O pavilhão do cancro é uma cruel democracia da aparência: a mesma cabeça calva, a mesma tez devastada, a mesma cara inchada pelos esteróides, o mesmo cateter de plástico da quimioterapia visível como um alto debaixo da pele. Os velhos têm um ar infantil, os jovens comportam-se de forma senil, os de meia-idade apercebem-se de que tudo o que neles era de meia-idade se vai sumindo.
Os limites do nosso corpo desmancham-se. Tudo o que era suposto mantermos dentro de nós parece agora transbordar. O sangue das hemorragias nasais induzidas pela quimioterapia escorre para os lençóis, para a papelada burocrática, para os recibos da seguradora CVS, para os livros da biblioteca. Não conseguimos parar de chorar. Emitimos cheiros fétidos. Vomitamos.
Temos vaginas venenosas e esperma envenenado. A nossa urina é tão tóxica que as placas na casa de banho recomendam aos doentes que puxem o autoclismo duas vezes. Não temos ar de gente: temos ar de gente com cancro. Parecemo-nos com uma doença mais do que connosco.
A linguagem já não se presta à sua função social. Se usamos palavras, é para nos aproximarmos, mas como o faria uma bomba desgarrada. Alguém diz qualquer coisa sobre o tempo: em resposta, uma frase solta de uma conversa fantasmática — «Temos de aprender a viver com aquilo que queremos.» As frases rechaçam a sintaxe. Os vocabulários recompõem-se em traduções desajeitadas de palavras que em tempos conhecemos ou de palavras novas que nunca chegaremos a conhecer. Crianças a quem em tempos as mães ensinaram a falar olham agora fixamente para as suas mães que, doentes, gesticulam como bebés a aprender a falar, incapazes de se lembrarem da palavra para «televisão» ou a palavra para «copo».
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Nas salas de espera, o trabalho de cuidar cruza-se com o trabalho dos dados. Esposas preenchem os formulários dos seus maridos. Mães preenchem os formulários dos seus filhos. As mulheres doentes preenchem os seus próprios formulários.
Eu estou doente e sou uma mulher. Escrevo o meu próprio nome. Em cada consulta é-me dada para a mão uma impressão da base de dados geral, que me pedem para emendar ou confirmar. Sem nós, as bases de dados estariam vazias.
As recepcionistas distribuem formulários, imprimem as pulseiras para que mais tarde sejam lidas por scanners que as mãos de outras mulheres seguram. As assistentes de enfermagem ficam de pé no vão de uma porta de onde nunca chegam a sair. Mantêm estas portas abertas com os seus corpos e vão chamando pelos nomes dos pacientes. Estas mulheres são as para-profissionais dos limiares, pesando os corpos dos pacientes em balanças digitais, fazendo medições de sinais vitais na zona de preparação que há nos recantos expostos de uma clínica. Depois conduzem a paciente (eu) a uma sala de exames e entram no sistema informático. Introduzem os números que o meu corpo gera quando é oferecido às máquinas: quão quente ou fria estou, o ritmo a que o meu coração bate. Em seguida, pedem: Classifique a sua dor numa escala de um a dez. Eu tento responder, mas a resposta certa é sempre a-numérica. A sensação é inimiga da quantificação. Ainda não há máquina em que um sistema nervoso possa introduzir a sensação, para que esta seja convertida numa medida suficientemente descritiva.
A medicina contemporânea responde por excesso ao acontecimento indisciplinado da doença no organismo, transmutando-o em dados. Os pacientes tornam-se informação não apenas através das quantidades do que quer que emerja dos seus corpos individuais, ou por eles passe, mas pelos corpos e pelas sensações de populações inteiras transformados numa matemática, o cálculo de probabilidades (de adoecer ou continuar saudável, de viver ou morrer, da cura e do sofrimento) em que o tratamento se baseia. Os corpos de todas as pessoas estão sujeitos a estes cálculos, mas são as mulheres, na maioria das vezes, que fazem o trabalho preliminar de relocalizar a nebulosidade e a incomensurabilidade da doença na matemática tecnologizada da medicina.
