Nova Iorque

10 de março de 2014

I

A rapariga acorda na cama de outra pessoa.

Está ali deitada, perfeitamente imóvel, e tenta reter o tempo como uma respiração no peito; como se pudesse impedir que o relógio avançasse, evitar que o rapaz ao seu lado acordasse, manter viva a memória da noite apenas pela força de vontade.

Como é evidente, sabe que não é possível. Sabe que ele esquecerá. Esquecem sempre.

Não é culpa dele — nunca é culpa deles.

O rapaz ainda está a dormir, e ela vê os seus ombros subirem e descerem lentamente, o ponto em que o cabelo escuro se encaracola contra a nuca, a cicatriz ao longo das costelas. Pormenores há muito memorizados.

O seu nome é Toby.

Na noite anterior, disse-lhe que o seu era Jess. Mentiu, mas apenas porque não consegue dizer o seu verdadeiro nome — um dos pormenores perversos enredados na relva, como urtigas. Farpas escondidas prontas a picar. O que é uma pessoa senão as marcas que deixa para trás? Aprendeu a saltar por entre as ervas pungentes, mas há alguns cortes que não se podem evitar — uma memória, uma fotografia, um nome.

No último mês, foi Claire, Zoe, Michelle — mas, duas noites, quando era Elle e ficaram juntos até ao fecho de um café noturno, depois de uma das suas atuações, Toby disse que estava apaixonado por uma rapariga chamada Jess simplesmente ainda não a conhecera.

Por isso agora é Jess.

Toby continua a mexer-se, e ela sente a velha dor familiar no peito enquanto o rapaz se alonga e vira na direção dela mas não acorda, ainda não. Agora tem o rosto a centímetros do dela, os lábios entreabertos no sono, caracóis pretos sobre os olhos, pestanas escuras contra um rosto belo.

Uma vez, a escuridão provocou a rapariga enquanto caminhavam ao longo do Sena, disse-lhe que ela tinha um «tipo», insinuando que a maior parte dos homens que escolhia e até algumas das mulheres — se pareciam bastante com ele.

O mesmo cabelo escuro, os mesmos olhos argutos, os mesmos traços marcados.

Mas não era justo.

Afinal, a escuridão tinha esse aspeto por causa dela. Fora ela que lhe dera essa forma, que escolhera o que pensar dele, o que ver.

Não te lembras, disse-lhe ela então, quando não passavas de sombra e fumo?

Querida, disse ele no seu jeito suave e envolvente, eu era a própria noite.

Agora é manhã, noutra cidade, noutro país. A luz intensa do sol atravessa as cortinas, e Toby volta a mexer-se, erguendo-se da superfície do sono. E a rapariga que é — era — Jess volta a reter a respiração enquanto tenta imaginar uma versão desse dia em que ele acorde e a veja e se lembre.

Em que sorria e lhe afague o rosto e diga: «Bom dia.»

Livro: A Vida Invisível de Addie Larue

Autora: V. E. Schwab

Editora: Minotauro

Data de lançamento: 24 de junho

Preço: 19,71€

Mas não vai acontecer assim, e ela não quer ver a familiar expressão vaga, não quer assistir enquanto o rapaz tenta preencher os espaços onde as memórias dela deveriam estar, vê-lo manter a compostura numa displicência treinada. A rapariga assistiu demasiadas vezes a essa representação, conhece os movimentos de cor, por isso, em vez disso, desliza para fora da cama e caminha descalça até à sala.

Vê o seu reflexo no espelho da entrada e repara naquilo em que toda a gente repara: sete sardas, espalhadas como uma série de estrelas, pelo nariz e pelas faces.

A sua própria constelação privada.

Inclina-se para frente e embacia o espelho com a respiração. Passa o dedo pela nuvem tentando escrever o seu nome. A... d...

Mas não vai mais longe, pois as letras desaparecem. Não tem a ver com a superfície em que escreveu — por muito que tente dizer o seu nome, por muito que tente contar a sua história. E tentou, a lápis, a tinta negra, a tinta colorida, com sangue.

Adeline.

Addie.

LaRue.

