NOVE — BAIXO PROFUNDO
Madeira, 1994–2003
A minha vida assumira uma forma estável, de meia-idade. Caroline e eu estávamos casados. Vivíamos em Nova Iorque havia oito anos. Eu estava a despachar trabalho — colunas, artigos, livros, jornalismo. Tinha feito quarenta anos. Tínhamos construído um mundo. Comprámos um apartamento. Os nossos amigos eram escritores, editores, artistas, académicos, donos de editoras. Caroline tinha posto a arte de lado e tornara-se, para sua grande surpresa, uma advogada de defesa. Ela gostava das batalhas intelectuais com «o governo». Eu dependia mais do que nunca do seu olhar quente e crítico. Eu e ela tínhamos chegado juntos ao baile. Mais ninguém podia saber aquilo que nós sabíamos, a linguagem privada que tínhamos desenvolvido. Antes de nos casarmos, tínhamo-nos separado, morado longe por uns tempos. Pareceu uma experiência de quase-morte.
As minhas reportagens levavam-me a todo o lado, até guerras civis e mundos estranhos. Alguns projetos envolviam-me durante meses e anos. A maioria das histórias em que trabalhava eram negras, com sofrimentos e injustiça, mas outras, como as primeiras eleições democráticas na África do Sul, eram altamente gratificantes. Na velha luta pela minha devoção entre o trabalho de adulto e o surf, o trabalho tinha executado um golpe de imobilização na ideia de perseguir ondas. Mas depois o surf, sempre engenhoso, conseguiu libertar-se. Esta reviravolta foi encorajada, ou inspirada, por um regularfoot treinado em Rincon chamado Peter Spacek.
Eu e ele conhecemo-nos em Montauk, a velha aldeia de pescadores no extremo leste de Long Island. O editor de uma revista de surf tinha-me dado a morada de Peter, numa zona à beira-mar chamada Ditch Plains. Afinal, era um bungalow de férias, com um telhado de madeira, com um recado colado na porta. Havia uma longboard Herbie Fletcher debaixo do alpendre, e eu devia entrar na água com aquilo. Por baixo do recado, havia um desenho simples, de traço bem definido, de ondas pequenas com crowd. Ditch Plains, no que diz respeito ao surf, fica numa localização interessante. É a localidade mais a leste da costa oceânica de Long Island. Para oeste, estende-se mais de uma centena de quilómetros de praia até Coney Island, na cidade de Nova Iorque. É uma costa extraordinariamente plana de areia. Mas a areia dá lugar a rochas em Ditch, e as últimas quatro milhas até Montauk Point têm ondas em fundos de rochas e recife espalhados ao longo de uma encosta de terra, sem estradas. No verão, Ditch é uma praia de famílias popular, com carrinhas de burritos estacionadas nas dunas e uma longa e fácil esquerda que rebenta ao longo daquela linha em que a areia dá lugar às rochas. É um bom spot para iniciantes. Nunca tinha pensado em surfar ali.
As ondas pareciam estar da altura do peito, a fechar um pouco, moles. Era um fim de tarde de verão. Estavam cerca de quarenta pessoas na água, de longe o maior crowd que alguma vez vira na Costa Leste. Era a primeira vez em décadas que surfava com uma longboard. O surf tinha passado por um revivalismo da longboard na década de 1980, muito por influência dos surfistas mais velhos, que já não conseguiam surfar com pranchas pequenas. As longboards requerem menos força e agilidade, sendo mais fácil de apanhar ondas. Mas as longboards entram nas ondas tão cedo que em alguns spots começaram a ser em maior número do que as pranchas de alto desempenho. Para mim, era uma questão de orgulho continuar a surfar com uma prancha pequena enquanto dava os primeiros passos nos quarenta. Dar o salto para uma longboard, pensei, seria como usar um andarilho geriátrico — o fim dos dias de dança. Tencionava adiá-lo o mais possível. Remei de joelhos à volta da multidão em Ditch e apanhei uma onda no outside. Senti-me estranho ao manobrar uma prancha de três metros, mas os movimentos antigos foram voltando, um a um, e no fim da onda já estava a caminhar alegremente na prancha, por brincadeira, até ao nose. Quando saí, estava um indivíduo no canal a estudar-me. Tinha um nariz de falcão e era mais ou menos da minha idade, com um cabelo louro-escuro comprido, pelos ombros, e uma pera.
