Ginny não tem certeza do que surgiu primeiro – o mau hábito ou o rapaz.

Apareceram praticamente ao mesmo tempo, como dois comboios que chegam a uma estação vindos de direções opostas. E, ao partir, um deles demorou muito mais que o outro.

À primeira vista, não parece haver qualquer relação entre os dois – um deles é um ser humano; o outro, uma imperfeição humana. Contudo, na essência, é o mesmo o que os impulsiona: falsas versões de amor. Um deles, uma forma errada de amar alguém; o outro, uma forma errada de se amar a si mesmo.

Não estava nos seus planos ter bulimia. Estará nos de alguém? Procurará alguém desenvolver uma doença mental? Ela não, sem sombra de dúvida. Aconteceu, foi tudo. Tal como com Finch. Pouco a pouco, deixou-se absorver por algo inebriante, algo perigoso. E quando percebeu o que estava a acontecer, era demasiado tarde.

*

Adrian lembra-se do momento exato em que decidira não se apaixonar.

Tinha onze anos. Há uma semana que a mãe não parava de chorar. Ele não conseguia perceber o que se tinha passado entre ela e Scott. De facto, passariam muitos anos até compreender todo o alcance da traição do padrasto.

Subira as escadas periclitantes da sua nova casa, em Indianapolis, metade do apartamento dúplex que partilhavam com um casal de olhar alheado e estranhas erupções por todo o rosto. Com uma tigela de papas de aveia numa mão, uma chávena de café na outra. Mesmo que a mãe não quisesse comer, ele tinha de tentar.

Empurrou a porta do quarto com suavidade. Ela estava deitada de lado, em posição fetal. Mesmo naquele estado vegetativo, parecia infelicíssima. Tinha a testa enrugada, os olhos inchados. Os lábios moviam-se silenciosamente, como se rogasse uma prece.

Pousou a tigela e a chávena na mesa de cabeceira.

Eu não, pensou. Não quero nada disto, nunca na vida.

PARTE I

Ginny Murphy está outra vez a perder as forças.

Puxando com esforço a mala pelo quinto e último lanço da escada que conduzia ao apartamento dos amigos, num prédio sem elevador do SoHo, tinha perfeita noção disso. As pernas e os braços tremiam-lhe. Estrelinhas começavam a perturbar-lhe a visão. Eram seis da tarde e ainda não tinha comido nada, o dia inteiro.

Se Heather ali estivesse, não deixaria Ginny privar-se assim. Trataria de pegar no telemóvel e de lhe mostrar uma lista de todos os músculos, de todos os neurónios e de todos os órgãos que precisam de energia para sobreviver. Depois, obrigava-a a comer um dónute.

Maria João Lopo de Carvalho junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 13 de dezembro, uma quarta-feira, pelas 21h00. A autora traz "Os Cinco e o quadro desaparecido", editado pela Oficina do Livro.

Para se inscrever no encontro basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as instruções para se juntar à conversa.

"Os Cinco" é uma das mais conhecidas e bem-sucedidas séries literárias para crianças e jovens da autora britânica Enid Blyton, publicada e traduzida em vários países. Com o passar dos anos, deu origem a outras histórias, com as mesmas personagens, escritas por diferentes autores noutros países, como Sarah Bosse (Alemanha) e Claude Voilier (França).

Esta série literária de aventuras, escrita por Blyton entre 1942 e 1963, tem agora continuidade em Portugal pela mão da autora Maria João Lopo de Carvalho, pela Oficina do Livro (grupo Leya), a editora que detém os direitos e publicou os 21 volumes da coleção.

Maria João Lopo de Carvalho tem 61 anos, foi professora de Português e Inglês, criou uma escola de língua inglesa, trabalhou em publicidade e na Câmara Municipal de Lisboa e tem mais de 70 livros publicados, entre obras para adultos e para os mais novos.

