Em 1976, Jack Nicholson foi nomeado para os prémios da Academia na categoria de Melhor Actor. Já havia sido nomeado antes, mas nunca a sua vitória tinha parecido tão certa como naquele ano, nem nunca a comunidade canibal-americana estava tão desesperadamente precisada que ele vencesse.
Para eles, a 48.ª cerimónia dos Prémios da Academia representava mais do que só mais uma vistosa gala de Hollywood. A nação era bafejada com ventos de mudança social, mas sobre a comunidade canibal-americana soprava um vento gélido; os seus velhos costumes e tradições não rivalizavam minimamente com os ABBA, a Farrah e a cocaína. Os anos 60 e o início da década de 70 haviam dizimado a comunidade, perdendo números cada vez maiores dos mais jovens para o duplo flagelo da assimilação e do casamento interacial.
Por isso, na noite de 29 de Março de 1976, enquanto Hollywood se reunia para a cerimónia dos Óscares desse ano no Dorothy Chandler Pavilion, em Los Angeles, canibais-americanos de todo o país reuniam-se à frente dos televisores, esperançosos de que uma vitória de Nicholson, que era canibal, servisse de inspiração para o renascimento da comunidade; que ele pisasse aquele palco, olhasse para aquelas câmaras de televisão e agradecesse à comunidade canibal pelo apoio e amor demonstrados, libertando-os finalmente das trevas da vergonha e do secretismo que os perseguiam desde sempre.
Mudd andou todo o dia fora de si com ansiedade e excitação, a limpar e a limpar de novo aquilo que já tinha limpado. Ela desprezava a televisão, mas hoje, ao fim e ao cabo, fazia-se história – a história dos canibais – e ela tinha autorizado que Humphrey adquirisse um pequeno televisor a preto e branco especificamente para a ocasião.
Assim que a apresentação dos prémios começou, a tensão na sala de estar era de cortar à faca. Mudd batia nervosamente com o pé; Unclish, que uma vez havia ponderado interditar a visualização de televisão a toda a comunidade, mantinha-se de pé ao lado do sofá, a enrolar a barba, enquanto dizia «Sim, sim, hum, hum».
Art Carney, que não era canibal, foi recebido com uma ovação atroadora enquanto se encaminhava para o pódio para apresentar o prémio da Academia para o Melhor Actor.
– Este ano – anunciou –, os nomeados na categoria de Melhor Actor são… – Olhou para o cartão que tinha na mão. – Walter Matthau, em Uma Parelha de Chatos!
A multidão dentro do pavilhão aplaudiu, e na câmara surgiu o radiante Matthau sentado no meio do público. Alguns anos antes, Carney e Matthau haviam contracenado na produção original da Broadway de Neil Simon, Um Estranho Casal, e a sua história comum adocicara ainda mais a sua nomeação, tanto para os actores como para o público.
– Judeu – resmoneou Mudd.
– Jack Nicholson – prosseguiu Carney – em Voando sobre um Ninho de Cucos!
De novo, a multidão irrompeu em aplausos, e agora Mudd aplaudia também.
Nicholson, com os óculos escuros que o caracterizavam, ofereceu um sorriso rasgado. Anjelica Huston, sentada a seu lado, batia palmas e sorria com orgulho, ao passo que Matthau, na janelinha que aparecia no canto superior do ecrã, já não se apresentava tão radiante. Mudd achou que franzia o sobrolho.
– Olhem só para aquele sacana gordo – disse Mudd.
– Quem? – perguntou Humphrey.
– O Matthau. Espero que arda no Inferno.
– Eu cá gosto dele. É um bom actor.
– Ficam bem juntos. Oh lá se ficam!
– Quem?
– Quem?? – perguntou Mudd com repulsa. – O Neil Simon, judeu, dá trabalho ao Walter Matthau, judeu, e agora Art Carney, judeu, vai dar-lhe o Óscar.
– O Art Carney não é judeu – disse Humphrey. – É católico.
Depois de enumerar os restantes nomeados, Art Carney segurou no envelope e abriu-o, rasgando-o. Mudd agarrou a mão de Humphrey, apertando-a com tanta força que ele pensou que lhe ia partir os ossos. – E o vencedor é…
O silêncio abateu-se sobre o público no pavilhão.
Mudd susteve a respiração.
Carney olhou para o cartão.
– Jack Nicholson! – anunciou. – Em Voando sobre um Ninho de Cucos! Mudd pôs-se de pé num salto, gritando de alegria e batendo com os pés, as mãos erguidas em sinal de triunfo.