— Eles não me disseram que eras um longboarder — gritou.
Peter era um ilustrador, e o editor que nos tinha posto em contacto queria que colaborássemos num artigo acerca de perseguir uma ondulação de furacão na Costa Leste. Eu tinha surfado algumas ondulações de furacão em Fire Island, mas a maioria das minhas surfadas acontecia agora em viagens — à Califórnia, ao México, a Costa Rica, às Caraíbas, a França. E a maioria dessas viagens, para ser brutalmente franco, também poderia ser descrita como férias. Portanto, eu ainda surfava, mas nem por isso. Nem sequer estava atento às ondas perto de Nova Iorque.
Depois de o esclarecer relativamente à questão da longboard, Peter e eu concordámos que o artigo sobre perseguir a ondulação era lamecha; implicava demasiadas horas a conduzir numa costa que ambos considerávamos incoerente. Depois, ele começou a apresentar-me Montauk.
— É o meu pequeno paraíso — disse ele.
Não estava a referir-se a Ditch Plains, mas aos picos de rocha e de areia nas duas direções. Peter vivia em Manhattan, e havia anos que dividia o aluguer de verão em Ditch Plains, mas ainda estava a aprender acerca dos spots mais obscuros e imprevisíveis na zona de Montauk. Ele tinha nascido em Santa Barbara e tinha vivido no Havai. A primeira vez que surfámos ondas boas juntos, numa sólida ondulação de outono num fundo de rocha a leste de Ditch, fiquei impressionado com o poder e o estilo do seu surf. Não era um estilo muito frequente na Costa Leste, onde as ondas pequenas e curtas tendem a produzir um surf mais esforçado e sem grande elegância.
Nessa noite, ao jantar, ele mostrou-me um artigo de uma revista de surf que o tinha entusiasmado. As ondas nas fotografias eram de sonho: grandes, azul-escuras, assustadoramente perfeitas. A sua localização, respeitando a convenção das revistas de surf, não era revelada, mas os editores não se tinham esforçado muito para a disfarçar, e Peter disse que sabia onde era.
— Madeira — disse ele. — Como o vinho.
Abriu um mapa. A ilha assentava na janela de ondulação do Atlântico Norte como se fosse um alvo, seiscentas milhas náuticas a sudoeste de Lisboa. Ele queria ver aquilo. Subitamente, também eu.
*
Fizemos a nossa primeira viagem em novembro de 1994. A Madeira era um choque para os sentidos — costas de um verde-vivo, minúsculas estradas à beira de precipícios, camponeses portugueses desconfiados a estudar as nossas pranchas, ondas enormes a levantarem do oceano profundo. Conduzimos através de desfiladeiros e florestas de cumes vertiginosos. Comemos prego no pão (uma sanduíche de carne com alho) em cafés à beira da estrada e aviámos cafés expressos. Subimos paredões e descemos escarpas. Parecia não haver mais nenhum surfista por perto. Na costa norte, perto de uma aldeia chamada Ponta Delgada, encontrámos uma esquerda grande. Era algo desordenada e, como todos os spots que vimos, rebentava demasiado perto de umas rochas com aspeto feroz, mas a onda limpava quando entrava na zona mais abrigada da costa, e a parede do inside era longa, veloz e poderosa. Apanhei um par de ondas muito boas.
Peter, ao passar por mim, gritou:
— Podes, por favor, parar de surfar tão bem?