O seu nome e data de nascimento? O nome de uma paciente com cancro, que ela própria enuncia, é adjunto do código de barras da pulseira, depois adjunto de quaisquer substâncias — frascos de sangue tirado, os medicamentos de quimioterapia que nela serão introduzidos — cuja localização e identidade precisam de ser confirmadas. Embora a minha pulseira tivesse sido digitalizada para determinar a minha identidade, a exigência de que eu repita o meu nome é o plano de reserva da informação médica: é o punctum de cada transmissão de algo para o meu corpo, ou a partir dele. Por vezes lembro-me de quem sou. Mas a repetição é um método de dessensibilização. Classificarmo-nos numa escala de um a dez? Na abstracção medicalizada do cancro, tornei-me um pouco-que-seja, terciária face às sensações do corpo e aos sistemas informáticos da medicina.
As enfermeiras vêm ter comigo à sala de exames depois de eu ter trocado a minha roupa por uma bata. Elas entram no sistema. Por vezes o meu sangue foi tirado e tenho a oportunidade de olhar para uma página impressa que lista os seus ingredientes. A cada semana que passa o sangue flui com mais ou menos quantidade de um dado tipo de célula ou substância do que na semana anterior. Estas substâncias aumentam ou diminuem e desse modo determinam futuras medidas e duração do tratamento. As enfermeiras fazem perguntas sobre como experiencio o meu corpo. Introduzem as sensações que descrevo num computador, clicando nos sintomas que há muito receberam uma categoria e um nome e um número de seguro.
A palavra «cuidado» raramente nos remete para um teclado. O trabalho, muitas vezes não remunerado ou mal pago, de quem presta cuidados (ou daquilo a que por vezes se chama «trabalho reprodutivo» — reproduzir-se a si próprio e a outros como corpos vivos, dia após dia, ou seja, alimentar, limpar, tomar conta de alguém, etc.) é aquele que muitos entendem como o menos tecnológico, o mais afectivo e intuitivo. O «cuidado» é tantas vezes entendido como um modo de sentir, vizinho que é do amor. Cuidar parece tão arredado da quantificação como as sensações de fraqueza ou dor da pessoa de quem se cuida parecem arredadas das categorias da estatística. Eu cuido de ti sugere um modo de abstracção (o sentimento) distinto da medição do ritmo de divisão celular de um tumor (o facto patológico). Mas durante o período de uma doença grave ocorrem estranhas inversões. Ou melhor, o que parece ser uma inversão torna-se uma clarificação. Os nossos corpos, outrora sólidos, imprevisíveis, sensitivos, espantosamente desordenados e animalescos, submetem-se — de forma imperfeita, mas também intensa — às condições abstractizantes da medicina. Do mesmo modo, o cuidado ganha uma forma vívida e material.
As recepcionistas, assistentes de enfermagem, técnicas de laboratório e enfermeiras não só são obrigadas a introduzir a informação do meu corpo nas bases de dados, como também têm de cuidar de mim enquanto o fazem. No hospital, a minha urina é medida e tabelada pela mesma pessoa que me conforta conversando comigo. Isto acontece para que os procedimentos dolorosos não o sejam tanto. Os trabalhadores que verificam o meu nome duas vezes, examinam a minha pulseira médica, e seguem, aos pares, o protocolo de dosimetria à medida que ligam medicamentos de quimioterapia ao cateter no meu peito são os mesmos trabalhadores que me tocam gentilmente no braço quando pareço estar com medo. O trabalhador que tira sangue conta uma anedota. O trabalho do cuidado e o trabalho de dados existem numa espécie de simultaneidade paradoxal: o que têm em comum é que ambos estão frequentemente a cargo de mulheres. Os trabalhadores são, neste caso, trabalhadoras. E, como tudo o que historicamente tem sido identificado como trabalho de mulheres, este é um trabalho que facilmente passa despercebido. É comum reparar-se nele somente quando se ausenta: uma casa suja chama mais a atenção do que uma casa limpa. O pano de fundo que aparenta existir naturalmente, sem esforço, exige um esforço enorme: o trabalho do cuidado e o trabalho de dados são silenciosos, diários, persistentes, e nunca estão acabados. O arquivo de um paciente é, como uma casa habitada, o lugar de um trabalho que se prolonga por uma humana eternidade.
Durante o meu tratamento do cancro, a maioria destes trabalhadores — as recepcionistas, para-profissionais e enfermeiras — têm sido mulheres. Os médicos, por vezes mulheres e por vezes homens, encontram-se comigo no ponto cimeiro da quantificação do meu corpo. Entram no sistema, mas digitam menos, por vezes de todo. À medida que os seus olhos percorrem o ecrã que exibe as categorias e quantidades actualizadas do meu corpo, vem-me de novo à mente John Donne: «Eles viram-me e ouviram-me, chamaram-me à barra do tribunal nestes grilhões onde receberam as provas, eu cortei a minha própria anatomia, dissequei-me e eles afastaram-se para ler do meu próprio corpo.»