Quando chega ao apartamento 5E, Ginny para um momento a compor a saia e pestaneja para dissipar as luzes que lhe toldavam a visão. Sozinha no Minnesota, era fácil esconder os seus hábitos alimentares. Mas ali, com um grupo de rapazes que a conhecem desde o primeiro ano da universidade?

Não seria tão fácil.

Levanta o braço e bate duas vezes na porta.

Chegou! – exclama uma voz lá dentro.

Ouve passos e a porta abre-se rapidamente, revelando uma massa de cabelo ruivo e um sorriso tão largo que parecia iluminar toda a entrada.

– A doida da Ginny Murphy – gritou Clay, o seu melhor amigo.

Então, arrebatada por dois braços frenéticos e sardentos, sentiu-se rodopiar no corredor. Riu-se. Não se lembrava de escutar um som daqueles a sair da sua boca.

Clay pousa-a e agarra na mala dela. – Bem-vinda a Manhattan.

*

Adrian Silvas gozava o intervalo das seis horas. Faltavam quinze minutos para sair da Goldman e passar pelo Gregory’s, em East 52nd, para buscar um café: tirado a frio, sem açúcar, com um pingo de leite de amêndoa. Um energizante para uma noite que seria longa, sabia-o. Pouco importava que fosse sexta-feira. Pouco importava que os gestores já tivessem saído. Os analistas ficam à secretária até os olhos lhes saltarem das órbitas.

Adrian optou pela banca de investimento porque foi o que toda a gente lhe disse para fazer. Tal como foi para Harvard porque foi o que toda a gente lhe disse para fazer. Tal como se tornou vice-presidente do clube exclusivo a que pertencia porque foi o que toda a gente lhe disse para fazer.

Quando assinou contrato com a Goldman Sachs, não fazia ideia daquilo que o esperava. De quão longas seriam as horas de trabalho. Do quão fastidioso este seria. De quão total e completa- mente lhe sugaria a alma. Agora, não sabia que uso dar a todo o dinheiro que possuía, nem tinha tempo para o gastar.

«Eső után köpönyeg», costumava dizer o avô. (Depois da chuva vem a gabardina.)

*

Clay conduz Ginny pelo pequeno corredor que desemboca na sala de estar. Ainda não tinham dado três passos, quando um novelo de cabelo castanho-claro e algodão cinzento lhes barrou o caminho.

– Gin-a-vieve! – gritou o novelo, lançando-se contra ela e apertando-a num abraço. – Conseguiste!

– Tristan – diz Ginny contra o ombro do amigo –, quantas vezes tenho de te dizer? Chamo-me...

West Virginia – canta Tristan, soltando os ombros de Ginny e esticando uma mão no ar. Clay encosta-se ao companheiro de quarto e, juntos, entoam: – Mountain Mama. Take me hooo-me, country roads (1).

Quando terminam, Clay faz um grande sorriso.

– Aposto que tiveste saudades nossas.

– Vi que chegaste num 757 – diz Tristan, subitamente sério.

– Era dos largos? Céus, daria o meu braço esquerdo para estar num menino de fuselagem larga neste preciso momento. Sabes que há mais de um mês que não ponho os pés num avião? Acho que tenho síndrome de abstinência. Mas descarreguei esta aplicação, olha só, e...

E saiu.

Livro: "Uma Rapariga entre Rapazes"

Autor: Emma Noyes

Editora: ASA

Data de Lançamento: novembro de 2023

Preço: € 18,90

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Quando se conheceram, no primeiro ano da universidade, Ginny não achou que fosse gostar de Tristan. O débito verbal do rapaz capacitava-o para participar em três conversas de uma só vez e os seus temas preferidos eram finanças, finanças e finanças. Era obcecado por vendas a descoberto e não havia nada que lhe desse mais prazer que arruinar a economia de um pequeno país.

Contudo, também dizia sim a tudo, ria-se das piadas de toda a gente e experimentava qualquer comida que lhe pusessem à frente. Era de uma curiosidade insaciável, e estranhamente infantil na sua obsessão por aviões.