Eu gostava da competitividade descarada dele. Peter surfava melhor do que eu, normalmente, e em Delgada estava a aventurar-se sozinho para uma zona batida pelo vento, de água azul, muito para lá do pico, à procura de monstros com os quais não queria meter-me. Mas, ao contrário de mim, estava a ter pouca sorte com a escolha de ondas. E, também ao contrário de mim, tinha uma namorada a ver de terra.
Alison tinha sido um acréscimo-surpresa na viagem. Ela e Peter tinham acabado de se conhecer. Ela era magra, forte, sarcástica, infinitamente disponível, de cabelo negro, e era também ilustradora. Estavam ambos constantemente a desenhar — nos cafés, nas salas de espera dos aeroportos, cruzando linhas sem parar, ela a debruçar-se para dar cor àquilo em que ele estava a trabalhar. «Não tenhas medo do preto!» Eles enviavam os trabalhos para os clientes nos Estados Unidos por meio do fax dos hotéis e das empresas de aluguer de carros. Eram ambos pessoas com estilo, tranquilas e destemidas. Mas podiam ser muito instáveis. Um dia após termos chegado à Madeira, antes de termos encontrado ondas, anunciaram que queriam regressar a Portugal Continental, que parecia mais divertido. Eu disse que isso estava fora de questão. Estava horrorizado, em silêncio. Mas qual era o problema destas pessoas? Peter tinha começado a usar uma boina — outro mau sinal. Depois, começámos a surfar, primeiro em Ponta Delgada e, de seguida, uns quilómetros para este, descobrimos um recife consistente e pesado a que Peter chamou Shadowlands. As encostas ali eram tão altas — cerca de um quilómetro — que o sol do inverno nunca chegava a terra. Usávamos fatos de surf com pouca espessura — braços compridos, pernas curtas — e lentamente fomos percebendo como lidar com a surpresa da secção tubular de Shadowlands à maré vazia.
Mas a principal região de ondas era a costa sudoeste, onde as ondulações de noroeste davam a volta ao extremo oeste da ilha e acalmavam para dar lugar a longas e ordenadas linhas. Graças à nossa fonte na revista de surf, sabíamos onde procurar. Havia uma vila chamada Jardim do Mar, que assentava num pequeno promontório tirado de um livro de histórias. Diante daquele promontório, se as fotografias fossem fiáveis, rebentava uma grande onda. Fui explorar a costa (vertical, deserta, espantosa) a oeste do Jardim, na minha prancha, sem esperar encontrar ondas, enquanto Peter e Alison caminhavam pelas rochas. Ele carregava a prancha, por precaução. Num promontório agreste e cheio de pedras chamado Ponta Pequena, tropeçámos num cenário surpreendente: direitas pequenas, perfeitas e fortes a rebentar numa enseada rasa. Peter e eu fomos lá para dentro. Tendo em conta que eram ondas pelo peito, o preço a pagar por uma queda era extraordinariamente elevado, e Peter deixou uma quantidade considerável de sangue nas rochas. Eu tive mais uma surfada cheia de sorte. Posteriormente, nos seus desenhos da nossa primeira surfada em Ponta Pequena, reparei que Peter, mais uma vez, tinha estado a fazer contas: ele apanhou 1,5 tubos, enquanto eu apanhei 5, de acordo com um marcador incluído no desenho. Além disso, ele feriu-se, eu não. Tudo enquanto a sua namorada observava.
Ocorreu-me, mais tarde, que uma das razões por que gostava destes concursos que Peter arranjava devia-se a eu ganhar quase sempre. De outro modo, talvez Peter nem sequer falasse deles. Por baixo daquela apresentação de skater grunge (ele ainda andava de skate, com quarenta e muitos anos, na sua vizinhança, TriBeCa), era extremamente bem-educado. Os seus pais eram imigrantes checos que tinham fugido da Europa de Leste quando ele era pequeno, e parte da sua atípica cortesia vinha, presumi, deles: uma educação do Velho Mundo nas terras selvagens da Califórnia. O resto, contudo, era seu. Mas eu adorava a forma como pegava no exibicionismo e egoísmo do surf e os transformava em piadas. Eu havia surfado com demasiados tipos cheios de competitividade latente e, por isso, nunca verbalizada. O herói de Peter na escola de arte fora R. Cumb, e ele e o mestre partilhavam uma afinidade pela sátira de verdades confrangedoras.
