«Antonino Quinci, filho de Vito Quinci e de Angela Ferro, nascido a 28/11/56, em Mazara del Vallo, Trapani, Sicilia, Italia, marítimo, solteiro, residente em La Cappelletta, n.° 13, 2.°, Baleares, Espanha, actualmente preso.≫ Podemos ler esta informação num dos acórdãos mais conhecidos dos Açores, com data de 14 de dezembro de 2001, imputando factos que integravam a prática de crimes de tráfico de estupefacientes, uso de documentos falsos e evasão.

Quinci (na serie chamaram‑lhe Francesco Bonino), condenado a 11 anos de prisão, e o nome do responsável por uma catástrofe que teve lugar um pouco por toda a ilha de São Miguel, no ano de 2001. Como podemos ler no próprio acórdão, gentilmente cedido pelo juiz Araújo Barros, que também participa nesta investigação com o seu depoimento, mais a frente, o arguido capitaneava uma embarcação – o veleiro Mario, modelo Sun Kiss 47, de cor branca, matrícula n.° 14 do porto francês de Toulon, com 14 metros de comprimento, 3,25 metros de boca e 1,90 metros de calado. Antonino viajava sob identidade falsa, com o nome de Giovanni Speranza. No dia 30 de marco do mesmo ano, Antonino zarpou do porto de Pampatar, sito na República da Venezuela, vindo do porto de Martinica, e aportou na marina de Ponta Delgada, no dia 8 de junho, pelas 14h50, depois de ter fundeado no porto de Rabo de Peixe, nas 48 horas anteriores.

≪Propôs-se fazer uma viagem transatlântica, naquela embarcação, como único tripulante da mesma, desde a Venezuela até às ilhas Baleares, em Espanha≫, lê-se no acórdão. Mas será mesmo que veio sozinho, tal como sentenciou o juiz, ou haverá, durante a investigação que iniciamos, uma nova revelação? Antonino terá, afinal, vindo acompanhado? Iremos descobrir mais a frente, quando o próprio nos contar a história que durante todos estes anos guardou a sete chaves.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia. Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar a leitura e a discussão à volta dos livros.

Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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≪Ao largo dos Acores, o arguido perdeu a parte subaquática do leme, pelo que andou a deriva no mar durante vários dias, até alcançar o porto de Rabo de Peixe nesta ilha. A fim de proceder a reparação da embarcação e aportar em segurança, sem problemas com as autoridades locais, o arguido escondeu o produto estupefaciente que transportava em diversos locais da orla costeira desta ilha. Porém, devido a ação do mar, este produto começou a dar à costa em diferentes locais≫, refere o acórdão.

Tal como podemos ler no documento que determinou a prisão de Antonino, a droga por si transportada – até hoje, a quantidade continua a ser um dos mistérios deste caso – começou a dar a costa, sem critério. Tendo em conta que escondeu os fardos, como na ilha os denominavam, em várias zonas da orla costeira, encadernados com plástico e borracha em centenas de pacotes do tamanho de tijolos de construção, estes começaram a dar a costa em diferentes zonas, sendo descobertos maioritariamente por pescadores e populares. Quando, rapidamente, se soube, pela ilha, o que se estava a passar na costa, muitas pessoas começaram a dedicar‑se, integralmente, a procura da ≪droga do italiano≫ – expressão comum em São Miguel – e aqueles que já tinham encontrado a sua parte aperceberam‑se do real valor do que tinham na sua posse. Maré de sorte ou de azar? Para o italiano foi de azar. Ele nunca pensou que uma viagem que era para ser de aventura e de fácil acesso a grandes quantias de dinheiro, contou‑nos, lhe mudasse a vida para sempre.

A cocaína era tão pura – durante os próximos capítulos perceberemos o grau de pureza e chegaremos, finalmente, a um número aproximado de quilos transportados por esta embarcação – que os locais começaram a cortar, duplicando e, por vezes, triplicando os quilos que encontravam. Até então, o ≪povo≫ desta ilha não estava habituado a um produto tão puro. Mesmo com os cortes que faziam, a droga continuava muito mais pura do que era habitual.

Além disso, a época, a cocaína não vivia ainda um cenário de grande consumo em São Miguel – contrariamente a heroína, ao haxixe e a marijuana, que já se encontravam com facilidade. Com a droga ao ≪desbarato≫ pela ilha e episódios de pessoas a vender a cocaína ao copo (o que aconteceu, em algumas freguesias, numa fase inicial), houve uma drástica diminuição do preço deste produto, o que possibilitava que mais pessoas a ele tivessem acesso. Por um lado, em muitas situações, bastava ir buscá‑lo à praia, enquanto os mais preguiçosos podiam satisfazer a sua vontade através de um dealer – que, durante esta época, se confundiam com a própria comunidade e não cobravam um preço elevado.

Livro: "Rabo de Peixe - Toda a Verdade"

Autor: Rúben Pacheco Correia

Editora: Contraponto

Data de Lançamento: 8 de maio de 2025

Preço: € 16,60

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Um verdadeiro descalabro nesta pacata ilha atlântica. Morreram jovens – de overdose – e, por culpa desta situação, viciou‑se uma geração que, apesar de viva, se tornou refém desta e de outras drogas que, infelizmente, ainda vão ganhando novos adeptos nos Açores.

O impacto social e económico deste episódio obscuro foi profundo e, até hoje, continua por estudar. Famílias destrocadas, jovens perdidos e um ambiente de certa insegurança e desespero que se instalou um pouco por toda a ilha. Também houve muita gente que encontrou a droga e a despejou no mar, com receio de ter problemas com a Polícia ou com meia dúzia de pessoas que
começavam a organizar‑se na ilha – vamos conhecer algumas histórias mais a frente – para açambarcar o máximo possível de produto.

Houve quem morresse precisamente por estes ≪gangues≫ pensarem que tinham encontrado mais quilos do que os que realmente encontraram.

Como bem diz o nosso povo, uma desgraça nunca vem só.