«É uma menina, mãe.» E ela respondeu na lata, sem pensar, apenas esta frase: «Você nunca mais vai ficar sozinha.» Minha mãe acha que mulher que tem filha mulher nunca mais se sente só. Fiquei aliviada e horrorizada. E depois só horrorizada.
Como alguém vai escrever um roteiro premiado de cinema se não ficar sozinha? Como alguém vai deitar no chão do banheiro com as pernas apoiadas na borda da banheira até passar a angústia se não ficar sozinha? Tive que sair do Belenzinho, tive que me distanciar das minhas tias e da minha mãe. Tive que comer pastel de feira apesar de o meu avô dizer que eu morreria. Tive que dormir em Pinheiros e no Sumarezinho e até no Itaim mesmo achando que era demais pra mim acordar em outro país. Para não enlouquecer com o monitoramento persecutório e doentio da minha família, tive que romper até com a parcela saudável da segurança, porque é claro que existia amor. Era isso ou eu passaria a vida naquele portão contando vira‑latas magrelos sem dono. Somando senhoras mancas arredondadas e envelhecidas antes dos cinquenta anos. Cumprimentando famílias unidas pelo não pertencimento a tudo o que me interessa. Casas sem livros, sem filmes. A primeira vez que me senti muito sozinha foi no jardim 2, quando minha mãe decidiu que a merenda servida na escola era suja e me fez levar meu próprio lanchinho. A diretora da escola disse que as outras crianças não poderiam me ver comendo um lanche diferente e eu passei o recreio sozinha, meia hora antes de todo mundo. Das salas, com portas entreabertas, eu via várias crianças, de quatro, cinco, seis anos, me olhando curiosas, algumas me apontavam e riam. Engraçado pensar o quanto isso era assustador na época. Depois desse dia eu comecei a ter um sonho recorrente e tão terrível quanto excitante. Eu tinha que fazer exame de urina, mas as crianças e os professores da escola passavam tanto desinfetante na minha vagina que era impossível urinar sem sentir arder então eu me segurava e quanto mais eu me segurava mais juntavam crianças e professores apostando se eu conseguiria ou não fazer um xixi bem limpo. Segurar o xixi me deixava bastante excitada.
A primeira vez que eu de fato me senti muito sozinha foi quando minha mãe me «mandou chorar». Ela disse «olha, eu te levo pra praia todas as férias, mas esse ano não tem dinheiro, peça pro seu pai, e chore porque é preciso chorar para tirar alguma coisa daquele filho da puta». No dia seguinte fomos andar de bicicleta, eu e meu pai, e eu não estava triste nem a fim de entrar nesse assunto. Nem queria tanto assim ir para a praia. Meu pai sempre me encurralou pra saber se minha mãe, «aquela que quando você for adulta vai ver com outros olhos e entender por que não conseguiu ficar casada», estava namorando. E ela sempre me perturbou para saber se meu pai, «aquele que destruiu a minha vida sendo um machista, ignorante, limitado», tinha dito algo a respeito de pagar alguma coisa que ele deveria ter pagado. Eles se mandavam recadinhos por meu intermédio. E não poupavam xingamentos me usando como página em branco pra todo aquele rancor precisando ser documentado. Onde estava a psicanálise na década de oitenta, na zona leste de São Paulo? Hoje em dia a criança solta uma pequena bolha de leite um pouco menos redonda e os pais ligam para o psicanalista winnicottiano homeopático com pós em Lacan especializado em crianças com o distúrbio em soltar pequenas bolhas de leite não muito arredondadas. Eu chegava a emagrecer três quilos em uma semana e ficava inteira manchada de bolotas vermelhas e meus pais não entendiam a palavra «psicológico» e lá ia eu tomar Benflogin, o remédio que me deixava muito drogada vendo riscos neon saindo dos meus dedos. Minha geração é sobrevivente dos anos 80.
Mas a obrigação de chorar para garantir férias na praia me deu uma solidão danada. Não a parte de atuar em si, mas a parte que meu pai falou «que choro falso é esse? Sua mãe te mandou chorar?». Naquele minuto eu não tinha ninguém no mundo.
Nada é mais solitário do que a foto da minha mãe na piscina de um hotel em Natal, no Rio Grande do Norte. Eu estava em Secretário, no interior do Rio de Janeiro, com um namorado que nem valia grandes coisas. Mas eu tinha mais de vinte anos, gostava dele, e obviamente preferi passar o feriado com ele. Minha mãe fez o mais triste e solitário álbum de fotos que alguém já fez. Ela desacompanhada no café da manhã com variedade de pães e frutas. Ela absolutamente sozinha (de calça comprida) fazendo pose com a praia ao fundo e a piscina à frente. Ela invariavelmente abandonada e de costas, vendo o mar, com a perna direita apoiada no murinho.
Ela tendo que pedir pra mocinha da limpeza, ou para o garçom com menos cara de ocupado: «Tira uma foto?» Ela pensando o tempo todo «se minha filha estivesse aqui, ela deveria estar, o certo era ela estar aqui, o que eu fiz de errado pra essa menina não estar aqui?».
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