Adorava-o.

Ginny adora rapazes. Não de forma sexual; para ser franca, há anos que não se sentia atraída por ninguém. Não, aquilo que aprecia nos rapazes é a sua companhia. Ter amigos rapazes não é como ter amigas raparigas. São mais simples. Livres de dramatismo.

Também gosta de corpos masculinos. Dos cortes de cabelo descuidados e das roupas previsíveis. Da forma curiosa das pernas – finas nos tornozelos e redondas nos gémeos, como postes telefónicos inchados pelas chuvas da noite anterior. A forma estúpida e honesta como forçam o riso.

Mas, sobretudo, gosta dos rapazes dela.

Agora, acompanhando Ginny e Clay ao longo do pequeno corredor que conduz à sala de estar, Tristan fala com entusiasmo sobre a aplicação de voos que instalara no telemóvel.

O apartamento dos rapazes, no SoHo, era a paradigmática espelunca habitada por jovens em início de vida ativa: soalho que range por todos os lados, tinta bege nas paredes e um chuveiro que parecia ter sido construído antes da queda do muro de Berlim. Todos eles tinham acima de um metro e oitenta de altura; Ginny não sabia como conseguiam ter espaço para dobrar as pernas na casa de banho do tamanho de uma ervilha.

– Tristan, se tiver de ouvir mais alguma informação sobre padrões de voos domésticos, atiro-me pelas escadas de emergência – admoestou uma voz áspera e grave na sala.

Ginny inspira fundo. Ele também lá estava.

Finch.

Entra na penumbra da sala de estar e depara com ele: Alex Finch, o quarto e último pilar do seu grupo de amigos. Estava sentado numa poltrona baixa, com o aux cord enfiado no telemóvel e a guitarra equilibrada no colo. Finch estudava cirurgia ortopédica na Universidade de Nova Iorque. Tinha o cabelo louro cortado curto e um sorriso gozão. Era absolutamente brilhante e também estúpido, como são estúpidos todos os homens brilhantes.

Quando Ginny pensa no primeiro ano da universidade, pensa em Finch. Nas mãos dele na sua cintura, sobre a sua camisa. A sensação do tecido quando lha tirava. Os olhos dele quando a possuíra pela primeira vez. Pensa em como o beijava até ficar com o rosto vermelho da barba dele.

Para, pensou. Para com isso.

Força-se a sorrir e dá um passo em frente.

– Finch. Olá.

– Gin. – Ele pousa a guitarra e levanta-se. Em duas passadas compridas, está à frente dela. – É ótimo ver-te – declara, colocando os braços à sua volta e puxando-a para um abraço.

Ginny tenta não respirar, receando ser perturbada por um odor demasiado familiar.

Depois de se desembaraçar do abraço de Finch – que dura um segundo mais do que seria adequado –, Ginny caminha até ao sofá cinzento e senta-se. Agora que estavam reunidos os quatro na pequena sala, não havia muito espaço para respirar.

– Então – principia Clay, pousando a mala dela ao lado do televisor e percorrendo a curta distância que o separava da kitchenette minúscula. – Para hoje à noite, estávamos a pensar em póquer e umas primeiras bebidas até o Adrian chegar e depois seguir para os bares.

Clay é o cabecilha. Pode não ser o mais falador – essa distinção é incontestavelmente de Tristan –, mas é quem tem mais poder. Quem planeia e comanda as tropas. Atualmente, está numa consultora que trabalha para o governo, mas um dia provavelmente será presidente dos Estados Unidos. O homem conseguia fazer amizade com uma planta de interior.

– Aposto que consigo uma mesa no Tao – anuncia Tristan. – O dono é amigo pessoal do meu pai. Ainda no ano passado visitámos a casa dele, nos Hamptons e...

