Em entrevista à agência Lusa, o coordenador nacional das políticas de saúde mental sublinha a importância de prestar estes cuidados o mais próximo possível do local onde as pessoas vivem, facilitando o acesso e reduzindo o estigma.
“Se as equipas estiverem em locais associados a estigma – e o exemplo clássico eram os hospitais psiquiátricos - é normal que exista alguma dificuldade no acesso. Quanto mais nos aproximamos de onde as pessoas vivem, mais as barreiras ao acesso vão diminuindo”, considera.
Miguel Xavier aponta que estas dez equipas comunitárias, com profissionais de várias áreas, juntam-se às dez criadas no ano passado. Devem seguir-se outras cinco em 2023, dez em 2014 e cinco em 2025. No total, serão 40, espalhadas por todas as regiões do país, metade para adultos e metade para crianças.
O responsável lembra a necessidade de estas equipas multidisciplinares, que estão a receber formação, funcionarem em articulação com os cuidados de saúde primários: “Não quer dizer que tenham de estar nos centros de saúde”.
“Algumas poderão estar, mas outras poderão estar em outras instalações na comunidade. Há uma linha que é a linha da vida natural das pessoas, que faz com que as necessidades possam ser diferentes em determinadas alturas das suas próprias vidas. A equipa está preparada para responder a isso”, afirma.
Sublinha que estas equipas, além de prestarem um serviço “integrado e completo” à população, devem servir de molde para a reorganização que está a ser levada a cabo nos serviços.
“Temos de evoluir para a setorização dos cuidados, como o resto da Europa já fez: cada região é servida por um serviço local de saúde mental que, por sua vez, faz uma divisão da população que tem a seu cargo, em áreas populacionais mais pequenas, cada uma delas com uma equipa comunitária”, explicou.
Miguel Xavier reconhece que os recursos atuais não são suficientes e explica: “Há serviços que já têm equipas comunitárias em funcionamento, outros que têm profissionais na comunidade, mas não tem verdadeiras equipas, e há serviços que não tem nem uma coisa nem outra”.
“O nosso trabalho aqui é duplo: setorizar de norte a sul do pais, criando, com os recursos humanos que existem, equipas comunitárias, ver os profissionais que ainda estão em falta (…), fundamentalmente na zona da Raia, no Alentejo e no Algarve, e preencher esses serviços com as pessoas que faltam”, acrescentou, acrescentando que este é “um desafio para os próximos anos.
O responsável diz que a situação é pior no caso da pedopsiquiatria do que na psiquiatria de adultos, onde todos os anos se formam 40 a 50 especialistas: “Na psiquiatria da infância e da adolescência todos os profissionais são necessários porque, mesmo médicos, há poucos. Temos aproximadamente cem para o país todo. Isto não chega”.
Quanto à retirada de doentes crónicos das instituições, outra das prioridades, diz que poderão ser entre 200 a 300 pessoas, mas refere que nem todos os casos são abrangidos.
“Não quer dizer que (…) pessoas possam ser todas institucionalizadas, porque nos países em que isto se fez há sempre um núcleo de pessoas que não é passível de desinstitucionalização porque já têm um nível de dependência tão elevado que não podem ter uma vida sem ser numa instituição”, afirma.
Segundo disse, o que se pretende é “criar condições na comunidade para que possam receber algumas das pessoas que vivem nos hospitais psiquiátricos, mas que (...) podem viver na comunidade”.
Contudo, frisa, é preciso garantir “que o processo de transição se faz de uma forma correta” e que as pessoas saídas dos hospitais manterão “exatamente os mesmos cuidados”.
“Isto é o aspeto mais importante do processo. Não é apenas tirar as pessoas”, sublinhou, acrescentando que também é importante atender à vontade do doente.
Para acolher estes doentes, vão ser abertas candidaturas para instituições do setor social, privado e público se proporem a dar estas respostas: “Cada resposta tem um preço que é pago pelo Plano de Recuperação e Resiliência”.
Sobre as quatro unidades a criar nos hospitais gerais para receber doentes agudos – no Médio Ave (Santa Maria da Feira), no Centro Hospitalar do Oeste (Caldas da Rainha e Peniche) e no Hospital Fernando da Fonseca - explica que abrirão à medida que forem fechando os hospitais psiquiátricos.
“Em todos os quatro serviços os contratos para a construção já foram assinados”, explica, citando o financiamento do PRR e observando que tudo tem de estar pronto em 2026.
Sobre a área dos doentes inimputáveis, recorda que, no âmbito do Ministério da Saúde, o que está previsto é a requalificação dos hospitais Júlio de Matos (Lisboa) e Magalhães Lemos (Porto) e uma intervenção maior no Sobral Cid (Coimbra), que no futuro será uma nova estrutura, num projeto que já foi entregue à Administração Central dos Sistemas de Saúde (ACSS).
