Em 1976, Jack Nicholson foi nomeado para os prémios da Academia na categoria de Melhor Actor. Já havia sido nomeado antes, mas nunca a sua vitória tinha parecido tão certa como naquele ano, nem nunca a comunidade canibal-americana estava tão desesperadamente precisada que ele vencesse. 

Para eles, a 48.ª cerimónia dos Prémios da Academia representava mais do que só mais uma vistosa gala de Hollywood. A nação era bafejada com ventos de mudança social, mas sobre a comunidade canibal-americana soprava um vento gélido; os seus velhos costumes e tradições não rivalizavam minimamente com os ABBA, a Farrah e a cocaína. Os anos 60 e o início da década de 70 haviam dizimado a comunidade, perdendo números cada vez maiores dos mais jovens para o duplo flagelo da assimilação e do casamento interacial. 

Por isso, na noite de 29 de Março de 1976, enquanto Hollywood se reunia para a cerimónia dos Óscares desse ano no Dorothy Chandler Pavilion, em Los Angeles, canibais-americanos de todo o país reuniam-se à frente dos televisores, esperançosos de que uma vitória de Nicholson, que era canibal, servisse de inspiração para o renascimento da comunidade; que ele pisasse aquele palco, olhasse para aquelas câmaras de televisão e agradecesse à comunidade canibal pelo apoio e amor demonstrados, libertando-os finalmente das trevas da vergonha e do secretismo que os perseguiam desde sempre. 

"É Desta Que Leio Isto"

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Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Mudd andou todo o dia fora de si com ansiedade e excitação, a limpar e a limpar de novo aquilo que já tinha limpado. Ela desprezava a televisão, mas hoje, ao fim e ao cabo, fazia-se história – a história dos canibais – e ela tinha autorizado que Humphrey adquirisse um pequeno televisor a preto e branco especificamente para a ocasião. 

Assim que a apresentação dos prémios começou, a tensão na sala de estar era de cortar à faca. Mudd batia nervosamente com o pé; Unclish, que uma vez havia ponderado interditar a visualização de televisão a toda a comunidade, mantinha-se de pé ao lado do sofá, a enrolar a barba, enquanto dizia «Sim, sim, hum, hum». 

Art Carney, que não era canibal, foi recebido com uma ovação atroadora enquanto se encaminhava para o pódio para apresentar o prémio da Academia para o Melhor Actor. 

– Este ano – anunciou –, os nomeados na categoria de Melhor Actor são… – Olhou para o cartão que tinha na mão. – Walter Matthau, em Uma Parelha de Chatos!

A multidão dentro do pavilhão aplaudiu, e na câmara surgiu o radiante Matthau sentado no meio do público. Alguns anos antes, Carney e Matthau haviam contracenado na produção original da Broadway de Neil Simon, Um Estranho Casal, e a sua história comum adocicara ainda mais a sua nomeação, tanto para os actores como para o público. 

– Judeu – resmoneou Mudd. 

– Jack Nicholson – prosseguiu Carney – em Voando sobre um Ninho de Cucos! 

De novo, a multidão irrompeu em aplausos, e agora Mudd aplaudia também. 

Nicholson, com os óculos escuros que o caracterizavam, ofereceu um sorriso rasgado. Anjelica Huston, sentada a seu lado, batia palmas e sorria com orgulho, ao passo que Matthau, na janelinha que aparecia no canto superior do ecrã, já não se apresentava tão radiante. Mudd achou que franzia o sobrolho. 

– Olhem só para aquele sacana gordo – disse Mudd. 

– Quem? – perguntou Humphrey. 

– O Matthau. Espero que arda no Inferno. 

– Eu cá gosto dele. É um bom actor. 

– Ficam bem juntos. Oh lá se ficam! 

– Quem? 

– Quem?? – perguntou Mudd com repulsa. – O Neil Simon, judeu, dá trabalho ao Walter Matthau, judeu, e agora Art Carney, judeu, vai dar-lhe o Óscar. 

– O Art Carney não é judeu – disse Humphrey. – É católico.

Depois de enumerar os restantes nomeados, Art Carney segurou no envelope e abriu-o, rasgando-o. Mudd agarrou a mão de Humphrey, apertando-a com tanta força que ele pensou que lhe ia partir os ossos. – E o vencedor é… 

O silêncio abateu-se sobre o público no pavilhão. 

Mudd susteve a respiração. 

Carney olhou para o cartão. 

– Jack Nicholson! – anunciou. – Em Voando sobre um Ninho de Cucos! Mudd pôs-se de pé num salto, gritando de alegria e batendo com os pés, as mãos erguidas em sinal de triunfo. 

