Em vésperas de uma semana de greves no setor da Saúde, Miguel Guimarães traça um cenário de declínio no SNS, com médicos esgotados e em “sofrimento ético” dada a falta de condições, além de um défice de milhares de especialistas que afeta hospitais de todo o país.
“Estamos todos a trabalhar para o ministro Mário Centeno, que vai atingir os seus objetivos e indicadores, como a meta do défice. Mas estamos com estas dificuldades na saúde, que já ultrapassou largamente a linha vermelha. Temo que se nada for feito nos próximos meses, as pessoas já nem acreditem numa mudança”, frisou.
Em entrevista à agência Lusa, o bastonário reconhece que há mais médicos a trabalhar no SNS hoje do que em 2015, mas frisa que “a força de trabalho não aumentou”.
Argumenta que o número de médicos com dedicação exclusiva e a trabalhar 42 horas diminuiu drasticamente nos últimos dez anos, passando de mais de 8.200 para cerca de 3.600 atualmente.
Foi em 2009 que acabou a possibilidade de os médicos optarem por trabalhar em dedicação exclusiva no setor público, uma medida que a Ordem defende que seja retomada.
“Perdeu-se força de trabalho”, insiste o bastonário.
Acresce que a necessidade de cuidados da população aumentou, com Miguel Guimarães a classificá-la como “explosiva”, com maior carga de doença dado o envelhecimento e com uma “fraca aposta” na prevenção.
Há ainda mais médicos internos em formação geral, atualmente perto dos 2.700 quando há quatro anos não ultrapassavam os 1.600. São médicos internos do ano comum, que não estão a receber formação especializada.
A delapidação de recursos humanos no SNS vê-se ainda na média de idades dos profissionais, que no caso dos médicos é superior à população em geral. Os clínicos a partir dos 55 anos estão dispensados de fazer urgência e a partir dos 50 podem dispensar urgências noturnas, dado ser um serviço de desgaste rápido, recorda Miguel Guimarães.
Seis milhões de horas extra feitas pelos médicos davam para contratar quatro mil
Os médicos que trabalham no SNS fazem num ano cerca de seis milhões de horas extraordinárias, o que daria para contratar quatro mil profissionais.
As contas são do bastonário da Ordem dos Médicos, que se baseia nos quase seis milhões de horas extra que os médicos que trabalham no Serviço Nacional de Saúde (SNS) cumpriram em 2017.
Segundo Miguel Guimarães, as horas extraordinárias representam já um quarto da remuneração média mensal dos médicos, incluindo os que não cumprem serviço de urgência.
"Só com este dado percebe-se que faltam quatro mil médicos no SNS", afirmou em entrevista à agência Lusa.
A este indicador acrescem os 100 milhões de euros pagos a médicos prestadores de serviço, conhecidos como tarefeiros, a quem o SNS recorre para suprir necessidades por falta de profissionais.
O gasto com tarefeiros permitiria contratar cerca de três mil médicos, o que, para o bastonário, evidencia a carência de pessoal médico no SNS, onde faltarão pelo menos cinco mil especialistas.
Miguel Guimarães reconhece que Portugal é um país com muitos médicos, mas alerta que dos 52 mil clínicos registados na Ordem, menos de 29 mil trabalham no SNS, sendo que 10 mil são médicos internos, ainda em formação de especialidade.
"Portugal é o terceiro país da OCDE com mais médicos por mil habitantes. Cerca de 45 mil médicos estão a trabalhar em Portugal, mas no SNS são menos de 29 mil", afirmou à Lusa.
A Ordem ainda não tem contas atualizadas quanto aos médicos emigrados, mas o bastonário calcula que rondem os cinco mil os clínicos atualmente a trabalhar fora do país.
Para o bastonário, “o que tem equilibrado o SNS” é a “evolução exponencial” da Medicina, que tem permitido fazer mais, com maior rapidez e eficácia e com menos complicações para o doente.
Quanto ao SNS, o representante dos médicos entende que estagnou nalgumas áreas, tendo mesmo piorado noutras, como o caso dos indicadores maternoinfantis, “que têm piorado”, muito porque “as condições se deterioraram”.
Miguel Guimarães critica a falta de planeamento de recursos humanos e uma política centrada na resolução de problemas baseada apenas no que é denunciado publicamente.
As dificuldades do SNS são transversais a todo o país e o bastonário assume que não é fácil identificar as zonas mais problemáticas.
“Temos desigualdades territoriais e há zonas que estão piores, como o Alentejo, o Algarve, várias unidades da região Centro — como Leiria, Viseu, Guarda e Castelo Branco — e há dificuldades também no Norte, como em Gaia ou Vila Real”, apontou, concluindo que “há problemas em todo o país”.
A falta de profissionais afeta várias especialidades, sendo os recentes casos das maternidades de Lisboa ou dos anestesistas apenas alguns exemplos.
“Os médicos têm vários motivos para protestar e aderir à greve"
O bastonário Miguel Guimarães considera que os médicos têm “vários motivos” para aderir à greve agendada para terça e quarta-feira, frisando que o Ministério da Saúde não tem tratado bem os seus profissionais.
Em entrevista à Lusa, o representante dos Médicos entende que as reivindicações profissionais se centram “essencialmente no doente e na qualidade da Medicina e dos cuidados” prestados.
A falta de profissionais, o desgaste e a desmotivação fazem aumentar a possibilidade de cometer erros, além de aumentarem a conflitualidade entre médicos e doentes.
“Os médicos têm vários motivos para protestar e aderir à greve. A ministra da Saúde não tem sido educada com os médicos. A ministra não cumpre a primeira regra básica de gestão, que é tratar bem os profissionais e não o faz sobretudo com os médicos e com os enfermeiros”, lamenta Miguel Guimarães.
O bastonário refere que as várias reivindicações que os médicos têm apresentado “não têm sido satisfeitas”, sublinhando que os profissionais trabalham muitas vezes “sem segurança clínica e sem garantias de qualidade”.
A greve de 02 e 03 de julho foi decretada, respetiva e concertadamente, pelo Sindicato Independente dos Médicos e pela Federação Nacional dos Médicos.
Os sindicatos argumentam que, cinco anos após a saída da ‘troika’, “o Governo mantém para o SNS e para os médicos a austeridade que disse ser temporária”.
“Com isso, os médicos trabalham mais horas na urgência e têm listas de utentes maiores. Os serviços estão à beira da rotura devido à falta de profissionais e de equipamento. Os doentes esperam meses ou anos por consultas e cirurgias”, refere a Federação Nacional dos Médicos (FNAM) numa “carta aos utentes”.
O Sindicato Independente dos Médicos (SIM) considera que os profissionais foram compelidos à forma constitucional mais dura de luta e protesto” por um Governo “intransigente”
“O Governo é responsável pela desorganização em que se encontram as urgências hospitalares, a desarticulação de serviços de saúde, a decadência acelerada em que se encontra um dos serviços sociais de maior importância e coesão social da democracia portuguesa: o SNS”, refere o SIM.
*Ana Rute Peixinho, da agência Lusa
(Notícia atualizada às 10:18)
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