Não vale a pena.

As letras desfazem-se, esbatem-se. Os sons morrem-lhe na garganta.

Os dedos escorregam do espelho, e ela vira-se, estudando a sala.

Toby é músico, e os vestígios da sua arte encontram-se por todo o lado.

Nos instrumentos encostados às paredes. Nas linhas e notas dispersas escrevinhadas em mesas compassos de melodias meio recordadas, misturados com listas de supermercado e de tarefas semanais. Mas, aqui e ali, outra mão as flores que começou a deixar no parapeito da cozinha, apesar de não se conseguir lembrar de quando esse hábito começou. O livro sobre Rilke que não se lembra de ter comprado. As coisas que perduram, mesmo quando o mesmo não acontece com as memórias.

Toby demora a levantar-se da cama, por isso Addie prepara um chá para si — ele não bebe, mas está sempre ali, no seu armário, uma lata de Ceilão solto e uma caixa de saquetas de seda. Uma relíquia de uma viagem noturna à mercearia, um rapaz e uma rapariga a deambularem por entre os corredores, de mãos dadas, porque não conseguem dormir. Porque ela não queria permitir que a noite chegasse ao fim. Não estava pronta para o desapego.

Levanta a caneca, inala o aroma enquanto as memórias deslizam, indo ao seu encontro. Um parque em Londres. Um pátio em Praga. Uma sala de chá em Edimburgo.

O passado desenhado como uma folha de seda sobre o presente.

Está uma manhã fria em Nova Iorque, as janelas embaciam-se com o gelo, por isso puxa um cobertor das costas do divã e enrola os ombros nele. Um estojo de guitarra ocupa uma extremidade do sofá, e o gato de Toby encontra-se na outra, por isso empoleira-se antes no banco do piano.

O gato, que também se chama Toby («Para poder falar comigo próprio sem que seja esquisito...», explicou), olha para ela enquanto sopra o chá.

Pergunta-se se o gato se lembrará.

As mãos agora estão mais quentes. Pousa a caneca em cima do piano e abre a tampa revelando as teclas, alongando os dedos e começando a tocar o mais baixo possível. No quarto, consegue ouvir o Toby-humano mexer-se, e todos os centímetros do seu corpo, do esqueleto até à pele, se contraem de terror.

Esta é a parte mais difícil.

Addie podia ter-se ido embora devia ter-se ido embora —, ter-se esgueirado quando ele ainda estava a dormir, quando a manhã ainda era uma extensão da sua noite, um momento preso no âmbar. Mas agora é demasiado tarde, por isso fecha os olhos e continua a tocar, mantém a cabeça baixa quando ouve os seus passos por detrás das notas, continua a mover os dedos quando o sente à porta. Ficará ali, a absorver a cena, a tentar reconstituir a cronologia da noite anterior, que se pode ter extraviado, em que pode ter conhecido uma rapariga e depois tê-la levado para casa, caso tenha bebido demais, porque não se lembra de nada daquilo.

Mas sabe que Toby não a irá interromper enquanto estiver a tocar, por isso, saboreia a música por mais alguns segundos antes de se obrigar a parar, olhar para cima, fingir que não repara na confusão no seu rosto.

— Bom dia — diz, com uma voz alegre e uma pronúncia que outrora foi de francês profundo, mas está agora tão esbatida que mal a deteta.

— Ah, bom dia — diz ele, passando uma mão pelos caracóis pretos e soltos e, em sua defesa, Toby tem o mesmo aspeto de sempre um pouco desconcertado e surpreendido por ver uma rapariga bonita sentada na sua sala, envergando apenas a roupa interior e a T-shirt da sua banda preferida sob uma manta.

— Jess — diz ela, dizendo o nome de que ele não se consegue lembrar, porque não está ali. — Não faz mal — diz ela —, se não te lembrares.

Toby cora e afasta o Toby-gato do caminho enquanto se afunda entre as almofadas do sofá.

— Desculpa... não é meu costume. Não sou esse tipo de rapaz.

Ela sorri.

— E eu não sou esse tipo de rapariga.