– Cala-te, Tristan – ordenam Ginny e Clay em uníssono. Continuava na ponta da língua, o seu velho mantra, as palavras que reservavam para quando o amigo começava a discorrer sobre as relações do pai ou o capitalismo tardio. Trocam generosos sorrisos de surpresa. Os dentes de Clay sobressaem, brancos e brilhantes, entre o cabelo ruivo. A familiaridade da imagem deixa Ginny profundamente comovida.

– Então – retoma Clay, piscando o olho e dando meia-volta para abrir o pequeno frigorífico que ficava a um canto –, como vai o trabalho, Gin?

– Oh... Sabes como é... – replicou ela, remexendo-se no sofá. – É trabalho.

– Mas tu trabalhas para uma cervejeira – lembra Clay, sem se voltar, ocupado a procurar uma bebida fresca. – Isso é épico.

– Certo – concede Ginny. – Mas vivo no Minnesota.

No último ano do curso, ainda no outono, Ginny assinou contrato com a Sofra-Moreno, um conglomerado global na área da cerveja. Quando a SM iniciou o processo de recrutamento, ela era finalista em História e Literatura, prova de que o diploma não significa absolutamente nada e que, depois da universidade, podes fazer o que te der na real gana, desde que sejas convincente a mentir. O quê? Iria receber quase cem mil dólares por ano para se debruçar sobre a história da cerveja? Claro que não. Tinha de, pelo menos, fingir contribuir para os resultados da empresa.

Quando assinou contrato com a Sofra, Ginny preparava-se para uma excitante carreira global. Imaginava-se a visitar fábricas de cerveja pelo mundo inteiro. A ombrear com executivos. A subir até ao topo. Até mesmo a tirar a licença de cicerone, a tornar-se escançã de cerveja.

Até a colocarem no Minnesota.

Ia recusar. Ia procurar outro trabalho. Mas o ritmo das aulas começou a acelerar e todo o seu tempo livre desapareceu, e acabou por se deixar ficar. No caminho que lhe saiu na rifa.

– As cidades gémeas! – exultou Tristan. – Tens sorte de lá viver. Sabias que podes viajar para 163 cidades diferentes a partir de Minneapolis e Saint Paul? É um dos aeroportos centrais da Delta, e a Delta é a melhor companhia área de...

Tristan – interrompe Finch, não permitindo que aquele se alongue.

Tristan e Finch não se dão bem. Não é que não gostem um do outro; é mais por serem os dois lados da mesma moeda. São ambos corpulentos, têm ambos sorrisos travessos e cabelo encaracolado – o de Finch curto e louro o de Tristan comprido e castanho-claro – são ambos de famílias com dinheiro e frequentaram escolas privadas da Costa Leste, onde pertenceram à equipa de remadores mais experientes. Durante o ano de caloiros, em Harvard, várias vezes os tomaram por irmãos. Com o andar do curso, contudo, os dois separaram-se, como se em reação direta àquela comparação indesejada. Alimentaram as suas diferenças o mais que conseguiram. É a mesma lógica que preside aos conflitos constantes entre países vizinhos: desprezamos os que se assemelham a nós.

Tristan tornou-se o puto das finanças por excelência: graduou-se em economia, juntou-se ao clube de consultadoria dos estudantes de Harvard, estagiou num banco, usa camisas formais e sapatos de vela. Anda de cara rapada e com o olho sempre atento à sua carteira de investimentos.

Quanto a Finch, renegou tudo o que pôde da educação que teve. Deixou crescer o cabelo, começou a usar calças desportivas e a passar os tempos livres com a guitarra no colo ou no laboratório de física com um saquinho de erva na mochila.

Ginny desvia o olhar de Finch, procurando concentrar-se noutra coisa. No mais recente ocupante de Sullivan Street. O que não estava presente: Adrian.

Dos rapazes que viviam no apartamento 5E, era aquele que Ginny conhecia pior. Fora um acrescento de última hora. Um caso particular. Nas interações limitadas que tivera com ele na universidade, Ginny achara-o tão amistoso como um cato doméstico. Mas, se queria um lugar onde dormir durante a visita a Nova Iorque, teria de o aturar.

