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Fus arranca pelo campo e faz um «carrinho». Adora fazer isso e fá-lo bem, sem derrubar o adversário, mas é suficientemente manhoso para lhe dar um toque. Às vezes, o outro jovem insurge-se, mas Fus é grande e tem ar de mau quando joga. Chama-se Fus desde os três anos. Fus, diminutivo de Fußball(1). À luxemburguesa. Já ninguém o trata de outra maneira. É Fus para os professores, para os amigos e para mim, que sou seu pai. Vejo-o jogar todos os domingos, faça chuva ou faça sol. Debruçado sobre o corrimão, afastado dos outros. O campo fica longe de tudo, rodeado de choupos, com o parque de estacionamento num nível inferior. A pequena cabana que é usada para os aperitivos e para a entrega do material foi pintada de novo no ano passado. Há várias épocas que o relvado se mantém bonito, sem que se saiba porquê. E o ar é sempre fresco, mesmo em pleno verão. Não há barulho, apenas a autoestrada ao longe, um discreto fluir que nos liga ao mundo. É um belo local. Quase como um campo de ricos. É preciso subir mais quinze quilómetros e chegar ao Luxemburgo para encontrar um campo mais bem cuidado. Eu tenho o meu lugar. Longe dos bancos, longe do pequeno grupo de adeptos. Longe também da claque da equipa visitante. Com vista direta para a única publicidade do campo, o restaurante de kebab que faz tudo: piza, tacos e a sanduíche americana, com bife e batatas fritas em meia baguete; ou a Stein, com salsicha branca e batatas fritas, sempre em meia baguete. Alguns, como Mohammed, vêm apertar-me a mão: «Se Alá quiser, vamos dar cabo deles. O Fus está em forma, hoje?», e depois vão-se embora. Eu nunca me enervo, não berro como os outros, espero simplesmente que o jogo termine.
É assim que passo a manhã de domingo. Às sete horas, levanto-me, faço o café para Fus, chamo-o e ele acorda num ápice, sem nunca protestar, mesmo quando se deitou tarde na véspera. Não gostaria de ter de insistir, de ser obrigado a abaná-lo, mas isso nunca aconteceu. Digo através da porta: «Fus, levanta-te, são horas!», e ele aparece na cozinha poucos minutos depois. Não falamos. Quando o fazemos, é sobre o jogo do Metz, na véspera. Nós moramos no departamento administrativo 54, mas apoiamos o Metz na região e não o Nancy. É assim. Ficamos de olho no nosso carro quando o estacionamos ao pé do estádio. Há idiotas em todo o lado, cretinos que ficam todos excitados se virem um «54» e que são capazes de riscar o automóvel. Quando houve jogo na véspera, leio-lhe os comentários do jornalista. Temos os nossos jogadores preferidos, aqueles que são intocáveis e que acabarão por ir-se embora, pois o clube não sabe conservá-los. Deixamos que nos venham tirá-los assim que dão um bocadinho nas vistas. Restam-nos os outros, os medíocres, aqueles que mando dar uma volta vinte vezes por jogo, pois estou farto dos seus disparates. Bem vistas as coisas, desde que suem a camisola podem ficar, mesmo com pés quadrados. Sabemos o que valemos e sabemos contentar-nos com isso.
Quando vejo Fus jogar, digo a mim mesmo que não há outra vida, não há vida além desta. Há aquele momento com os gritos das pessoas, o ruído dos pitões que se afundam e soltam da relva, o companheiro de equipa que protesta por não repararem a tempo na posição dele ou não receber o passe em profundidade, aquela raiva gritada a plenos pulmões quando eles marcam ou sofrem o primeiro golo. Um momento em que não tenho nada para fazer, um dos únicos instantes que me restam com Fus. Um momento de que não abdicaria por nada deste mundo, um momento que aguardo ao longe durante a semana. Um momento que não me traz nada mais do que estar ali, que não resolve nada, nada de nada. Uma vez terminado o jogo, Fus não volta logo para casa. Não espero por ele; chega quando já quase acabei de jantar com o irmão.
— Gordo, lavas-me as camisolas?
— E porque haveria de fazê-lo?
— Porque és o meu irmão mais novo. Não te preocupes, eu depois compenso-te.
Pega no seu prato, serve-se e vai instalar-se frente à televisão, para ver os programas da tarde.