Ele sorri também, então, numa linha de luz que desfaz as sombras no seu rosto. Acena com a cabeça para o piano, e ela quer que ele diga alguma coisa, como «Não sabia que tocavas», mas, em vez disso, Toby diz:

— Tocas muito bem — e ela pensa: «É espantoso o que se pode aprender quando se tem tempo.»

— Obrigada — diz, passando a ponta dos dedos pelo teclado.

Agora Toby está irrequieto, fugindo para a cozinha.

— Café? pergunta, remexendo por entre os armários.

— Encontrei chá.

Começa a tocar uma canção diferente. Nada de complicado, apenas uma série de notas. O início de algo. Encontra a melodia, agarra-a, deixa-a escapar-se por entre os dedos enquanto Toby volta a entrar na sala, com uma chávena fumegante nas mãos.

— O que era isso? — pergunta, com os olhos a brilhar à maneira dos artistas — escritores, pintores, músicos, todos os que têm predisposição para momentos de inspiração. Parecia-me familiar...

Um encolher de ombros.

— Tocaste-a para mim na noite passada.

Não é mentira, não propriamente. Tocou-a de facto para ela. Depois de ela lha ter mostrado.

— Toquei? — diz ele, franzindo o sobrolho. está a pôr o café de lado, à procura de um lápis e de um bloco na mesa mais pró- xima. — Meu Deus... devia estar com os copos.

Abana a cabeça enquanto o diz; Toby nunca se enquadrou no tipo dos criadores de música que preferem trabalhar sob o efeito de qualquer coisa.

— Lembras-te de mais? — pergunta, virando as folhas do bloco. Ela recomeça a tocar, conduzindo-o por entre as notas. Ele não sabe, mas anda a trabalhar nesta composição há semanas. Bem, andam.

Juntos.

Ela sorri um pouco enquanto continua a tocar. É esta a relva por entre as urtigas. Um sítio seguro onde caminhar. Não pode deixar a sua marca, mas, se tiver cuidado, pode oferecer a marca a outra pessoa. Nada de concreto, claro, mas a inspiração raramente o é.

Agora Toby pegou na guitarra, equilibrou-a num dos joelhos e acompanha-a, murmurando para si mesmo: isto é bom, isto é diferente, isto é alguma coisa. Ela para de tocar, levanta-se.

— Tenho de ir.

A melodia desfaz-se nas cordas quando Toby olha para cima.

— O quê? Mas nem sequer te conheço.

— Exatamente diz ela, dirigindo-se ao quarto para ir buscar a roupa.

— Mas quero conhecer-te — diz Toby, pousando a guitarra e seguindo-a pelo apartamento, e este é o momento em que nada parece justo, a única vez em que sente uma vaga de frustração ameaçar abater-se sobre ela. Porque passou semanas a conhecê-lo. E ele passou horas a esquecer-se dela. — Espera.

Detesta esta parte. Não devia ter ficado. Devia ter desaparecido da vista bem como do coração, mas há sempre a esperança incómoda de que, dessa vez, será diferente, de que, dessa vez, eles se irão lembrar.

Eu lembro-me, diz-lhe a escuridão ao ouvido. Abana a cabeça, obrigando a voz a calar-se.

— Qual é a pressa? — pergunta Toby. — Deixa-me ao menos fazer-te o pequeno-almoço.

Mas está demasiado cansada para entrar tão cedo no jogo e, por isso, em vez disso, mente, diz que tem de fazer qualquer coisa e não se permite parar de andar, porque, se o fizer, sabe que não terá forças para recomeçar, e o ciclo continuará, com a relação a principiar de manhã e não à noite. Mas não será mais fácil quando chegar ao fim e, se tiver de recomeçar, é preferível que seja um encontro num bar do que o rescaldo da paixoneta de uma noite que não se recorda.

Seja como for, dentro de um instante, não terá importância.

— Jess, espera — diz Toby, agarrando-lhe a mão. Debate-se à procura das palavras certas e depois desiste, recomeça. — Vou dar um concerto hoje à noite, no Alloway. Podias vir. É no...