Unclish também se regozijou, batendo palmas e dando palmadas nas costas de Humphrey. 

– Ele conseguiu! O nosso rapaz conseguiu mesmo!

Nicholson beijou Anjelica Huston e dirigiu-se ao palco. 

– Ela é canibal? – perguntou Mudd. – Acho que é. Huston… Podia ser um nome canibal, não acham? 

– Como é que queres que eu saiba isso? – indagou Humphrey. – Olha para aquele maxilar! É um maxilar canibal, não há dúvida!

Nicholson saltou para o palco, fazendo uma breve dança a imitar Ed Norton em homenagem a Art Carney. O público ficou extasiado. – Aqui vamos nós – disse Mudd, a tremer de excitação. – Aqui vamos nós. 

Carney entregou o troféu reluzente a Nicholson, e os dois homens deram um abraço. 

– Alguma vez imaginaram que veriam isto? – perguntou Mudd. – Alguma vez pensaram que chegaria o dia em que um dos nossos estaria naquele palco a receber um Óscar? 

Jack Nicholson ocupou o seu lugar no pódio e varreu o auditório com o olhar. 

– Bem – disse ele com o seu sorriso matreiro –, acho que isto prova que existem tantos doidos na Academia como em qualquer outro sítio.

O público aplaudiu, e Mudd juntou-se-lhes, rindo à gargalhada e dando palmadinhas no joelho. 

– Ele tem graça. Não sabia que tinha tanta graça! 

– Mas visto que me deram a oportunidade – continuou Nicholson –, estou realmente feliz por poder agradecer a Saul e a Michael… Nicholson fez uma pausa. 

Mudd cravou a mão na coxa de Humphrey, apertando-a. 

Ela não sabia quem eram Saul ou Michael, mas Nicholson parecia estar a reunir forças, a ganhar coragem, a procurar palavras, a preparar-se para fazer uma revelação ao mundo sobre si e o seu povo. 

– E a Louise – continuou Nicholson com uma certa indecisão. A mão de Mudd cravou ainda mais fundo na coxa de Humphrey. – Mudd… – disse Humphrey com uma careta, sentindo os dedos dela a esmagarem-lhe os ossos. 

– E a Brad – continuou Nicholson – e a Lawrence e a Bo. E a toda a malta da produtora, a toda a brigada dos tontinhos… 

Mudd inclinou-se para a frente e procurou o olhar de Nicholson, à espera que declarasse quem e o que era.

E à minha gente – como ela queria que ele dissesse. – Ao grande povo canibal. Que sofreu tormentas e humilhação e tem andado escondido nas trevas. A todos vós, ordeno que vos ergueis! Erguei-vos comigo e revelai a vossa proveniência! Pois hoje, blá-blá-blá, e amanhã, iremos tomar conta do mundo! Mas esse momento nunca aconteceu. 

Nicholson sorriu, fez uma piada qualquer sobre o seu agente, agradeceu ao público e abandonou o palco. 

Mãe Para Jantar
Mãe Para Jantar créditos: Guerra e Paz

Livro: Mãe Para Jantar

Autor: Shalom Auslander

Editora: Editora Guerra & Paz

Preço: 14,40€

Unclish abanou a cabeça, revoltado. 

– Devia ter banido esta caixa maldita quando pude – disse enquanto punha a cartola na cabeça, e abandonou a sala todo enfatuado, batendo com a porta ao sair. 

– Aquele filho da mãe! – gritou Mudd. 

– Mudd – rogou Humphrey. – Mudd, acalma-te. 

– Nem uma palavra! – gritou Mudd. – Nem uma palavra sobre a sua gente, o seu legado, a sua história! É só vergonha e mais vergonha e mais vergonha! 

– O que é que esperavas que ele fizesse, Mudd? 

– Esperava que tivesse carácter! 

– Esperavas que o Jack Nicholson abrisse o jogo em plena cerimónia da Academia, diante do mundo inteiro, e dissesse a toda a gente que ele é… que ele é… 

– Nem tu consegues dizê-lo! – vociferou. 

– Isto não é sobre mim, Mudd! 

– É sobre o nosso povo! – bradou ela, saindo intempestivamente da sala. Sempre que Mudd saía intempestivamente de um sítio, parecia que eram necessários alguns instantes para o ar regressar à divisão. Quando isso finalmente aconteceu, Humphrey levantou-se e caminhou na direcção do televisor. 

– Ora… – disse de si para si enquanto desligava o aparelho. – E quem é que nunca sentiu alguma vergonha? 

*** 

Oitavo folheava a cópia de O Guia de Terceiro, com um olhar de desconcerto total. 