Unclish também se regozijou, batendo palmas e dando palmadas nas costas de Humphrey.
– Ele conseguiu! O nosso rapaz conseguiu mesmo!
Nicholson beijou Anjelica Huston e dirigiu-se ao palco.
– Ela é canibal? – perguntou Mudd. – Acho que é. Huston… Podia ser um nome canibal, não acham?
– Como é que queres que eu saiba isso? – indagou Humphrey. – Olha para aquele maxilar! É um maxilar canibal, não há dúvida!
Nicholson saltou para o palco, fazendo uma breve dança a imitar Ed Norton em homenagem a Art Carney. O público ficou extasiado. – Aqui vamos nós – disse Mudd, a tremer de excitação. – Aqui vamos nós.
Carney entregou o troféu reluzente a Nicholson, e os dois homens deram um abraço.
– Alguma vez imaginaram que veriam isto? – perguntou Mudd. – Alguma vez pensaram que chegaria o dia em que um dos nossos estaria naquele palco a receber um Óscar?
Jack Nicholson ocupou o seu lugar no pódio e varreu o auditório com o olhar.
– Bem – disse ele com o seu sorriso matreiro –, acho que isto prova que existem tantos doidos na Academia como em qualquer outro sítio.
O público aplaudiu, e Mudd juntou-se-lhes, rindo à gargalhada e dando palmadinhas no joelho.
– Ele tem graça. Não sabia que tinha tanta graça!
– Mas visto que me deram a oportunidade – continuou Nicholson –, estou realmente feliz por poder agradecer a Saul e a Michael… Nicholson fez uma pausa.
Mudd cravou a mão na coxa de Humphrey, apertando-a.
Ela não sabia quem eram Saul ou Michael, mas Nicholson parecia estar a reunir forças, a ganhar coragem, a procurar palavras, a preparar-se para fazer uma revelação ao mundo sobre si e o seu povo.
– E a Louise – continuou Nicholson com uma certa indecisão. A mão de Mudd cravou ainda mais fundo na coxa de Humphrey. – Mudd… – disse Humphrey com uma careta, sentindo os dedos dela a esmagarem-lhe os ossos.
– E a Brad – continuou Nicholson – e a Lawrence e a Bo. E a toda a malta da produtora, a toda a brigada dos tontinhos…
Mudd inclinou-se para a frente e procurou o olhar de Nicholson, à espera que declarasse quem e o que era.
E à minha gente – como ela queria que ele dissesse. – Ao grande povo canibal. Que sofreu tormentas e humilhação e tem andado escondido nas trevas. A todos vós, ordeno que vos ergueis! Erguei-vos comigo e revelai a vossa proveniência! Pois hoje, blá-blá-blá, e amanhã, iremos tomar conta do mundo! Mas esse momento nunca aconteceu.
Nicholson sorriu, fez uma piada qualquer sobre o seu agente, agradeceu ao público e abandonou o palco.
Unclish abanou a cabeça, revoltado.
– Devia ter banido esta caixa maldita quando pude – disse enquanto punha a cartola na cabeça, e abandonou a sala todo enfatuado, batendo com a porta ao sair.
– Aquele filho da mãe! – gritou Mudd.
– Mudd – rogou Humphrey. – Mudd, acalma-te.
– Nem uma palavra! – gritou Mudd. – Nem uma palavra sobre a sua gente, o seu legado, a sua história! É só vergonha e mais vergonha e mais vergonha!
– O que é que esperavas que ele fizesse, Mudd?
– Esperava que tivesse carácter!
– Esperavas que o Jack Nicholson abrisse o jogo em plena cerimónia da Academia, diante do mundo inteiro, e dissesse a toda a gente que ele é… que ele é…
– Nem tu consegues dizê-lo! – vociferou.
– Isto não é sobre mim, Mudd!
– É sobre o nosso povo! – bradou ela, saindo intempestivamente da sala. Sempre que Mudd saía intempestivamente de um sítio, parecia que eram necessários alguns instantes para o ar regressar à divisão. Quando isso finalmente aconteceu, Humphrey levantou-se e caminhou na direcção do televisor.
– Ora… – disse de si para si enquanto desligava o aparelho. – E quem é que nunca sentiu alguma vergonha?
***
Oitavo folheava a cópia de O Guia de Terceiro, com um olhar de desconcerto total.
– Mas que diabo é isto? – perguntou.