Claro que ela sabe onde é. Foi onde se encontraram da primeira vez e da quinta e da nona. E, quando acede em aparecer, o seu sorriso é deslumbrante. É sempre.

— Prometes? pergunta.

— Prometo.

— Encontramo-nos lá — diz ele, com as palavras cheias de esperança enquanto ela vira costas e sai porta fora. Olha para trás e diz:

— Entretanto, não te esqueças de mim.

Um velho hábito. Uma superstição. Um pedido. Toby abana a cabeça.

— Como poderia esquecer-te?

Ela sorri, como se fosse apenas uma piada.

Mas Addie sabe, enquanto se obriga a descer as escadas, que já está a acontecer — sabe que, no momento em que fechar a porta, terá desaparecido.

Addie Larue
Addie Larue créditos: Minotauro

II

Março é um mês extremamente inconstante.

É a costura entre o inverno e a primavera — embora costura sugira uma bainha regular, e março seja mais como uma linha grosseira de pontos cosidos por uma mão pouco firme, a oscilar descontroladamente entre rajadas de vento de janeiro e verdes de junho. Não se sabe o que se irá encontrar até se estar lá fora.

Estele costumava chamar a este período «dias inquietos», quando os deuses de sangue mais quente se começavam a agitar, e os frios começavam a acalmar. Quando os sonhadores ficavam mais propensos às más ideias, e os viajantes se perderiam com toda a certeza.

Addie sempre estivera predisposta para as duas coisas.

Na altura fazia sentido, o facto de ter nascido a 10 de março, precisamente nessa costura irregular, embora Addie não tenha vontade de festejar há muito tempo.

Durante vinte e três anos, receara o marcador do tempo, o que significava que estava a crescer, a ficar mais velha. E depois, durante séculos, um aniversário era algo bastante inútil, muito menos importante do que a noite em que renunciara à sua alma.

Nessa data, uma morte e um renascimento haviam-se combinado num só. Ainda assim, é o seu aniversário, e um aniversário merece um presente.

Para em frente a uma loja, com o seu reflexo no espelho, como um fantasma.

Na montra ampla, um manequim posa a meio, com a cabeça ligeiramente inclinada para um dos lados, como se estivesse a ouvir uma canção interior. O seu tronco comprido está envolvido numa camisola de riscas largas, um par de leggings pretas brilhantes a desaparecerem dentro de umas botas até aos joelhos. Tem uma mão virada para cima, com os dedos enganchados no colarinho do casaco que lhe pende por cima de um dos ombros. Enquanto Addie estuda o manequim, dá consigo a mimetizar a pose, mudando de posição, inclinando a cabeça. E talvez seja do dia ou da promessa de primavera no ar ou talvez lhe esteja simplesmente a apetecer algo novo.

Lá dentro, a loja cheira a velas por acender e a roupa por usar, e Addie passa os dedos pelo algodão e pela seda antes de encontrar a camisola de às riscas, que revela ser de caxemira. Atira-a por cima de um braço, juntamente com as leggings da montra. Sabe os seus tamanhos.

Não mudaram.

— Viva! — a funcionária afável é uma rapariga com 20 e poucos anos, como a própria Addie, embora uma seja real e esteja a envelhecer e a outra seja uma imagem presa em âmbar. — Posso arranjar-lhe uma cabine de provas?

— Oh, obrigada — responde, tirando um par de botas de uma prateleira. — Tenho tudo aquilo de que preciso. — Segue a rapariga até aos três compartimentos fechados com cortinas ao fundo da loja.

— Chame-me se precisar de ajuda diz a rapariga, virando costas antes de a cortina se fechar e de Addie ficar na companhia de um banco almofadado, de um espelho de corpo inteiro e da sua própria pessoa.

Descalça as botas dando um pontapé no ar e contorce-se, despindo o casaco e atirando-o para cima do banco. Alguns trocos chocalham no bolso ao aterrar no chão, e algo cai. Atinge o chão com um som abafado e rola pela cabine estreita, só parando quando chega ao rodapé.

É um anel.

Um pequeno círculo talhado em madeira de freixo. Um anel familiar, outrora amado, agora abominado.