– Mas que diabo é isto? – perguntou.

Tinham concordado consumir Mudd, mas já tinha passado mais de uma hora desde a sua morte. Todo o óleo do corpo lhe deves drenar, tinha-lhes ensinado Unclish, para a mamã não se estragar, pelo que sabiam que tinham de ser rápidos. 

Oitavo tinha ido buscar O Guia à maleta, mas, à medida que o folheava, era perceptível, pelo seu olhar, que alguma coisa estava tremendamente errada. – O que é? – perguntou Sétimo. 

– O que é? – repetiu Oitavo. – É pornografia, é o que é. 

– O quê? 

– Pornografia. 

Oitavo arremessou O Guia para Sétimo, que o abriu na página que mostrava uma mulher nua segurando os enormes seios com as mãos em concha. Usava apenas um chapéu branco de cozinheiro. Por cima, em grandes letras cor-de-rosa, podia ler-se: «Tens fome?» 

Sétimo consultou a capa. Ainda era a original – o caçador camuflado, o veado coberto de sangue –, mas as páginas do miolo tinham sido trocadas por páginas de uma revista pornográfica (pelo ar da coisa, devia ser a Juggs). Todas as páginas apresentavam mulheres com seios do tamanho de um jipe. 

«Eis o bife», lia-se no cabeçalho de uma das páginas. 

«Hora do seu Whopper», lia-se na seguinte. 

Sétimo olhou para Terceiro, que cobria a cara com vergonha. – São sete, é hora do esparguete! – disse ele. 

– Onde está o resto? – perguntou Oitavo a Terceiro. – Onde está o resto? 

– Não grites com ele! – repreendeu Zero. – Ele não sabia. – A nossa mãe está a apodrecer lá em cima – disse Oitavo. – Onde está o resto? 

Terceiro começou a bater na própria cabeça. 

– Não sejas estúpido – censurava-se ele. – Não sejas estúpido.

Sétimo agarrou-lhe nos braços, tentando fazê-lo parar. 

– Está tudo bem, está tudo bem. Não fizeste nada de mal, parceiro; todos fazemos coisas assim. 

Terceiro escondeu o rosto com as mãos e balbuciou.

– Fazemos? 

– Claro que sim – assegurou Sétimo. – Mas agora preciso que penses, Terceiro; preciso que penses com muita força. Onde puseste o resto? O Guia, Terceiro, onde é que o puseste?

Terceiro fechou os olhos com força e susteve a respiração. Por fim, disse: – Ups. 

– Ups? 

– Atirei-o fora. 

– Atiraste-o fora? – perguntou Sétimo. 

– Seu idiota – bradou Oitavo. 

– Ei! – exclamou Zero. 

– Todo o óleo do corpo lhe deves drenar, para a mamã não se estragar – disse Segundo. – Todo o óleo do corpo lhe deves drenar, para a mamã não se estragar! 

– Seu idiota! – bradou novamente Oitavo. 

– Ele não sabia! – disse Zero. 

Entraram todos em pânico. Os Seltzer que amavam Mudd afligiram-se com a possibilidade de ela não viver para sempre; os que amavam o seu povo afligiram-se com a possibilidade de estarem prestes a quebrar a corrente; e os que só queriam o dinheiro de Mudd temiam nunca o receber. 

– Oh, que se lixe, vamos lá a isso! – disse Primeiro. 

– Vamos? – perguntou Oitavo. – E como? 

– Com o Punhal, cara de poia – disse Primeiro. – O Punhal da Redenção. Pegamos nele, subimos lá acima e, vocês sabem, drenamo-la. – Vocês sabem, drenamo-la? – perguntou Quinto. – Não, eu não sei. Drenamo-la como? 

– Como é que achas? – ripostou Primeiro, e fez o gesto de um dedo a trespassar a garganta. 

– Sabes a quantidade de sangue que há numa mulher daquele tamanho? – perguntou Oitavo. 

– Não – disse Primeiro. – Tu sabes? 

– Litros – disse Nono. 

– Deitamo-lo pia abaixo – disse Quarto. 

– E como sugeres que o transportemos até à pia? – perguntou Quinto. – Com uma mangueira – sugeriu Décima Primeira. 

– Ela não é um barril de cerveja – disse Décimo. 

– Todo o óleo do corpo lhe deves drenar, para a mamã não se estragar – disse Segundo. – Todo o óleo do corpo lhe deves drenar, para a mamã não se estragar… 

– Certo! – gritou Sétimo. – Acalmem-se todos! 

Atirou O Guia/Juggs para cima da mesa de centro.