Miguel Xavier destaca ainda a dificuldade de muitas vezes se encontrar vagas nas unidades de inimputáveis para pessoas que já têm uma decisão nesse sentido, motivo pelo qual foi proposta a criação de três unidades de transição.
“Se nós conseguirmos as 240 vagas no território nacional, mais três unidades de transição, eu acho que isto é um avanço muitíssimo significativo daquilo que é uma área que não foi mexida nos últimos 30 anos”, sublinha.
Cuidados de Saúde Primários precisam do dobro dos psicólogos
O coordenador nacional das políticas de saúde mental defende que os cuidados primários precisavam do dobro do numero de psicólogos que atualmente têm para garantir, como noutros países, profissionais a tempo inteiro.
“Nós precisávamos de ter um número, nos cuidados primários, que fosse pelo menos o dobro. E porquê? Para garantir que poderia haver psicólogos a tempo inteiro, tal como existem nos outros países, porque é isso que está baseado em evidência, a fazer este tipo de abordagem, de programas de ‘stepcare’ de depressão e ansiedade”, afirmou em entrevista à Lusa.
Miguel Xavier lembra que os psicólogos nos cuidados de saúde primários “têm de responder às múltiplas necessidades e têm dificuldade, como é óbvio, em centrar-se num tipo de trabalho”.
O coordenador defende que ”deveria haver uma força de trabalho exclusiva para os programas de abordagem da doença mental comum nos cuidados primários, tal como fez Inglaterra, como fez a Austrália e como estão vários países a começar”
“Não é algo que se faça do meio para o outro, mas é algo que nós temos de começar a fazer. Para isso precisamos ter lá as pessoas”, afirmou.
Sublinha que é preciso psicólogos “num número muito razoável” para dar resposta às pessoas com quadros de possível depressão e ansiedade: “Não nos bastam 20, ou 30, ou 40, ou 50 psicólogos”.
“Temos ter muito mais gente a trabalhar articulada com os cuidados de saúde primários. E isto vai ter de ser uma aposta para o futuro. Das duas uma: ou nós queremos ter os cuidados nos cuidados primários prestados ou não queremos. (…) Não podemos ter as duas coisas, ter os cuidados prestados e fazer poupanças a este nível”, insiste.
Miguel Xavier enaltece o trabalho dos centros de saúde, destacando: “Grande parte do impacto da saúde mental relacionado com a covid não foi na doença mental grave, mas na doença mental chamada comum". E aí, prossegue, “o colchão de amortecimento é nos cuidados primários. E houve um trabalho muito importante feito".
"Se me pergunta se os cuidados de saúde primários estavam totalmente preparados para isso, não. Porque falta lá toda a vertente de apoio psicológico”, afirma, considerando que o país tem de ter respostas não farmacológicas nos cuidados primários.
Coordenador de Saúde Mental defende duplicação do investimento no SNS
O coordenador nacional das políticas de saúde mental defende que o investimento nesta área no Serviço Nacional de Saúde, que hoje ronda os 5%, deveria duplicar dentro de alguns anos.
“Nós calculamos, sem ter a certeza, porque que não há nenhuma certeza, que o nosso investimento em relação ao ‘budget’ total do Serviço Nacional de Saúde, está à volta dos 5%. Eu considero que nós temos de chegar, em algum momento do nosso futuro, ao dobro disso”, afirmou em entrevista à Lusa.
Miguel Xavier dá o exemplo de países como o Reino Unido, ou os países nórdicos, onde o investimento em saúde mental no peso total da saúde ronda os 13% e 14%, explicando que este valor não surge por acaso.
“É porque essa é a percentagem do peso global da saúde mental nas doenças todas (…) O Reino Unido já foi o primeiro país do mundo a chegar lá, outros vão lá chegar”, disse Miguel Xavier.
Reconhece que é preciso “ser realista e ter os pés na terra” e afirma: “Se nós estivermos nos 4% ou 5%, estamos a falar do triplo”.
Contudo, diz que é um aspeto positivo o facto de neste momento a saúde mental ser considerada “uma prioridade de uma forma transversal à sociedade portuguesa”.
“Se pensarmos que temos de passar o nosso orçamento para o dobro dentro de alguns anos, acho que é uma meta e espero que não seja demasiado otimista", afirmou, sublinhando: "É uma meta que os portugueses merecem. E já agora também os profissionais [de saúde], que lá trabalham, e trabalham muito”.
* Texto de Susana Oliveira, da agência Lusa
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