A Jornada Mundial da Juventude, realizada em Lisboa em 2023, foi fértil em discussões sobre  os investimentos realizados, a volumetria e os fins a dar ao palco da polémica, a nomenclatura da ponte (que ainda decorre) e o destino do terreno terraplanado, outrora repleto de contentores, para acolher o evento que abraçou os municípios de Loures e Lisboa. Embora a discussão e as diferentes visões tenham adornado mais para a esquerda ou mais para a direita, a passagem do Papa Francisco deixou, inequivocamente, um legado de mudança física no espaço público dos dois concelhos.

Um ano depois, o parque urbano de Loures e Beato, no agora denominado “Bairro do Grilo”, surge de cara lavada. Com um novo fim e um novo rumo, palco de uma transformação territorial, urbanística e paisagística muito para além de uma pintura de “primeira de mão”.

No Beato, o número 84 da Rua do Grilo, ala Norte da Manutenção Militar, foi a sede de reuniões da Jornada Mundial da Juventude 2023. Ali reuniram-se as câmaras municipais, forças de segurança, igreja católica e todos as entidades envolvidas. E para ali se mudou, em 2021, José Sá Fernandes, coordenador da equipa.

A escolha do local, quase desocupado na altura, teve o condão de revelar um segredo no coração industrial da capital, então propriedade do Ministério da Defesa.

Ao todo, são sete hectares onde há mais de 100 anos o Exército Português fabricava e armazenava farinha, cereais, vinho, vinagre, massas, pão, café, açúcar e todo o tipo de género alimentício que servia de guarnição militar e a messe.

Existia também uma creche e escola primária (ainda existe), cantinas e supermercado, café, uma vila operária, um reservatório de água, barbearia, uma estação ferroviária (aproveita o ramal da Linha do Norte que rasga a propriedade em duas áreas), oficinas, um cine-teatro e campo de jogos.

Era este o desenho desta “cidade” militar.

“Quando aqui entrámos com a Jornada ainda havia aqui militares”

Hoje, o burgo mudou a página e prepara-se para ganhar outra cor e outros sons. Despida da finalidade da manutenção alimentar para militares, está pronto a assumir nova configuração, assumir uma nova vida dentro de paredes de larga espessura e tetos altos. Promete aproveitar prédios existentes e idealizar outros prontos a construir em espaço livre, renovar antigos armazéns de inusitada dimensão, oficinas e reaproveitar arcas frigoríficas, lagares e cubas de vinho ou azeite.

“Pode oferecer muito a Lisboa, mas também a outros sítios vazios que existem em Portugal”, aludiu José Sá Fernandes numa visita guiada a jornalistas, que serviu para anunciar duas exposições que têm palco este fim de semana de 23 e 24 de novembro.

O antigo vereador da câmara municipal de Lisboa, responsável máximo do grupo de trabalho da JMJ2023, foi cicerone pelo anterior feudo militar. Explicou como é que ali se chegou e falou acerca da descoberta deste verdadeiro achado de um reduto único, dos últimos de natureza pública, na cidade de Lisboa.

“Quando aqui entrámos com a Jornada ainda havia aqui militares”, recordou. “A sede da JMJ era aqui e fiz na altura o desafio ao Governo. Pensei: isto é inacreditável, isto dá para tudo. Falei com o D. Américo e disse-lhe que seria ótimo para residência de estudantes, o que ele comprou, aliás”, acrescentou, antes de entrar nos detalhes, escondido para lá do portão do número 84 da Rua do Grilo. 

Residências para estudantes e espaço das artes por Decreto

A resolução de 30 de novembro de 2023, publicada em Diário da República, deixou escrito o futuro do espaço. O Governo atribuía, então, ao grupo de projeto da Jornada Mundial da Juventude a missão de recuperar as antigas instalações da Manutenção Militar Norte, no Beato.

Definiu, então, em Diário da República, que a área deveria destinar-se "à habitação, ao alojamento estudantil, ao alojamento urgente temporário, nomeadamente para pessoas em situação de vulnerabilidade, vítimas de violência doméstica e de tráfico de seres humanos e beneficiários de proteção internacional, à pequena agricultura e à criação de espaços de fruição cultural".

Por força da resolução da PCM, conta Sá Fernandes, “fui incumbido de limpar, lavar, fazer um levantamento das infraestruturas, levantamento arquitetónico de todos os edifícios, estrutural para saber o que é possível fazer aqui ou fazer acolá para encomendar projetos”. “E recebemos uma série de ideias dos melhores nas áreas performativas ou plásticas”, adianta.

“É essencial que as pessoas conheçam e saibam que isto existe"

“Recebi isto em janeiro e, na altura, percebi que era importante mostrar o espaço às pessoas. Acho essencial que as pessoas conheçam e saibam que isto existe. Fui incumbido de mostrar e mostrei a muita gente, e hoje, de forma mais pública, estou a mostrar para as pessoas dizerem: 'uau'”, exclamou. “Temos isto? O que fazemos disto?”, questiona.

As possibilidades são muitas. “Isto pode ser a casa das artes, do teatro, da música, estúdios de ensaio e gravação, a casa da fotografia, ilustração, da informação e inovação, dos jornalistas, não me esqueci dos jornalistas, a casa dos fregueses”, desfila.

“Tem de ser bem pensado desde o princípio. Limitei-me a fazer os levantamentos, limpar, lavar e ouvir as pessoas”, volta a realçar. “Pode haver outras ideias”, acrescenta.