Addie fica a olhar para aquilo por um instante. Os dedos contorcem-se, traiçoeiros, mas não estende o braço para ele, não o apanha, limita-se a virar costas ao pequeno círculo de madeira e continua a despir-se. Veste a camisola, enfia as leggings, puxa o fecho das botas. O manequim era mais magro, mais alto, mas Addie gosta de ver o modelo em si, gosta do calor da caxemira, do peso das leggings, do conforto suave do forro das botas.

Arranca as etiquetas com o preço, uma a uma, ignorando os zeros. Joyeux anniversaire, pensa, fitando o seu reflexo. Inclinando a cabeça, como se também ela estivesse a ouvir uma canção interior. A imagem de uma mulher moderna de Manhattan, mesmo que o rosto no espelho seja o mesmo que teve durante séculos. Addie deixa as roupas usadas espalhadas como uma sombra pelo chão da cabine de provas. O anel, como uma criança escarnecida, ao canto. A única coisa que apanha do chão é o casaco largado.

É suave, de cabedal preto e foi usado até ser quase seda, o tipo de coisas pelas quais as pessoas hoje pagam uma fortuna e a que chamam vintage. Foi a única coisa que Addie se recusou a deixar para trás e entregue às chamas em Nova Orleães, embora o cheiro dele lhe tenha ficado entranhado como fumo, com a sua marca deixada em tudo, para sempre. Não quer saber. Gosta do casaco.

Na altura era novo, mas agora está estragado, denuncia o desgaste de todas as formas que ela própria não consegue revelar. Fá-la pensar em Dorian Gray, com o tempo refletido em cabedal, ao invés de pele humana.

Addie sai do pequeno compartimento com cortina.

Do lado oposto da loja, a empregada mostra-se espantada, perturbada ao vê-la.

— Serviu tudo? pergunta, demasiado educada para admitir que não se lembra de ter deixado alguém ir até às traseiras da loja. Obrigada, serviço de atendimento ao cliente.

Addie abana a cabeça pesarosamente.

— Há dias em que temos o que merecemos — diz, dirigindo-se para a porta.

Quando a empregada finalmente encontra as peças de roupa, um fantasma de uma rapariga na cabine de prova, não se irá lembrar de quem era, e Addie terá desaparecido, da vista, da mente e da memória. Atira o casaco por cima do ombro, com um dedo enfiado no colarinho, e sai para fora, para o sol.


III

Villon-sur-Sarthe, França Verão de 1698

Adeline está sentada num banco, ao lado do pai.

O pai, que, para ela, é um mistério, um gigante solene que se sente fundamentalmente em casa quando está na sua oficina.

Por baixo dos pés de ambos, uma pilha de objetos de madeira desenha formas como pequenos corpos por baixo de um cobertor, e as rodas da carroça chocalham enquanto Maxime, a égua robusta, os arrasta estrada fora, para longe de casa.

Longe — longe —, uma palavra que faz disparar o seu pequeno coração.

Adeline tem 7 anos, tal como o número de sardas no rosto. É viva e pequena e rápida como um pardal e suplicou durante meses para ir com ele ao mercado. Suplicou até a mãe jurar que enlouqueceria, até o pai finalmente aceder. É marceneiro, o pai, e, três vezes por ano, faz a viagem ao longo do Sarthe, até à cidade de Le Mans.

E hoje ela vai com ele.

Hoje, pela primeira vez, Adeline saiu de Villon.

Olha para trás, para a mãe, de braços cruzados junto ao velho teixo ao fundo do caminho, e depois fazem a curva, e a mãe desaparece. A aldeia passa por eles, aqui as casas, ali os campos, aqui a igreja, ali as árvores, aqui Monsieur Berger a remexer na terra, ali Madame Therault a pendurar roupa na corda com a filha, Isabelle, sentada na relva, mesmo ao lado, a entrelaçar flores em coroas, concentrada com a língua entre os dentes. Quando Adeline contara a viagem à rapariga, Isabelle limitara-se a encolher os ombros e a dizer:

— Gosto disto aqui.

