O medo que se vive na Austrália é contado a partir da lente de Lyndi Cohen, uma influencer judia que relata nas suas redes sociais os episódios de ódio e descriminação pelos quais tem passado e que tem testemunhado dentro da comunidade onde vive.

Desde a infância que a jovem recorda ser sujeita a situações de perigo por ser judia, mas revela aos seguidores que com a escalada dos casos de violência antissemita já não se sente mais segura. “Sei que me vão deixar de seguir e escrever comentários de ódio simplesmente por ser judia”, partilha.

O que está a acontecer na Austrália?

No início deste ano, a polícia australiana descobriu uma caravana de explosivos nos subúrbios de Sidney e uma lista de alvos judeus. “Isto representa, inegavelmente, uma escalada no ódio racial e na potencial violência em Nova Gales do Sul”, disse o primeiro-ministro do estado, Chris Minns, aos jornalistas.

Depois de mais três edifícios ligados à comunidade judaica terem sido alvo de graffiti antissemita em Sydney e da tentativa de ataques terroristas direcionados a este grupo, o Governo australiano começou a mobilizar-se para arranjar soluções.

E, por isso, nomeou um enviado especial para enfrentar o antissemitismo no país e combater a islamofobia na Austrália, disse aos jornalistas o primeiro-ministro, Anthony Albanese, no Museu Judaico de Sydney, citado pela Lusa. Por sua vez, Anthony Albanese nomeou a advogada Jillian Segal como "enviada especial para combater o antissemitismo na Austrália" durante três anos.

As denúncias de antissemitismo aumentaram 700% logo depois de os militantes do Hamas terem desencadeado a guerra em Gaza e continuam a ser 400% a 500% mais elevadas do que antes do conflito, afirmou a enviada especial.

Os relatos incluem boicotes e a vandalização de empresas de propriedade judaica, bem como a exclusão de artistas judeus e proibições nas redes sociais que restringem a visibilidade destes, indicou Jillian Segal.

"Infelizmente, não existe uma resposta única para o problema perene do antissemitismo", disse. "Mas a criação desta função mostra a determinação do Governo em enfrentar este mal e garantir que ele não corroa a bondade que existe na nossa sociedade", acrescentou.

Fotografias divulgadas pelos meios de comunicação locais mostram símbolos pintados a vermelho no muro do perímetro da sinagoga, localizada no distrito de Newtown, que remetem para a suástica nazi usada por Adolf Hitler. Uma outra sinagoga, também em Sydney, tinha sido alvo na sexta-feira daquilo que as autoridades australianas classificaram como um “ataque de ódio”.

No início de dezembro, um ataque, classificado pelas forças de segurança da Austrália como um ato terrorista, causou um incêndio numa sinagoga na cidade de Melbourne.

O grupo de deputados judeus de Nova Gales do Sul considerou o ataque inaceitável e disse que ninguém deve viver com medo de crimes antissemitas. "As leis devem ser aplicadas de forma mais eficaz para lidar com o discurso de ódio e a incitação à violência", reforçaram, na rede social X.

Em fevereiro a Austrália aprovou leis rigorosas para combater os crimes de ódio, introduzindo penas de prisão obrigatórias de um a seis anos para crimes de terrorismo e exibição de símbolos de ódio, como as suásticas, avança um jornal local.

A legislação cobre todos os crimes de ódio associados à etnia, religião e género. As pessoas que cometem crimes de ódio como fazer uma saudação nazi ou outros símbolos terroristas em público ou insultar alguém enfrentam penas de prisão mínimas de, pelo menos, um ano, enquanto as pessoas consideradas culpadas de crimes de terror podem ser presas até seis anos.

“Estas são as leis mais fortes que já tivemos”, concluiu o ministro do interior Tony Burke à SBS News. De acordo com a emissora, muitos australianos consideraram a nova legislação “injusta” e “controversa”.

Ainda assim, milhares de australianos saem à rua em solidariedade com a comunidade judaica, apelando ao fim do ódio e da violência.

O que justifica o ressurgimento destes movimentos?

O crescimento do antissemitismo na Austrália está relacionado com o crescimento da extrema direita no mundo. O populismo político e a promoção de ideais nacionalistas fizeram aumentar o sentimento de raiva e frustração direcionado a Israel, e em defesa do povo palestiniano.