“Mas para já, podem visitar. Antes não podiam, chocávamos em pombos, ratos e lixo. Agora podem visitar com o brio que o Estado deve ter quando mostra as coisas, mesmo que estejam vazias. Brio. Já é uma grande vantagem. A segunda é o levantamento disto tudo: tipográfico, infraestruturas, água e eletricidade”, enumerou.

200 camas para estudantes e 200 casas de renda acessível

Entra em detalhes à medida que palmilha edifícios despidos e crus, prontos a habitar de pessoas e ideias. Há registos de uma vida passada. Linhas férreas cruzadas no chão, por onde se distribuía pelos armazéns tudo o que vinha de comboio.

“Tem edifícios, dois já existentes, que podem servir para residências de estudantes, 200 camas previstas”, começou. “Tem espaço amplo onde se podem construir 200 casas de renda acessível de acordo com o PDM aprovado, tem dois edifícios vazios, com quatro e cinco andares, tem um potencial perfeitamente extraordinário”, um oásis separado do grosso da propriedade pela linha férrea do Norte, à qual se acede por passagem subterrânea.

“Podem viver aqui, ao fim de quatro anos, mil pessoas de forma acessível. Sejam estudantes, gente que se integre”, sublinha. “A ideia é pôr pessoas a viver aqui, com renda acessível, seja malta nova ou não. Podemos ter dez pessoas que vivam aqui após concurso de renda acessível e ter três apartamentos reservados a refugiados, algo que seja integrado e não um gueto, a inclusão é assim que se faz. Este é o meu pensamento”, sintetiza.

Há espaço para coworking e algo que pode e deve ser “agregador das várias culturas”, defende.

“Isto também é uma casa de grande cultura e mistura. Pode ser a casa da fotografia e a casa da ilustração. Com coisas físicas lá dentro para se visitar. Mas aqui também pode ser a casa das artes plásticas, do teatro, da dança, do ensaio, da música, estúdios de som e gravação”.

“Pode ser o sítio para as artes todas se encontrarem”, resume. “Vieram cá especialistas de cada uma das áreas e fizeram esse levantamento”, ressalva.

Mas há mais. “Há espaço para cafés, quiosques, restaurantes nas dezenas de milhares de metros quadrados”, indicou ao apontar para o espaço que serve de hall de entrada no “Bairro do Grilo”.“Isto pode ser uma praça espetacular para eventos”, diz.

As multiplicidades de novas vidas podem desabrochar em cada um dos diversos e distintos pavilhões, de amplitudes largas, ora assentes em pilares, ora despidos de paredes, e pé direito que permitem dar asas à imaginação.

Uma escola e um cinema Paraíso

A visita guiada levou-nos por pavilhões e armazéns. Uns estão ocupados atualmente pelos bombeiros que acompanham as obras do Plano de Drenagem de Lisboa. “O meu sonho era ter aqui o Museu dos Carros dos Bombeiros. Alguns estão cá”, revela.

“Existe uma escola integrada que está a funcionar. Pode ter berçário e creche. E pode ser independente, porque tem um portão aberto para a rua de Marvila”, afirma Sá Fernandes.

Fala com especial carinho do cine-teatro, composto de plateia e primeiro balcão. “Quando aqui entrei, fui à casa de máquinas, recordei-me do filme “Cine Paraíso”. Lembrei-me do Alfredo e chorei. Disse 'uau, isto tem de ser mostrado'”, recorda.

“O sítio dos azeites é um sítio mágico, único, pode ter passagem de modelos, restaurantes, literacia dos azeites (as pessoas não sabem que há 30 variedades e só conhecem uma, a galega). Espero bem que se mantenha este património industrial. É para manter”, reforça, esperançado.

E sempre as artes. “Dou dois exemplosde necessidades a que se pode dar resposta, os fotógrafos sentiam a necessidade de ter a casa da fotografia, os ilustradores de terem a casa da ilustração, para mostrar e aprender de forma acessível”.

Repete a palavra que está na génese do Bairro do Grilo, um local “para todos”. “A cultura acessível para todos. Vemos que não há sítios para se ensaiar, para a música, dança ou teatro. Não há pensamento para o emergente, para quem está a começar. E isso era histórico”, assinala.

Uma despedida e 50 milhões de euros pela frente

Ao todo, toda esta transformação obriga a um investimento de 50 milhões de euros. Quatro anos é a distância que separa o plano idealizado do relatório que deverá preceder a obra a realizar.

O investimento trará a outra face, o rendimento. “Por mais que seja renda acessível, um quarto a 200 euros ou as habitações a 400 ou 500, dependendo de ser T1, T2 ou T3, isso gera milhares de euros. E também porque se aluga um estúdio de música a dez euros, que seja barato, acessível, seja para todos”, reforça.

“O presidente da Junta de Freguesia do Beato disse-me que ter miúdos a estudar e gente a aprender artes é a melhor coisa que poderia acontecer ao Beato. Lembram-se da piada do “há petróleo no Beato” (peça de Raul Solnado)? É que há mesmo. Só que é este outro e é melhor”, compara.

“Entrego o projeto e quem ficar dono disto, o governo (ESTAMO), fará o que entender. Entender-se-á com a CML (que reclama este terreno depois de ter adquirido a parte sul da Manutenção Militar para erguer o Hub Creativo do Beato)”, antecipa.

“Em 31 de dezembro, com a entrega do Parque Verde em Loures e este plano, acabo a minha missão na JMJ”, despede-se o coordenador. “Acabo o mandato e espero apresentar o legado ambiental da Jornada ainda em dezembro e vou fazer outra coisa. Mas fiquem com isto. Os contactos que tive com a música, atores, ilustração e fotografia, a sensação de que fiquei é que os “despejados” querem isto. É único”, finaliza.