Como se não se pudesse gostar de um lugar e querer ver outro.

Agora olha para cima, para Adeline, e acena enquanto a carroça passa. Chegam ao fim da aldeia, o mais longe que alguma vez foi até então, e a carroça embate numa lomba, na estrada, e sacode-se, como se também tivesse transposto um limiar. Adeline sustém a respiração, esperando sentir uma corda apertá-la com força dentro de si, prendendo-a à povoação.

Mas não há corrente, não há guinada. A carroça continua a andar, e Adeline sente-se um pouco destemida e um pouco assustada quando se vira para trás para ver a imagem de Villon a encolher, aldeia que era, até esse momento, todo o seu mundo e que agora é apenas uma parte, cada vez mais pequena, a cada passo da égua, até esse lugarejo se parecer com uma das estatuetas do pai, suficientemente pequeno para caber numa mão calosa.

"É Desta Que Leio Isto"

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Le Mans fica a um dia de caminho, com o trajeto aligeirado pelo cesto da mãe e pela companhia do pai — o pão e o queijo de um para lhe encher a barriga, o riso fácil e os ombros largos do outro a criarem sombra para Adeline, sob o sol de verão.

Em casa é um homem calado, absorto no seu trabalho, mas na estrada começa a abrir-se, a revelar-se, a falar.

E, quando fala, é para lhe contar histórias.

As histórias que acumulou do mesmo modo que se acumula lenha.

— Il était une fois — dirá ele, antes de resvalar para histórias de palácios e de reis, de ouro e de pompa, de bailes de máscaras e de cida- des cheias de esplendor. Era uma vez. A história começa assim.

Não se lembrará das histórias em si, mas recordará a forma como ele as conta; as palavras parecem macias como pedras de rio, e pergunta-se se conta estas histórias quando está sozinho, se continua, falando para Maxime no seu jeito fácil e delicado. Pergunta-se se conta histórias à madeira enquanto a trabalha. Ou se serão apenas para ela.

Adeline gostava de as poder escrever.

Mais tarde, o pai ensiná-la-á a escrever. A mãe terá um ataque quando descobrir e acusá-lo-á de lhe dar outro pretexto para não fazer nada, para desperdiçar as horas do dia, mas, mesmo assim, Adeline irá esgueirar-se para a oficina, e ele deixá-la-á sentar-se ali a treinar a escrita do nome na poeira fina que parece cobrir sempre o chão daquele espaço.

Mas hoje pode apenas ouvir.

O campo passa em torno de ambos, uma imagem atropelada de um mundo que já conhece. Os campos são campos, tal como os seus, as árvores dispostas aproximadamente pela mesma ordem, e, quando chegam de facto a uma aldeia, trata-se de um reflexo chapado de Villon, e Adeline começa a perguntar-se se o mundo fora será tão aborrecido como o seu.

E então as muralhas de Le Mans surgem no horizonte.

Cumeeiras de pedra erguendo-se ao longe, uma coluna de vários padrões ao longo das colinas. Tem cem vezes a dimensão de Villon — ou, pelo menos, na sua memória, é tão grande como isso —, e Adeline retém a respiração quando passam pelos portões e entram na cidade protegida.

Para deles, um labirinto de ruas apinhadas. O pai guia a carroça por entre casas de pedra bem apertadas, até que a via estreita se abre para uma praça.

Claro que em Villon existe uma praça, mas não é maior do que o seu próprio pátio. Esta é um espaço gigantesco, com o chão escondido sob tantos pés e carroças e barracas. E enquanto o pai conduz Maxime até parar a carroça, Adeline fica no banquinho a admirar o mercado, o cheiro intenso a pão e açúcar no ar, e pessoas, pessoas, para onde quer que olhe. Nunca viu tantas, mais ainda, pessoas que não conhece. Formam um mar de estranhos, rostos desconhecidos em roupas desconhecidas, com vozes desconhecidas, a gritarem palavras desconhecidas. É como se as portas do seu mundo tivessem sido abertas de par em par, com muitas divisões a serem acrescentadas a uma casa que pensava ser familiar.