No verso da moeda, o povo palestiniano é também prejudicado pela escalada da violência e pela aproximação dos australianos aos pólos extremistas do cenário político internacional. A discussão está relacionada com a exterminação do povo palestiniano, motivada pela recusa de libertação dos reféns israelitas pelo Hamas. Nas redes sociais, a associação judaica na austrália partilha publicações da campanha de Donald Trump e incentiva a continuação da guerra na Faixa de Gaza.

Se a Austrália é racista é uma pergunta que é feita frequentemente, e a maior parte dos investigadores e sociólogos dizem que sim. A doutoranda na School of Social Sciences Matshepo Molala relaciona a violência ao crescimento de movimentos e figuras públicas ligadas à extrema direita num artigo publicado pela The Conversation.

A investigação revelou que 38% das pessoas inquiridas relataram ter sido tratadas de forma injusta devido à sua origem indígena, 44% disseram ter ouvido insultos raciais e 59% relataram ter experienciado "racismo relacionado com a aparência", onde receberam comentários sobre o seu aspeto físico ou sobre como "deveriam" parecer enquanto pessoas aborígenes ou dos Estreitos de Torres.

Para muitos, o crescimento desses movimentos nazis é alimentado por desinformação, algoritmos de redes sociais e a exploração de sentimentos de descontentamento e isolamento. As recentes organizações de ceticismo em relação à COVID-19, associada a teorias da conspiração como a Agenda 21 da ONU ou Governo Mundial Único, promoveram discursos populistas na Europa.

Os jovens são influenciados por narrativas de ódio e conspiração e recrutados para estes grupos, minando a confiança das novas gerações nas instituições democráticas e na ciência e criando divisões profundas na sociedade.

A Austrália é racista?

Matshepo Molala considera que “a ideia da Austrália como um país multicultural tem sido usada para nos proteger de conversas honestas e maduras sobre raça. Isso significa que os sistemas que sustentam e perpetuam o racismo não são suficientemente questionados ou desmantelados”.

Já Fethi Mansouri, Diretor do Alfred Deakin Institute for Citizenship and Globalisation, comenta que “se aplicarmos esta afirmação generalizada, estamos a assumir que todo o sistema de governação, todas as instituições, todas as práticas interpessoais, o sistema educativo, o sistema judicial – tudo é explicitamente e deliberadamente motivado por discriminação. E eu não acho que se possa dizer isso sobre a Austrália”.

No entanto, na opinião do investigador, o principal problema prende-se com o facto de que “tem faltado consistentemente liderança nacional para assumir a responsabilidade de combater o racismo nas instituições-chave”. Acrescenta que “não temos dados que nos digam qual a prevalência do racismo, nem temos mecanismos de denúncia robustos para onde as pessoas possam recorrer quando experienciam racismo”.

Matshepo Molala dá outro exemplo da falta de ação política neste campo: “Dias que poderiam proporcionar a oportunidade de ter discussões públicas francas, como o Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial (21 de março), são, em vez disso, renomeados como "Dia da Harmonia", evitando falar sobre raça de todo”.

A resposta da comunidade israelita em Portugal

A comunidade israelita em Portugal “acompanha com preocupação” o que se passa na Austrália, refere ao SAPO24 David Joffe Botelho, presidente da Comunidade Israelita de Lisboa (CIL). “O antissemitismo é um fenómeno que não conhece fronteiras”, continua, “apesar de a Austrália estar do outro lado do mundo, choca-me o nível de violência e de vandalismo, que de acordo com o que tenho visto decorre de atos planeados e premeditados, contra judeus”.

O presidente refere o relatório “Jewish People’s Experiences and Percepetions of Antissemitism”, um trabalho da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia, “que apresenta os resultados do terceiro inquérito realizado por esta entidade entre os judeus da União Europeia respeitante à sua vivência e experiência no que concerne ao antissemitismo, realizado antes dos ataques terroristas do Hamas (janeiro e junho de 2023)”. Destaca duas conclusões: “96% dos judeus que habitam na Europa afirmaram ter sido vítimas de antissemitismo” e “apenas 18% dos participantes considera que o Governo do seu país está a combater efetivamente o antissemitismo”.