Às cinco horas, quando tenho coragem, vou à secção do partido. Há cada vez menos gente desde que deixaram de servir o aperitivo. Aquilo tornava-se uma grande confusão, o pessoal já não trabalhava e ficava simplesmente à espera de que tirássemos as garrafas para fora. Somos quatro, cinco, raramente mais. Nem sempre os mesmos. Já não é preciso abrir as mesas, como fazíamos vinte anos antes. A maior parte deles não trabalham à segunda-feira. Reformados, e a Lucienne, que vem como vinha no tempo do marido, com um bolo que corta amavelmente. Ninguém fala enquanto ela não corta oito belas fatias, todas iguais. Um ou dois tipos desempregados desde a Antiguidade. E os temas são sempre os mesmos: a escola da aldeia que não vai subsistir se continuar a perder uma turma de três em três anos; as lojas que fecham umas atrás das outras; as eleições. Há anos que não ganhamos uma. Nenhum de nós votou em Macron, e na outra também não. Nesse domingo, ficámos todos em casa. Apesar de tudo, um bocadinho aliviados por ela não ter levado a melhor. Mesmo assim, pergunto-me se algumas pessoas, lá no fundo, não teriam preferido que a coisa estoirasse.
Fazemos panfletos. Não creio que isso sirva de muito, mas há um jovem que tem jeito para escrever e sabe exprimir numa página a merda que inunda as nossas minas e as nossas vidas. Jérémy. E não o Jérémy. Simplesmente Jérémy, porque ele não é de cá e está sempre a censurar a nossa mania de pôr «o» ou «a» em todo o lado. Os pais dele chegaram há quinze anos, quando a fábrica de cárteres montou a sua nova linha de produção. Quarenta contratações de uma só vez, algo inesperado. Se não inauguraram umas vinte vezes essa linha, não foi nada. Toda a região, o governador civil, o deputado e todo o tipo de escolas vieram fazer-lhe salamaleques. Até o pároco passou por lá várias vezes para a benzer à socapa. A jornalista do Répu não parava de andar de trás para diante, para relatar isso tudo diante dessa linha de produção, símbolo de que podíamos acreditar no que dizia: «A Lorena é industrial e assim continuará.» Uma bonita loura que fazia bem o seu trabalho com as palavras de esperança que caem bem. Também era ela que tirava as fotografias, por isso variava as poses, de forma que a página Villerupt — Audun-le-Tiche não tivesse sempre a mesma cara. A linha de produção levou muito tempo a arrancar, talvez demasiado. No dia em que acabaram finalmente de formar os supervisores e operadores, no dia em que finalmente descobriram a forma mais ou menos correta de tratar o maldito solvente, uma coisa de nada, uns quantos centilitros por dia que se escapavam e impediam a certificação, estávamos de novo em plena crise. Desta feita, era a crise dos bancos, a crise que ia acabar em dois tempos com a linha e os seus resíduos. A fábrica bem podia expelir matérias radioativas, penso que não minto se disser que a aldeia não queria saber disso para nada, que teríamos preferido beber água da sanita a atrasar ainda mais o lançamento dessa linha. Não tinha havido debate na secção, ainda não éramos muito ecologistas na altura. Aliás, continuamos a não o ser. Jérémy fazia parte da turma da primavera, como lhe chamaram na época. Uma vintena de garotos que haviam chegado em março-abril juntamente com os pais acabados de contratar e que tinham ditado a reabertura de uma turma suplementar do ensino básico e outra do preparatório a partir do ano letivo seguinte.
Jérémy tem vinte e três anos, menos um do que Fus. De início, tinham sido amigos. Fus gostava muito dele. Levou-o lá a casa várias vezes, embora não fizesse isso com muita gente. Penso que tinha alguma vergonha da mãe, que mal conseguia sair da cama, e talvez de mim também. Quando Jérémy lá ia, era um grande dia para a minha mulher. Se tivesse forças para isso, levantava-se e fazia-lhes gofres ou fritos com açúcar. Ela reclamava um bocadinho com Fus, dizendo que ele devia ter prevenido, pois assim teria feito a massa na véspera e ficaria muito melhor, mas acabava por lhes fazer os fritos, estaladiços e cobertos de açúcar. Comíamo-los ao jantar e ainda sobrava uma tigela cheia para o dia seguinte. Jérémy e Fus deram-se bem até ao segundo ciclo. Depois, Fus começou a não trabalhar tão bem. A marcar passo. A não ir às aulas. Encontrava todo o tipo de desculpas. O hospital. A mãe. A doença da mãe. As raras melhoras que era preciso aproveitar. Os últimos dias da mãe. O luto pela mãe. Três anos de merda, do sexto ao oitavo ano, em que me viu completamente impotente, incapaz de continuar a acreditar, tendo perdido a fé numa remissão que não aconteceria. Nem sequer era capaz de deixar de fumar. Nem de me sentar ao lado dele, quando o via desfeito em lágrimas na cama; nem de lhe mentir, de lhe dizer que ia correr tudo bem com a mamã, que ela ia recuperar. Era apenas capaz de lhes fazer o comer, a ele e ao irmão. E de me censurar por ter tido os filhos demasiado tarde. Já tínhamos os dois trinta e quatro anos quando o nosso Gillou nasceu.