Se são as mulheres que transmutam corpos em dados, são os médicos que os interpretam. As outras trabalhadoras extraíram-me, rotularam-me: eu informatizei a minha própria sensação. Depois são os médicos que me lêem — ou melhor, lêem aquilo em que o meu corpo se tornou: uma paciente, feita de informação, que o trabalho de mulheres fabricou.
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Dentro de aproximadamente 60 horas, e pela segunda vez, a Adriamicina será injectada no meu corpo através de um cateter de plástico cirurgicamente implantado no meu peito e ligado à minha jugular. A Adriamicina recebe o seu nome do Mar Adriático, perto do qual foi descoberta. O seu nome genérico é doxorrubicina, um termo derivado do «rubi», porque é de cor vermelha, um vermelho vivo e voluptuoso. Gosto de pensar neste veneno como o rubi do Adriático, onde nunca estive, mas que gostaria de visitar. É chamado de «diabo vermelho», por vezes de «morte vermelha», pelo que talvez devesse igualmente ser chamado de jóia satânica da mortalidade nas margens de Veneza.
Para administrar o medicamento, a enfermeira oncológica, depois de verificar a receita com um colega, deve envergar um elaborado fato protector e empurrar a Adriamicina lentamente, pessoalmente, através do cateter no meu peito. Se escapar às veias, o medicamento destrói o tecido circundante: é por vezes considerado perigoso demais, para todos os outros e para tudo o resto, para que possa ser administrado por gotejamento. Correm rumores de que, quando derramado, derrete o linóleo do chão de uma clínica. Durante vários dias após a administração da droga, os fluidos do meu corpo serão tóxicos para outras pessoas e corrosivos para os tecidos do meu próprio corpo. A Adriamicina é por vezes fatal para o coração, e há um limite para quanto se pode tomar ao longo da vida, metade do qual terei atingido ao completar este tratamento.
Nos Estados Unidos, a Adriamicina foi aprovada para uso generalizado no ano a seguir ao meu nascimento, 1974, e isto significa que, se incluirmos os anos passados a testá-la, a sua utilização em doentes com cancro é mais antiga do que eu. Este é provavelmente o mesmo tratamento que Susan Sontag recebeu antes de escrever A Doença como Metáfora, um dos primeiros livros que alguém me enviou pelo correio quando fiquei doente. Suportar os efeitos da Adriamicina tem algo de rito antigo, praticado ao longo de décadas e por ocasião de muitos tipos de cancros como ritual de iniciação, quer um paciente precise dela ou não. Dado o modo como mata células de uma forma perfeitamente clássica — tornando as pessoas carecas, fazendo-as vomitar —, as suas consequências são como que a pedra-de-toque oncológica. Muitas pessoas têm cancros que deixam poucas marcas na sua aparência, mas uma vítima de cancro — no sentido cinematográfico — é alguém que passou por este tipo de quimioterapia. O facto de o meu tratamento começar assim é um sinal claro do pouco que se progrediu.
O tratamento com Adriamicina pode causar leucemia, insuficiência cardíaca, falência de órgãos, e é quase certo que me causará infertilidade e infecções. Isto porque, como tantos medicamentos de quimioterapia, a Adriamicina é ecuménica nas suas destruições, sendo também tóxica para o sistema nervoso central. A minha mitocôndria começará a reagir ao medicamento três horas após a sua administração. Perdurará durante um período de até 27 horas, mas os danos transbordam para lá do tratamento e é frequente persistirem por vários anos. Enquanto estou sentada na cadeira de infusão, a matéria branca e cinzenta do meu cérebro vai diminuindo aos poucos. Não há maneira certa de saber como isto me mudará: os danos cerebrais da quimioterapia são cumulativos e imprevisíveis. Embora o medicamento esteja em uso há meio século, o facto de não atravessar a barreira hematoencefálica levou a que os médicos por vezes não acreditassem na palavra dos pacientes quanto aos seus efeitos cognitivos, ou, ouvindo-os falar deles, minimizassem as suas queixas, associando-as a outros tipos de infelicidade decorrente do cancro.