Tinham concordado consumir Mudd, mas já tinha passado mais de uma hora desde a sua morte. Todo o óleo do corpo lhe deves drenar, tinha-lhes ensinado Unclish, para a mamã não se estragar, pelo que sabiam que tinham de ser rápidos.
Oitavo tinha ido buscar O Guia à maleta, mas, à medida que o folheava, era perceptível, pelo seu olhar, que alguma coisa estava tremendamente errada. – O que é? – perguntou Sétimo.
– O que é? – repetiu Oitavo. – É pornografia, é o que é.
– O quê?
– Pornografia.
Oitavo arremessou O Guia para Sétimo, que o abriu na página que mostrava uma mulher nua segurando os enormes seios com as mãos em concha. Usava apenas um chapéu branco de cozinheiro. Por cima, em grandes letras cor-de-rosa, podia ler-se: «Tens fome?»
Sétimo consultou a capa. Ainda era a original – o caçador camuflado, o veado coberto de sangue –, mas as páginas do miolo tinham sido trocadas por páginas de uma revista pornográfica (pelo ar da coisa, devia ser a Juggs). Todas as páginas apresentavam mulheres com seios do tamanho de um jipe.
«Eis o bife», lia-se no cabeçalho de uma das páginas.
«Hora do seu Whopper», lia-se na seguinte.
Sétimo olhou para Terceiro, que cobria a cara com vergonha. – São sete, é hora do esparguete! – disse ele.
– Onde está o resto? – perguntou Oitavo a Terceiro. – Onde está o resto?
– Não grites com ele! – repreendeu Zero. – Ele não sabia. – A nossa mãe está a apodrecer lá em cima – disse Oitavo. – Onde está o resto?
Terceiro começou a bater na própria cabeça.
– Não sejas estúpido – censurava-se ele. – Não sejas estúpido.
Sétimo agarrou-lhe nos braços, tentando fazê-lo parar.
– Está tudo bem, está tudo bem. Não fizeste nada de mal, parceiro; todos fazemos coisas assim.
Terceiro escondeu o rosto com as mãos e balbuciou.
– Fazemos?
– Claro que sim – assegurou Sétimo. – Mas agora preciso que penses, Terceiro; preciso que penses com muita força. Onde puseste o resto? O Guia, Terceiro, onde é que o puseste?
Terceiro fechou os olhos com força e susteve a respiração. Por fim, disse: – Ups.
– Ups?
– Atirei-o fora.
– Atiraste-o fora? – perguntou Sétimo.
– Seu idiota – bradou Oitavo.
– Ei! – exclamou Zero.
– Todo o óleo do corpo lhe deves drenar, para a mamã não se estragar – disse Segundo. – Todo o óleo do corpo lhe deves drenar, para a mamã não se estragar!
– Seu idiota! – bradou novamente Oitavo.
– Ele não sabia! – disse Zero.
Entraram todos em pânico. Os Seltzer que amavam Mudd afligiram-se com a possibilidade de ela não viver para sempre; os que amavam o seu povo afligiram-se com a possibilidade de estarem prestes a quebrar a corrente; e os que só queriam o dinheiro de Mudd temiam nunca o receber.
– Oh, que se lixe, vamos lá a isso! – disse Primeiro.
– Vamos? – perguntou Oitavo. – E como?
– Com o Punhal, cara de poia – disse Primeiro. – O Punhal da Redenção. Pegamos nele, subimos lá acima e, vocês sabem, drenamo-la. – Vocês sabem, drenamo-la? – perguntou Quinto. – Não, eu não sei. Drenamo-la como?
– Como é que achas? – ripostou Primeiro, e fez o gesto de um dedo a trespassar a garganta.
– Sabes a quantidade de sangue que há numa mulher daquele tamanho? – perguntou Oitavo.
– Não – disse Primeiro. – Tu sabes?
– Litros – disse Nono.
– Deitamo-lo pia abaixo – disse Quarto.
– E como sugeres que o transportemos até à pia? – perguntou Quinto. – Com uma mangueira – sugeriu Décima Primeira.
– Ela não é um barril de cerveja – disse Décimo.
– Todo o óleo do corpo lhe deves drenar, para a mamã não se estragar – disse Segundo. – Todo o óleo do corpo lhe deves drenar, para a mamã não se estragar…
– Certo! – gritou Sétimo. – Acalmem-se todos!
Atirou O Guia/Juggs para cima da mesa de centro.
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