No nono ano, Fus não conseguia acompanhar o ritmo. Afastou-se dos últimos amigos dos bons tempos. Dos tempos em que os professores do primeiro ciclo gostavam muito dele. Os do segundo e terceiro ciclos tiveram muito menos paciência. Comportaram-se como se nada se passasse. Como se o miúdo não passasse os domingos no Hospital Bon-Secours. Ao princípio, levava os trabalhos de casa para o hospital, mas depois passou a fazer como eu: a olhar para a cama e para a mãe ali deitada, mas sobretudo para a cama, para a forma como os lençóis estavam dispostos. Os pequenos defeitos na sua trama, à força de fervê-los e passá-los por lixívia. Fazia isto durante horas. Era duro olhar para a mamã, ela tornara-se feia. Quarenta e quatro anos, mas dir-se-ia que tinha mais vinte ou trinta. Às vezes, as enfermeiras aplicavam-lhe um bocadinho de maquilhagem, mas não conseguiam esconder o amarelo ocre que o seu rosto meio entorpecido ia ganhando semana após semana e, sobretudo, os braços que saíam do lençol, já em fim de vida. Tal como eu, deve ter desejado por vezes não ter de ir ao Bon-Secours e passar um domingo normal ou, pelo contrário, viver uma situação verdadeiramente excecional que nos impedisse de fazer a viagem. Porém, isso nunca aconteceu, nunca tivemos nada de melhor ou de mais urgente para fazer, por isso íamos ver a mamã ao hospital. Só havia o nosso Gillou, que às vezes lá conseguíamos deixar com os vizinhos durante a tarde. Ao bater das oito horas, depois de servido o jantar, saíamos aliviados por lá ter ido. Às vezes, no verão, contentes por termos aberto a janela; por termos aproveitado uma das horas em que ela estava bem consciente e termos escutado os barulhos do pátio com ela. Mentíamos-lhe, dizíamos-lhe que estava com melhor cara e que o professor, com quem nos cruzáramos no corredor, tinha um ar satisfeito.
De qualquer forma, devia ter puxado por ele. Vi-o descarrilar aos poucos. As suas notas não eram tão boas, mas que importância tinha isso? Guardei a pouca energia que tinha para continuar a trabalhar, para continuar a fazer boa figura perante os colegas e o chefe, para conservar a porcaria do emprego. Ter cuidado, estoirado como estava, às vezes com um grão na asa, para não fazer asneira. Ter cuidado com os curto-circuitos. Ter cuidado com as quedas. Uma catenária é muito alta. Voltar inteiro. Porque era preciso continuar a alimentar os meus dois filhotes e aguentar-me sem beber até eles se deitarem. E depois, deixar-me levar. Nem sempre, mas com alguma frequência. Foi assim que esses três anos se passaram. Bon-Secours, entreposto da SNCF(2) de Longwy, às vezes o de Montigny, a linha Aubange-Mont-Saint-Martin, a estação de triagem de Woippy, o pavilhão, a secção e novamente Bon-Secours. E depois, quando pernoitava em Sarreguemines e em Forbach, organizar-me com os vizinhos para ficarem de olho em Gillou e Fus. Encarregado de tratar da comida, Fus só precisava de aquecer as caixas já preparadas: «Tem cuidado, não te esqueças de fechar o gás, não vás deitar fogo à casa. Não se deitem muito tarde, se precisares de alguma coisa vai a casa do Jacky, eles sabem que vocês estão sozinhos esta noite.» Fus, com responsabilidades de um homem desde os treze anos. Um bom miúdo, a casa estava sempre num brinquinho quando eu voltava no dia seguinte. Não foi uma única vez a casa do Jacky. Nem mesmo quando o granizo rebentou com a claraboia da cozinha, com pedras do tamanho de um punho. Nem mesmo quando Gillou não conseguia dormir, com medo, e chamava pela mãe. Fus desenvencilhara-se sempre. Fazia o que era preciso. Falava com Gillou, acordava-o de manhã, preparava-lhe o pequeno-almoço. E ainda arranjava tempo para limpar o que sujava. Noutras circunstâncias, teria sido a criança-modelo, vinte vezes, cem vezes, mil vezes recompensada. Mas, com o que se passava, nunca me tinha passado pela cabeça dizer-lhe obrigado. Perguntava-lhe apenas: «Correu tudo bem? Não fizeram nenhum disparate? No domingo, vamos ao Bon-Secours.» A mamã não era assim, sabia como cuidar de Fus e Gillou. Ia a todas as reuniões da escola e insistia em que eu metesse um dia de férias para ir também. Éramos sempre os primeiros, na primeira fila, encurralados atrás das pequenas escrivaninhas das crianças. Atentos aos conselhos da professora. A mamã tomava notas que lia às crianças, à