As Ressonâncias Magnéticas de outras pessoas que fizeram esta quimioterapia para o cancro da mama sugerem danos no córtex visual, «activação significativamente reduzida do córtex pré-frontal dorsolateral médio esquerdo e do córtex pré-frontal», e «activação significativamente reduzida do córtex pré-frontal dorsolateral esquerdo, aumento dos erros perseverantes e redução da velocidade de processamento». Algumas pacientes relatam a perda da capacidade de ler, de se lembrarem de palavras, de falar fluentemente, de tomar decisões, de recordar. Algumas perdem não só as suas memórias de curto prazo, mas também as suas memórias episódicas: ou seja, perdem a memória das suas vidas.
Estes efeitos, dos quais o Dr. Bebé me informou casualmente apenas quando me acompanhava à minha primeira infusão de quimioterapia, são, segundo dizem, inevitáveis. Não há nada a fazer, diz-me A Sua Viagem Oncológica, a não ser enfrentarmos a nossa vida cerebralmente-lesionada com uma dose de «bom humor». Os efeitos podem durar ao longo de todo o tratamento, ou um ano, ou ir piorando nos anos que se seguem ao tratamento, por uma década ou mais.
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As pessoas doentes sentam-se nas salas de espera e, quando se reclinam, fazem-no provisoriamente. Mesmo que estejam demasiado fracas para se sentarem, sentam-se, a cabeça abatida, apoiada no pescoço. Por mais doentes que estejam, os pacientes que recebem tratamento no pavilhão do cancro não passam a maior parte do seu tempo lá: estão doentes no trabalho e doentes em casa ou na escola ou doentes na mercearia ou doentes na Direcção Geral de Viação ou doentes nos seus automóveis ou no autocarro. Alguns são empurrados em cadeira de rodas pelos seus filhos ou parceiros ou voluntários ou amigos, e depois de novo empurrados para dentro de automóveis que os levam para apartamentos ou casas, os quais, tal como o tratamento do cancro, precisam de ser pagos.
A palavra «clínica» deriva do grego klinikós, que significa «de ou respeitante a cama». A palavra «pavilhão», por sua vez, remete para uma estrutura totalmente diferente, que sugere torneios e campos de batalha. Um pavilhão é um lugar próprio de generais e reis, uma arquitectura quase sempre temporária, luxuosa, construída para servir os fins dos poderosos, e adjacente a outra coisa — no caso do cancro, adjacente a tudo o resto a que chamamos vida.
O filósofo Michel Foucault escreveu uma obra famosa sobre a disposição espacial da doença, com o título O Nascimento da Clínica, mas não consigo encontrar um livro com o título O Nascimento do Pavilhão. Parece impossível que um pavilhão de cancro possa ter uma mãe. No espaço grande e movimentado em que o meu tratamento do cancro é administrado, nunca vi uma cama. A actividade no interior do pavilhão é transitória, abstracta, impermanente, deslocada. Os doentes e os parceiros, crianças, pais, amigos e voluntários que deles cuidam são mantidos em circulação de andar para andar, de cadeira para cadeira. Aos médicos é atribuída uma rotação de consultórios e postos avançados, e para sabermos qual é o nosso, em determinado dia, é necessário confirmar antecipadamente pelo telefone.
O tratamento do cancro parece organizado em prol do máximo lucro de alguém — que não dos pacientes —, o que significa que os pacientes com cancro são mantidos na máxima circulação ao máximo ritmo. Nas palavras de Foucault: «A clínica deveria ter tido apenas um sentido — de cima para baixo, do conhecimento adquirido à ignorância.» Dinheiro e mistificação, não conhecimento ou ignorância, são os seus pontos cardeais.
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Os cientistas descobriram a droga conhecida como diabo vermelho perto de Castel del Monte, construído pelo Santo Imperador Romano Frederico II em Itália na década de 1240. O castelo não tinha nem fosso nem ponte levadiça, pelo que poucos acreditam que alguma vez tenha servido como fortaleza. Nunca chegou a ser acabado, o que leva algumas pessoas a pensar que foi usado apenas como alojamento temporário. O castelo foi construído numa rara forma octogonal, sendo depois convertido numa prisão, e depois num refúgio, durante o tempo da peste. Depois os Bourbons extraíram todo o mármore do castelo. Depois os cientistas recolheram amostras do seu solo. Levando o solo do castelo de volta para Milão, encontraram nele Streptomyces peucetius, a bactéria vermelha-viva da qual deriva o meu tratamento. A Adriamicina é uma antraciclina, o que significa que bloqueia uma enzima chamada topoisomerase-II. Ao bloquear esta enzima, os medicamentos inibem a rápida proliferação de células — muitas das quais células de que precisamos, mas idealmente também aquelas de que não precisamos.