Dando por concluída a rusga pelo frigorífico, Clay tira os ingredientes com que preparar as bebidas, exatamente o que Ginny receava vê-lo fazer. Um shot de tequila são 100 calorias; um copo de limonada mais 100...

Ela levanta-se e atravessa a sala minúscula para abrir uma janela. Sente-se a entrada de ar fresco. Inspira profundamente antes de regressar ao sofá e se sentar.

Clay serve quatro copos de tequila e limonada. Finch acende um cigarro e põe-se a mexer na coluna Bluetooth, a escolher uma lista de músicas para o «aquecimento». Tristan tenta, sem sucesso, subtrair-lhe o aux cord. Enquanto isso, não param de conversar – sobre o trabalho, sobre desporto, sobre as raparigas com quem têm saído. Sempre que Tristan fala em aviões de fuselagem larga, Ginny e Finch atiram-lhe guardanapos.

Ginny sente-se envolver pelas vozes e repara que, por um brevíssimo momento, a sua ansiedade se dissipa. Era bom já não ser a rapariga. Ser apenas uma do grupo. Uma deles.

Inspira, enchendo o corpo de ar fresco e de fumo em segunda mão.

*

Adrian empurra a porta do número 200 de West Street, sede da Goldman Sachs, e lança-se na noite há muito escura. Não se lembrava da última vez que saíra com o sol ainda no céu.

Por algum milagre, conseguira sair do escritório antes da meia-noite. Há muito que não tinha uma oportunidade como aquela, de sair com os colegas de apartamento. Com os colegas e a rapariga. A Ginny.

Não a conhecera bem, na universidade. Via-a pelo campus – a descer Plympton Street de patins ou a dançar em cima de uma mesa com Clay, no Delphic –, mas não a conhecia de facto. Do que Clay lhe disse, depois de se formar, ela assinara contrato com aquela grande cervejeira e mudara-se para o Minnesota. Por norma, ele acharia inconcebível que alguém quisesse lá viver, mas naquele momento detestava tão profundamente a vida que levava em Nova Iorque que viver sozinho no Midwest lhe parecia um sonho.

Nunca se mudaria para lá, era certo. Se fosse para ir para algum lado, seria de regresso a Budapeste, onde tinha nascido.

Sente o telemóvel a tocar no bolso. Pega nele. É a mãe, para saber como está a correr a semana.

Milyen volt a heted?

Kiváló – responde ele. (Excelente.)

A sua mentira semanal.

*

A parte preferida do seu trajeto diário são os três quarteirões que transpõe até Prince Street. Nos passeios, quadros, joias e mantas dispostas pelos artesões. Mesas estendem-se dos restaurantes para o passeio, nas quais clientes arriscam carícias secretas por baixo das toalhas brancas. A cena fazia-lhe recordar Váci Utca. Em Budapeste.

Recorda os anos que passou na Hungria como os seus mais felizes. Embora a mãe tivesse o seu próprio apartamento – no qual Adrian vivia com a irmã mais velha, Beatrix –, ela trabalhava constantemente, o que ditava que ele passasse a maior parte do tempo com os avós, fora de Budapeste, numa casa que o avô construíra com as suas próprias mãos. Havia cerejeiras no quintal e rolinhos de couve no forno. Viviam perto de uma série de tios e tias-avós de Adrian, que se reuniam regularmente para celebrar o dia de algum santo obscuro. Havia sempre alguém que bebia demasiado. Havia sempre alguém que discutia com outra pessoa.

Anos mais tarde, Adrian recordaria essas discussões com nostalgia.

Quando fez oito anos, a mãe pô-lo em aulas de inglês. Uma vez por semana, ia de bicicleta até à casa de uma mulher húngara idosa e ficava a ouvi-la tagarelar numa língua que ele não compreendia nem queria compreender. Nunca participava. Nunca abria a boca. Porque o faria? Todas as pessoas da sua vida falavam húngaro.