noite. Tinha inscrito Fus no latim porque só os melhores alunos faziam latim. Servia para compreender bem a gramática, tinha a ver com organização, como as matemáticas. Latim e alemão. Logo haveria tempo de fazerem inglês, no terceiro ciclo. Tinha grandes ambições para ambos. «Vão ser engenheiros na SNCF. São bons empregos. Médicos também, mas sobretudo engenheiros na SNCF.» Ao descobrirmos a doença, ela voltara a falar-me do futuro dos rapazes, mas isso foi no início. Eu não acreditava naquele cancro e parece-me que ela também não. Tinha-a deixado falar sem prestar atenção, mas depois ela afundara-se rapidamente no sofrimento e não voltara a vir à tona. Nas últimas semanas, ao saber que estava tudo perdido, não revisitara a sua vida e abstivera-se de dar conselhos. Contentara-se em olhar para nós durante o pouco tempo em que estava consciente. Observava-nos simplesmente, sem sorrir sequer. Não me obrigara a prometer nada. Havia-nos deixado. Tinha-se debatido durante três anos com o seu cancro, sem nunca dizer que ia conseguir vencê-lo. A mamã não era fanfarrona. Uma vez, tinha-lhe dito: «Vais fazer isso pelas crianças.» E ela replicara: «Já vou fazê-lo por mim.» No entanto, creio que ela enervava os médicos por não estar suficientemente motivada, por não se mostrar combativa, pelo menos. Esperavam que ela se revoltasse, que fizesse como as outras e dissesse que ia fazer a vida negra àquele cancro, que ia fazê-lo desaparecer. Mas ela não o dizia. Isso era coisa de filme, reservada aos outros, tal como as últimas recomendações. Era demasiado para ela. Não era a vida verdadeira, pelo menos a sua vida não era assim. Por isso, no seu funeral, não houve ninguém que me falasse da sua coragem.
E, no entanto, três anos de hospital, de quimioterapia, três anos de radioterapia. As pessoas tinham-me falado de mim, das crianças, do que íamos fazer agora, e quase não tinham falado dela. Dir-se-ia que a censuravam um pouco pela sua resignação, por ter dado uma imagem tão lastimável. O professor limitou-se a encolher os ombros quando lhe perguntei como tinham sido as últimas horas. «Como os dias anteriores, nem mais, nem menos. O senhor sabe que a sua esposa nunca se revoltou realmente contra a doença, e poucos se podem gabar disso. Não digo que isso tivesse mudado alguma coisa, na verdade não há como saber.» Chegada a hora do elogio fúnebre, até o pároco tivera dificuldade. Não nos conhecia bem. Não íamos à missa, mas a mamã queria uma coisa simbólica, pelo menos eu assim imaginava, apesar de nunca termos falado sobre isso. Lembro-me de pensar que a passagem pela igreja assinalaria a importância do momento. Não queria que ela partisse assim, tão depressa. E também era melhor para os miúdos, mais correto. À saída do cemitério, fora abordado por um jovem, filho de um dos tipos da secção. Pediu desculpa de ter chegado atrasado, mas o trânsito estava péssimo à saída da estrada nacional. Tinha-me oferecido um cigarro. Gillou já tinha voltado para casa com o Jacky. Fus não me largara durante toda a cerimónia, cheio de tristeza, siderado por aquele dia. Vendo que fumávamos cigarros uns atrás dos outros, acabou por se sentar no banco de pedra no alto do cemitério. Via os coveiros a trabalhar apressadamente no túmulo da mamã, para terminarem antes de cair a noite. Eu estava com o jovem, na ponta do terreno, onde ainda havia lugar para três filas completas, uma área verdejante sobranceira ao vale, um lugar lindo, pena ser tão próximo de todos aqueles mortos. Falámos de tudo um pouco. Sabia que os outros estavam à minha espera na pastelaria, para o café e brioches que encomendara na véspera. Mas eu sentia prazer em estar ali a fumar com aquele jovem, como se nada tivesse acontecido. Sentia-me aliviado por aquele dia ter chegado ao fim, satisfeito por não ter acontecido nada. De que tinha eu medo? O que poderia acontecer no dia de um funeral? Mesmo assim, sentia-me aliviado. Assaltado por pensamentos vazios, por perguntas tão inúteis quanto indispensáveis que iam cadenciar a minha vida de agora em diante. O que é que lhes ia dar de jantar? O que iriam fazer no domingo? Onde estavam arrumadas as coisas de inverno?
Notas:
1 Futebol, em português. (N. da T.)
2 Sigla de Société Nationale des Chemins de Fer Français. (N. da T.)
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