Para a Madeira, comprei uma prancha de ondas grandes, uma gun, a primeira que tinha. Era uma 8’0”1 squashtail thruster, grossa e com a forma de um dardo, desenvolvida para ser rápida. Fora alegadamente construída por um velho artesão do North Shore chamado Dick Brewer. Brewer era o shaper de ondas grandes mais conhecido no surf, e eu tinha dúvidas de que ele tivesse feito mais do que desenhar e assinar a minha prancha. Tinha-a comprado diretamente do expositor numa loja de surf em Long Island. Era um mistério o que estava uma Brewer a fazer ali — Long Island provavelmente nunca veria ondas que exigissem uma prancha daquelas, mesmo com as maiores ondulações de furacão —, mas interpretei o seu aspeto como um sinal. Peter encorajou-me a comprá-la; ele também comprou uma gun.
Na Madeira, percebemos, ao fim de alguns dias, que tínhamos encontrado algo extraordinário. Mas precisámos de algumas investidas para absorver a verdadeira dimensão de tudo aquilo.
A primeira vez que surfámos no Jardim do Mar, ou a primeira vez em que apanhámos boas ondas, foi provavelmente no ano seguinte. Mesmo com dois metros, era uma onda de consequência: linhas pesadas de intervalo longo marchavam vindas de oeste, dobrando em volta do promontório até uma curva de tirar o fôlego. Elas formavam, levantavam e rebentavam no ponto mais distante daquela espécie de ferradura, e depois rolavam ao longo de uma costa rochosa. Entrámos na água por uma rampa para barcos primitiva — uma inclinação de cimento coberta de limos que descia de um quebra-mar — muito longe do pico. Conforme nos aproximávamos do lineup, o poder e a beleza das ondas tornaram-se mais impressionantes. Rebentou um set, a rugir e a brilhar com a luz do sol já baixo daquela tarde de inverno, e senti um nó na garganta com a emoção — uma inominável mistura de alegria, medo, amor, luxúria e gratidão.
Um grupo de aldeãos tinha-se juntado numa varanda por baixo da torre do sino da igreja. Não éramos os primeiros surfistas que viam; ainda assim, pareciam intensamente curiosos com o nosso progresso enquanto tentávamos perceber onde era o lineup. Aplaudiam sempre que um de nós apanhava uma onda. Os takeoffs eram intensos e devem ter parecido dramáticos, com uma grande rampa de parede prateada e depois, iluminada por trás, uma ampla parede de um verde-dourado a levantar rapidamente. Ambos surfávamos de forma conservadora, escolhendo cuidadosamente as ondas, virando, de seguida, com força e fazendo uso das grandes paredes para dar a volta às secções, mostrando respeito e não tentando fazer tubos. A velocidade, profundidade e escala das ondas eram uma revelação, uma glória. E os aldeãos sabiam o que era uma onda bem surfada quando a viam. Também conheciam bem aquele pedaço de mar e, do local alto onde se encontravam, conseguiam ver mais do que nós. Começaram a assobiar para nos ajudar no posicionamento: um assobio agudo significava que vinha uma onda e que precisávamos de remar para fora; um assobio ainda mais agudo significava que tínhamos de remar mais depressa; um assobio mais suave queria dizer que estávamos no sítio certo. Surfávamos até escurecer.
À noite, comemos espada preta — um peixe monstruoso de águas profundas com uma carne adocicada — num café da aldeia. Queríamos agradecer a quem tinha assobiado, pagar-lhes uma bebida, mas as pessoas tinham vergonha, não estavam habituadas a estranhos. Peter considerou a onda «suprema». Comecei à procura de um sítio onde ficar.
Notas
1 Prancha de 2,44 metros. [N. da R.]
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