos os utentes e funcionários – demorou perto de três dias, período de tempo em que os potencialmente infetados conviviam e partilhavam espaços, quartos, corredores e casas de banho”, explica.
A comissão de inquérito conclui pela “desorganização e consequente prejuízo para os doentes, atribuível à Autoridade de Saúde e à ARS do Alentejo”, dizendo que “o processo de governança clínica” falhou.
A este nível, o relatório conta que havia uma “subordinação da liderança clínica às intervenções superiores administrativas, com consequente descoordenação logística de meios e do pessoal de saúde (médicos, enfermeiros), bem como da articulação com o pessoal auxiliar e voluntário”.
Refere também que “os responsáveis, que foram alertados pelos profissionais, não agiram atempadamente e em conformidade, mantendo os doentes em circunstâncias penosas e facilitando o crescimento do surto, antes da transferência para o pavilhão”.
“A Autoridade de Saúde Pública não visitou o Lar para avaliar localmente estas circunstâncias. Delegou as funções, designadamente no ACES [Agrupamento de Centros de Saúde], cujo diretor clínico foi designado pelo presidente da ARS como responsável do pavilhão”, acrescenta.
Conclui ainda que a instituição “não cumpriu as regras estabelecidas e não teve assim condições para enfrentar com rigor o surto”, explicando que não foi apresentado aos elementos da comissão “qualquer plano de contingência interno da instituição na fase anterior ao surto, nem evidência de que os funcionários do lar tiveram formação nessa matéria”.
“Aos médicos deslocados nunca foi dado conhecimento do mesmo [plano de contingência interno], o que impediu uma resposta imediata, coletiva e coordenada”, considera.
A comissão aponta igualmente que a transferência dos utentes para um “alojamento sanitário” no Pavilhão Multiusos do Parque de Feiras e Exposições da cidade foi tardia, pois ocorreu mais de duas semanas depois do início do surto, “quando já se contabilizavam 8 mortos e 138 casos ativos”.
Reconhece que a instituição melhorou as condições para os utentes, mas insiste que, “mesmo em melhores condições, a falta de coordenação e gestão continua a impedir que os doentes, os profissionais e os voluntários estejam em ambiente seguro”, responsabilidade que a comissão atribui à Administração Regional de Saúde do Alentejo e à autoridade de saúde.
Finalmente, a comissão de inquérito considera que o “alojamento sanitário” no pavilhão “permitiu que as regras e normas da DGS pudessem ser aplicados à semelhança de outros lares”, mas lembra que este espaço “nunca foi denominado de ‘hospital de campanha’ nem tinha condições para ser considerado um hospital”.
O surto no lar provocou até final de julho 18 mortos, - 16 utentes, uma funcionária do lar e um homem da comunidade – e provocou no total 162 casos de infeção. No lar, foram contaminados 80 utentes e 26 profissionais, mas a doença propagou-se à comunidade e infetou outras 56 pessoas.
O relatório já foi enviado ao Ministério Público, Ministério da Saúde, Direção-Geral da Saúde e à Ordem dos Advogados
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