Foi-me administrada a Adriamicina com ciclofosfamida, um fármaco aprovado para uso médico em 1959, num tratamento combinado comum chamado quimioterapia AC em dose densa. A ciclofosfamida é uma forma medicalizada de uma arma química desenvolvida anteriormente pela Bayer com o nome LOST. O gás mostarda, como também é conhecido, sempre fez os maiores estragos como incapacitante, mais do que como assassino, mas é mais do que capaz de matar uma pessoa. Na Primeira Guerra Mundial, o LOST encheu as trincheiras de brilhantes plumas amarelas. No contexto do cancro, vem em bolsas de plástico, e ninguém no pavilhão fala abertamente sobre o que está lá dentro. Proibido como arma em 1925, é uma forma de obliteração lenta que actua apenas durante a quimioterapia e, depois disso, engendra as suas consequências: infecção, infertilidade, cancro, perda cognitiva. Na quimioterapia, como na guerra, quando se está exposto à ciclofosfamida é aconselhável ter por perto alguém que nos dê a mão.
Embora quatro rondas de doses intensas de medicamentos antiquados tenham de facto eliminado muitas partes de mim, algumas das quais ainda hoje meio-mortas, nenhum destes medicamentos parece ter conseguido reduzir significativamente o meu tumor. Depois de terminada toda aquela aniquilação celular, a minha própria semianiquilação era evidente, mas o meu tumor permanecia intacto. Permanecia enquanto mancha compacta de sombra no interior do brilho do ecrã.
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Depois as pessoas partem, os amigos deixam de aparecer, os amantes fogem levando consigo qualquer possibilidade de voltares a gostar deles, os colegas evitam-te, os teus rivais já não parecem muito impressionados contigo, os teus seguidores no Twitter deixam de te seguir. Para as pessoas que te abandonaram, é possível que sejas tão objecto quanto um objecto pode ser (que sejas, para alguém, uma coisa a ser descartada como lixo) ou tão humana quanto é possível ser-se no contexto desta doença (pela forma tão intensa como sentes o desconsolo, quando és descartada). Ou, como já aprendeste que tudo é possível no curso de uma doença catastrófica, podes ser ao mesmo tempo o mais humana possível e o mais objecto possível.
Aqueles que te abandonaram, que — agora que estás doente — deixaram de falar contigo ou de te visitar, ou simplesmente te dizem que não conseguem lidar com a doença, que esta é, como dizem, «demasiado dura» para eles, desempenham um papel, pelo menos parcial, na criação da tua existência enquanto pessoa que, em parte, permanecerá eternamente saudável. Para eles, és estática e imutável. As pessoas que partiram não te verão sofrer ou mirrar, pelo que tu, em virtude das suas acções, te manténs para sempre tal como eras no momento do diagnóstico. Nas suas memórias, continuas vibrante e inalterada: o teu cabelo é espesso, a tua mente é sagaz e as tuas pestanas são longas e pendem sobre as tuas bochechas rosadas. Os que te abandonam são as pessoas que nunca terão de te ver como outra coisa que não tu mesma.
Para ti mesma, não tendo ainda desenvolvido a consciência necessária a um modo de vida enquanto objecto, o abandono faz com que te sintas menos humana, o que a maioria das vezes assume a forma de te sentires animal. Sentes-te como o tipo de animal que é melancólico e olha para qualquer objecto desejando ser esse objecto em vez de ser ele próprio, que deseja ser um lustre, talvez, ou um garfo banhado a prata ou uma catana suspensa na parede, deseja ser qualquer coisa (um banco, o salto partido de um sapato, a carcaça de um gafanhoto, uma lanterna sem pilhas, um livro sobre navios, uma fenda no soalho, uma folha de carvalho caída na sarjeta, um bisturi, uma partícula, um sótão, uma grande superfície comercial), qualquer coisa que não um animal doente e abandonado, qualquer coisa no mundo que não isto, a coisa que em tempos foi amada e que agora é abandonada ao seu destino.
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