Quando fez nove anos, a mãe anunciou que iam mudar-se para a América. Disse-lho na cozinha do apartamento, situado na baixa de Peste. Adrian nunca gostara daquele sítio. Preferia as casas coloridas e as ruas calcetadas de Szentendre.

Naquela tarde, a mãe sentou-o na mesa de madeira da cozinha e disse:

«Távozunk.» (Vamos viajar.)

«Hová megyünk?» (Para onde vamos?)

«América.»

A mãe ia voltar a casar-se, explicara. Com um homem cujo nome Adrian nunca ouvira. Um homem que vivia muito longe, numa terra estrangeira com o nome de Indiana. Ele não sabia como a mãe conhecia este homem, embora tivesse ouvido, mais tarde, Beatrix a sussurrar ao telemóvel sobre um qualquer site de encontros.

Adrian ficou a olhar para a mãe, que andava de um lado para o outro na cozinha, abrindo compras e arrumando especiarias. Movia-se com naturalidade, como se não tivesse acabado de anunciar ao filho que a vida como a conhecia acabara de terminar. A sua revolta era tanta que facilmente teria um ataque de fúria, se fosse esse tipo de pessoa.

Mas não era. Por isso, engoliu os sentimentos: toda a raiva, toda a tristeza, toda aquela dor de perder o único lar que alguma vez conhecera.

«Pakold össze a cuccaidat», instruíra a mãe. «Egy hét múlva indulunk.» (Arruma as tuas coisas. Partimos dentro de uma semana.)

Quando chega à porta do prédio onde mora, o telemóvel dá sinal de si. Pega nele para confirmar se será mais um e-mail de um gestor.

Mas não. É o seu futuro senhorio.

Encontrara o estúdio no StreetEasy. Ainda não dissera a Clay nem aos outros que está de partida que não renovará com eles o contrato de arrendamento. Viver com eles tem sido divertido, mas Adrian está preparado para experimentar a verdadeira vida de adulto. Para ter um sítio onde «pousar» e se abstrair de todos os estímulos.

Nos degraus à entrada do prédio, a brisa remexia um saco de plástico repleto de caixas de cartão. Uma entrega do Mamoun’s. Clay não devia ter ouvido o estafeta tocar. Era típico. Provavelmente, brindava Ginny com alguma história.

Quando Adrian acedera a mudar-se para aquele apartamento depois de se formar, Clay era o único dos colegas que ele realmente conhecia. Tinham-se encontrado no Delphic, do qual Clay era o presidente e Adrian o vice. Fora uma associação natural: Clay, com o seu carisma cativante, era o rosto do clube, enquanto Adrian se dedicava à organização e questões estratégicas. Não se importava com aquela configuração, pois nunca tivera apetência por se expor.

Enquanto sobe os quatro lanços de escadas, com o saco plástico a dançar na mão, Adrian imagina como será viver num estúdio: o seu próprio espaço, com uma cama e uma pequena cozinha, uma televisão para ver filmes e uma estante cheia de romances. Montes e montes deles.

Nos seus raros momentos livres, Adrian lê. Ficção, sobretudo. Gosta de histórias que o arrastem para a psique do narrador, que o obriguem a sentir. Porque acontece. Sentir. Sente de uma forma que lhe parece impossível na vida real. Os personagens morrem, ele fica triste. Os personagens apaixonam-se, ele fica contente. Podia não chorar alto, nem se rir alto, mas sentia algo no peito, um aperto no estômago, um arrepio de excitação que lhe percorria o corpo todo.

Talvez se tratasse da segurança do irreal. De saber que pode fechar o livro ou desligar a televisão, que a emoção, também ela, se apagará. Como um resguardo à volta do coração.