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Para David Joffe Botelho, estes dados reforçam que é necessário “condenar todas as formas de antissemitismo, sejam elas mais ou menos visíveis, mais ou menos violentas”. Refere a manifestação contra o Estado de Israel, em frente ao Cinema São Jorge, no passado dia 22 de maio de 2024, como um exemplo de uma ação antissemita em Lisboa. “Alguns dos membros da nossa comunidade foram insultados, foram sujos com ovos e baldes de tinta, foram intimidados com captura de fotografias e de vídeos. O antissemitismo está mais visível e desenvergonhado”, reforça.

CIL
CIL

David Joffe Botelho, presidente da CIL

Composta e representada por judeus portugueses, a CIL mostra-se solidária com as restantes comunidades judaicas que sofrem da mesma descriminação pelo mundo, apesar de admitir não ter um contacto regular e por isso não ter tido a oportunidade de conversar com os australianos. Considera “chocante e repugnante” qualquer forma de “intolerância, de discriminação ou de ódio contra grupos específicos de pessoas”.

E, por isso, defende que também “a islamofobia é reprovável e condenável”. Apesar das rivalidades, David Joffe Botelho acredita que é preciso “saber separar o que são terroristas e movimentos radicais violentos, do que são pessoas inocentes, sejam eles muçulmanos, católicos ou de qualquer outra religião”. A CIL “tem o maior respeito e consideração por todos os palestinianos inocentes que sofrem nas mãos dos terroristas. Os palestinianos inocentes também são vítimas, e isso é preciso que seja dito de forma clara”.

Reconhece, ainda assim, que “após o 7 de outubro as manifestações de ódio antissemita (ameaças, insultos, ataques físicos, vandalismo e violência) aumentaram”, promovidas também pela “ignorância, desinformação, falta de literacia. Na opinião do representante, cabe “à classe política prestar atenção a este fenómeno e procurar aumentar o nível de literacia e de conhecimento das pessoas. A educação e a cultura são amigos do respeito e da tolerância”.

Além disso, o representante deixa uma palavra de solidariedade para a comunidade australiana: “O antissemitismo é uma preocupação de todos aqueles que partilham valores humanistas e que querem uma sociedade que avance e que progrida. A discriminação e ódio são travões ao desenvolvimento e ao progresso, são fatores que limitam e condicionam. Mas este não é um problema português e europeu, é mesmo um problema global que requer palavras, mas sobretudo que exige ação”.

O peso de um passado colonial

Os casos de violência na Austrália não são recentes, já são comuns os casos de descriminação contra os aborígenes australianos, o que levou a Austrália a indemnizar as vítimas. Foi levada a cabo “uma investigação histórica sobre mulheres e crianças aborígenes desaparecidas e assassinadas", que voltou a trazer a discussão para cima da mesa.

No caso das mulheres aborígenes, o problema é mais grave. Há testemunhos de violência policial direcionada a este grupo de mulheres, que é acusado de serem as culpadas pela violência familiar da qual são na verdade vítimas. “Prendem as mães e separam-nas das crianças”, descreve o SBS News.

A violência contra este grupo de pessoas levou as Nações Unidas a pressionar os governos para melhorar os direitos das pessoas indígenas. No Fórum Permanente sobre Assuntos Indígenas, um órgão das Nações Unidas, Hannah McGlade, representante do povo Kurin Minang Noongar, um grupo indígena da Austrália, deixou o seu testemunho.

"O meu povo, os Noongar, foi violentamente despojado das suas terras pelos britânicos e foi basicamente escravizado: a minha bisavó foi uma criança trabalhadora sob contrato de servidão. As pessoas que resistiram às leis muito cruéis da época foram encarceradas e levadas das suas terras com correntes para uma prisão insular, onde muitas morreram. As crianças aborígenes foram retiradas à força das suas famílias, em massa, como parte de uma política chamada assimilação.

Esta é a nossa história violenta. Enquanto crescia, enfrentámos muitos problemas, incluindo racismo e o targeting de pessoas aborígenes, incluindo jovens aborígenes, pela polícia; violência contra as mulheres; a recusa dos nossos direitos à terra; e a pobreza".

*Com Lusa