O pai encosta-se à carroça e fala com quem quer que passe por eles, e ao mesmo tempo as suas mãos percorrem um bloco de madeira, com uma faca pequena aninhada numa das palmas. Raspa pela superfície com o à-vontade firme de alguém a descascar uma maçã, com as lascas a caírem-lhe por entre os dedos. Adeline sempre gostou de o ver trabalhar, de ver as figuras ganharem forma, como se sempre ali tivessem estado, mas escondidas, caroços no centro de um pêssego.

A arte do pai é bela, a madeira é macia, mas as suas mãos ásperas; delicada a arte, grande o pai.

E, confundidos entre tigelas e taças, enfiados entre as ferramentas do seu ofício, estão brinquedos para vender e figuras de madeira peque- nas como pãezinhos — um cavalo, um rapaz, uma casa, um pássaro.

Adeline cresceu rodeada por essas bagatelas, mas o seu preferido não é nem animal nem humano.

É um anel.

Usa-o num fio de cabedal à volta do pescoço, um aro delicado, em madeira de freixo, suave como uma pedra polida. Talhou-o quando ela nasceu, tendo-o feito para a rapariga que um dia seria, e Adeline usa-o como um talismã, um amuleto, uma chave. A mão de vez em quando toca-lhe, com o polegar a passar pela sua superfície, tal como os dedos da mãe percorrem um terço.

Agora agarra-o, uma âncora na tempestade, enquanto se empoleira na parte de trás da carroça e observa tudo. Desta perspetiva, é quase suficientemente alta para ver os edifícios que ficam adiante. Alonga-se nas pontas dos pés, perguntando-se onde chegarão, até que um cavalo próximo lhes sacode a carroça ao passar e ela quase cai. A mão do pai fecha-se em torno do seu braço, puxando-a de volta à segurança da sua proximidade.

Ao fim do dia, as peças de madeira desapareceram, e o pai de Adeline dá-lhe uma moeda de cobre e diz que pode comprar algo de que goste. Anda de banca em banca, observando os pastéis e os bolos, os chapéus e os vestidos, e também as bonecas, mas acaba por se decidir por um caderno, com folhas de papel suave e costura de cera. É a brancura do papel que a deixa entusiasmada, a ideia de que poderá preencher o espaço com tudo o que quiser.

Não tinha dinheiro para pagar os lápis que faziam conjunto com ele, mas o pai usa uma segunda moeda para comprar um feixe de pauzinhos pretos e explica que são de carvão, mostra-lhe como encostar a ponta escura no papel, esborratar a linha para transformar os contornos definidos em sombra. Com alguns gestos rápidos, desenha um pássaro no canto da página, e ela passa a próxima hora a copiar as linhas, muito mais interessantes do que as letras que ele escreveu por baixo.

O pai arruma as coisas na carroça, enquanto o dia dá lugar ao crepúsculo.

Passarão a noite numa estalagem local, e, pela primeira vez na vida, Adeline dormirá numa cama diferente e ficará atenta a sons e cheiros estranhos, e haverá um momento, tão breve quanto um bocejo, em que não saberá onde está, e o seu coração baterá mais depressa — primeiro de medo e depois de outra coisa. Algo para o qual ainda não tem palavras.

E quando tiverem regressado a casa, a Villon, já será uma versão diferente de si. Um quarto com as janelas escancaradas, ansioso por deixar entrar o ar fresco, a luz do sol, a primavera.


Villon-sur-Sarthe, França Outono de 1703

IV

É um lugar católico, Villon. Pelo menos na aparência.

Há uma igreja no centro da aldeia, um edifício solene de pedra onde toda a gente se dirige para salvar a sua alma. A mãe e o pai de Adeline ajoelham-se duas vezes por semana, persignam-se, dizem as suas orações e falam de Deus.

Adeline tem agora 12 anos, por isso também o faz. Mas reza do mesmo modo que o pai vira os pães de forma para os deixar direitos e que a mãe lambe o polegar para apanhar grãos de sal dispersos.

