
“Os meus amigos de vez em quando leem notícias e coisas que acham que podem ser inspiradoras para canções”, então uma amiga enviou a história de “um casal com o apelido Feliz, mas que decidira terminar a vida junto, ou seja, terminar-se”, em Vila Real, onde vivia na altura, disse a cantora em entrevista à agência Lusa.
“Eu achei isso super irónico e poético ao mesmo tempo, então decidi escrever uma canção [‘Maria Feliz’] sobre isso. Só que todos os meus assuntos ficam resolvidos nas canções, mas este não ficou. Foi uma história que parecia que continuava em mim a querer ser mais alguma coisa. Então, decidi começar a escrever um texto que eu achei que ia ser uma peça de teatro, porque eu já ando há um tempo a querer escrever uma peça de teatro, e comecei a escrever, e de repente percebi – eu acho que os personagens aqui têm muita vontade própria — que não queriam ser só canção, depois não queriam ser peça de teatro, quiseram ser romance”.
Um retiro de escrita oferecido pelo marido, que a deixava ao abrigo de distrações e das exigências que quatro filhos pequenos impõem, foi o “grande empurrão” para começar a escrever o livro, que não mais parou.
A história tem início pouco antes de Hitler ascender ao poder na Alemanha, atravessa todo o período da guerra fria, até à queda do muro de Berlim, e passa por Itália, antes de chegar a Portugal.
A narrativa é construída com base em duas histórias paralelas, uma das quais, acompanha Emmi, nascida antes do início da Segunda Guerra Mundial, com uma adolescência difícil e pobre, que se casa com um homem de Berlim Leste e vai viver para a RDA, até que a construção do muro, a separação da família e uma carta anónima a enterram numa profunda depressão.
A outra, acompanha M., nascida após a divisão das Alemanhas, educada por uma ama, numa família onde imperam os valores do socialismo. M. vive no total desconhecimento do mundo ocidental e ao sabor de uma realidade distorcida, até ouvir um testemunho de uma rapariga, que mudará a sua vida.
Nem todo o passado das personagens é ficcionado. Luísa Sobral sabia que esta mulher, de quem ninguém sabia o nome, a não ser o que ela usava para si própria, Maria Feliz, vinha da Alemanha de Leste e teve um grande amor em Itália.
“Eram essas três coisas que eu tinha: o fim, o facto de ela ter vindo da RDA, e Itália. E depois, eu não quis saber mais, porque isto não era sobre esta pessoa, esta pessoa era a minha inspiração. E porque eu queria ter toda a liberdade. Já estava tão condicionada com a parte histórica, que o resto, eu queria imaginar. Porque muitas vezes, aquilo que nós imaginamos é mais interessante do que a realidade”, contou.
Maria Feliz era “muito conhecida em Vila Real por causa das plantas”, e essa foi uma afinidade que Luísa Sobral descobriu ter com esta mulher, a “paixão pelas plantas”.
“Ela vivia lá numa casita, sem eletricidade nem nada, mas eles vendiam muitos produtos para mercados e tal, tudo feito com plantas. Ela sabia muito sobre plantas”, contou a escritora, confessando que achou isso também “muito poético”.
As plantas acabaram por tornar-se uma presença constante na vida da personagem M., que se dedica ao seu estudo e à construção de um herbário. É também um fator divisor dos capítulos que a essa parte da história dizem respeito, começando, cada um, com o nome (o comum e o científico), a descrição de características e a ilustração de uma planta.
Luísa Sobral destaca que não se limitou a começar os capítulos dedicados à vida de M. com uma planta, tendo mesmo feito uma separação, de acordo com a fase da vida em que se encontrava: “Quando ela está na Alemanha, são árvores, quando ela está em Itália, são flores, e quando está em Portugal, são ervas aromáticas”.
A estrutura do livro está dividida em capítulos dedicados a duas histórias passadas em épocas e geografias distintas, mas escritas em registo diarístico, separados por pequenas frases em jeito de versos, e intercalados com cartas, escritas por uma outra personagem.
As frases que separam os capítulos são aquilo que liga o romance à música, às suas canções, como sugeriu um professor com quem Luísa Sobral fez o retiro literário.
“Ao início, eu comecei a fazer uns poemas. Mas depois comecei a retirar, a retirar… E no fim, tornaram-se só assim uns pensamentos. E eu gostei disso, acho que é uma certa maneira de dizer o que aí vem e de respirar um bocadinho entre as coisas”.
No fundo, este é um livro que reúne na mesma história e no mesmo volume, romance, diário, herbário, texto epistolar e poesia, uma escolha intencional da autora que quis pôr no seu livro tudo aquilo de que gosta enquanto leitora.
A ideia da maternidade perpassa todo o livro, não só porque as duas personagens principais lutam com essa condição — uma porque quer ser mãe e não consegue, outra porque quis ser mãe, mas depois já não quis -, como toda a narrativa em torno das plantas remete para a ideia de “cuidar” e, no fundo, “é tudo uma maneira de cuidar”.
Terminada a escrita do livro, Luísa Sobral enviou-o à editora e escritora Maria do Rosário Pedreira, responsável editorial no grupo Leya, porque “sabia que ela ia ser a única pessoa que ia ser sincera”, já que antes disso, a autora já recebera outra proposta de uma editora para escrever.
“Sabemos que há muita gente que escreve livros, que às vezes nem os escreve, e como já tem alguma visibilidade noutras áreas, acabam por ser apelativos para o público em geral. Mas eu não queria ser essa pessoa, eu não queria ter um romancezeco com o meu nome (…), mas eu sabia que a Rosário ia ser sincera, porque ela é muito pragmática e muito direta e eu sabia que ela ia dizer-me se fosse um romancezeco”.
A editora disse-lhe que era bom e que o queria lançar — acrescentou — e o livro foi publicado este mês pela Dom Quixote.
Apesar de “Nem todas as árvores morrem de pé” ter surgido um pouco por acaso, numa sucessão de desenvolvimentos a partir de uma ideia inicial que não era a de um romance, não se ficará como um episódio isolado, revela Luísa Sobral, confessando: “Acho que me viciei um bocadinho nisto”.
Neste momento, está já a trabalhar num segundo romance, que trata do tema da morte e de como essa passagem pode ser natural, tanto quanto a da vida, uma ideia que resultou da sua experiência a fazer voluntariado numa unidade de cuidados paliativos de um hospital, onde canta para os doentes.
“Isso foi uma coisa que mudou muito a minha vida, mudou muito a minha perspetiva da morte e foi muito inspirador. E eu comecei a pensar numa maneira de falar, porque eu acho que é muito importante falarmos sobre a morte.”
*Por Ana Leiria, da agência Lusa
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