*

Assim que Tristan vira a carta que completa o full house de Ginny, a porta do apartamento abre-se e Adrian Silvas entra. O seu rosto permanece momentaneamente na sombra. Enverga o típico uniforme dos bancários: casaco, camisa com colarinho com botões, calças vincadas e sapatos de couro.

Ginny suspira interiormente. Lá se vai a minha boa disposição.

– O zombie está de volta – provoca Finch, pousando o telemóvel. – E cedo.

– O gestor foi passar o fim de semana aos Hamptons – esclarece Adrian, fechando a porta e entrando na sala de estar. Traz numa das mãos um saco de plástico que liberta um aroma revelador a grão de bico frito e fatias de cordeiro.

A atenção de Ginny desvia-se de imediato para a comida. Inspira profundamente algumas vezes. Seria capaz. Fora para aquilo que se preparara, a razão pela qual não levara nenhuma comida à boca durante o dia inteiro. Para criar uma caverna dentro de si. Podia comer, pois a comida cairia no mais profundo dessa caverna, muito longe das suas ancas, coxas e ventre.

Seria só uma noite.

Sente o telemóvel tocar no bolso. Pega nele e olha para o ecrã. É um FaceTime da irmã, Heather. Como fez tantas vezes, toca em ignorar.

– Olá, Ginny.

Ginny ergue os olhos. Diante dela, Adrian pousa a comida na mesa de apoio e desaperta o casaco. Sorri brevemente. Ginny mal entrevê os dentes brancos e uns olhos risonhos entre a barba do final do dia e o cabelo escuro. Tem o maxilar comprido e firme, os olhos castanhos tão escuros que quase parecem pretos. Parece cansado, muito cansado, mas genuinamente feliz por a ver.

Aquele breve sorriso tem um efeito estranho nela. Como um ruído surdo num vulcão há muito adormecido. A sensação deixa-a estupefacta. Baixa os olhos, sentindo o rosto a aquecer. Quando volta a erguê-los, vê Adrian, a observá-la com curiosidade.

Lembrando-se das suas boas maneiras, levanta-se de um salto. O telemóvel foge-lhe da mão e sente a cabeça a andar à roda.

– Adrian, olá! – cumprimenta com voz demasiado aguda. Pestaneja para afastar as estrelinhas que teimam em querer entrar no seu campo de visão. – Há quanto tempo! Como estás? Como correu o trabalho?

– O trabalho foi um sacrifício total, como sempre – declara Adrian.

Ginny volta a pestanejar e a sua visão estabiliza.

– Não gostas de trabalhar na banca?

– Ninguém gosta de investimento bancário.

– Oh... – Ginny inclina a cabeça, analisando-o atentamente.

É bonito. Bem mais bonito do que se lembrava. – Nunca diria que alguém com tão bom aspeto detesta o que faz.

Arrepende-se daquelas palavras assim que estas lhe saem da boca. Merda. Aquilo era um insulto ou um elogio? Há tanto tempo que não socializava que parecia ter-se esquecido de como se faz.

Durante um instante, Adrian limita-se a olhar para ela, com os lábios entreabertos, as sobrancelhas franzidas. Ginny abre a boca para pedir desculpa, para dizer que estava a brincar, mas, entretanto, sem aviso, o rosto de Adrian abre-se num sorriso que o transforma, pulverizando as rugas de cansaço do seu rosto, ditando o desaparecimento do rapaz distante que recordava da universidade. Isto perturba-a de tal modo que quase cai para trás.

– Obrigado – replicou ele. – Parece-me.

– Vamos começar agora com o Texas Hold’em – anuncia Clay. – Queres juntar-te, pá?

– Preciso de tomar um duche e trocar de roupa. – Adrian dá meia-volta e dirige-se para o quarto, acenando por cima do ombro. – Foi bom ver-te, Ginny.

A porta dele fecha-se. Ginny não afasta o olhar da madeira branca lascada.

Hum.

(1) Música «Country Roads», de John Denver, que evoca a pertença e o regresso a casa. (N. da T.)