Por uma questão de hábito, de forma mais automática do que a fé. A igreja da aldeia não é nova, tal como Deus não é novo, mas Adeline acabou por pensar Nele dessa forma, graças a Estele, que diz que o maior perigo da mudança é permitir que o novo substitua o velho.

Estele, que é de toda a gente e de ninguém e de si mesma.

Estele, que cresceu como uma árvore no centro da aldeia, perto do rio, e que certamente nunca foi nova, que brotou do próprio solo com mãos nodosas e pele lenhosa e raízes suficientemente profundas para alcançarem o seu próprio poço escondido.

Estele, que acredita que o novo Deus é algo em filigrana. Pensa que esse Deus pertence às cidades e aos reis e que está sentado por cima de Paris, numa almofada dourada, e que não tem tempo para camponeses, que não tem lugar entre a madeira e a pedra e a água do rio.

O pai de Adeline acha que Estele é louca.

A mãe diz que a mulher está condenada ao Inferno, e uma vez, quando Adeline lho repetiu, Estele riu-se, com o seu riso de folha seca, e disse que esse lugar não existia, apenas o chão negro e frio e a promessa de sono.

— Então e o Paraíso? perguntou Adeline.

— O Paraíso é um sítio agradável à sombra, uma árvore ampla sobre os meus ossos.

Aos 12 anos, Adeline pergunta-se a que deus deveria rezar para fazer com que o pai mude de ideias. Carregou a carroça com peças destinadas a Le Mans, aparelhou Maxime, mas, pela primeira vez em seis anos, não vai com ele.

Prometeu trazer-lhe um novo caderno de papel, mais material para desenhar. Mas ambos sabem que ela preferia ir a receber os presentes, preferia ver o mundo fora a ter outro bloco onde desenhar. Está a ficar sem modelos, memorizou os contornos cansados da aldeia e todos os rostos familiares que esta inclui.

Mas, este ano, a mãe decidiu que não é apropriado, que não fica bem ir ao mercado, mesmo que Adeline saiba que ainda consegue ficar bem no banco de madeira ao lado do pai.

A mãe desejava que ela fosse mais parecida com Isabelle Therault, doce, bondosa e com uma absoluta falta de curiosidade, satisfeita por poder manter os olhos descidos sobre a malha em vez de olhar para cima, para as nuvens, em vez de se perguntar o que fica para da curva, para lá da encosta.

Mas Adeline não sabe ser como Isabelle. Não quer ser como Isabelle.

quer ir a Le Mans e, uma vez lá, observar as pessoas e ver todos os ofícios e provar a comida e descobrir coisas de que ainda não ouviu falar.

— Por favor diz, enquanto o pai sobe para a carroça. Devia ter-se enfiado entre as peças de madeira, bem escondida por baixo da lona. Mas agora é demasiado tarde, e, quando Adeline estende o braço para a roda, a mãe agarra-a pelo pulso e puxa-a para trás.

— Chega — diz.

O pai olha para elas e depois desvia o olhar. A carroça arranca, e, quando Adeline tenta libertar-se e correr atrás dela, a mão da mãe aparece de novo, desta vez para lhe encontrar o rosto.

As lágrimas enchem-lhe os olhos, um rosa intenso antes de a nódoa negra começar a nascer, e a voz da mãe, ao aterrar, é como um segundo golpe.

— Já não és uma criança.

E Adeline compreende — e, ao mesmo tempo, não compreende, de todo —, sente-se como se tivesse sido castigada por simplesmente ter crescido. Está tão zangada nesse momento que quer fugir. Quer atirar a costura da mãe para a lareira e partir todas as esculturas inacabadas do pai, na oficina.

Ao invés, a carroça descrever a curva e desaparecer por entre as árvores, com uma mão fechada sobre o anel do pai. Adeline espera que a mãe a solte e que a mande ir tratar dos seus afazeres.

E então vai ter com Estele.

Estele, que ainda venera os velhos deuses.

Adeline devia ter 5 ou 6 anos da primeira vez que viu a mulher mergulhar a sua taça de pedra no rio. Era um objeto bonito, com um padrão denso como renda, dos lados, e a idosa limitou-se a deixá-la cair, apreciando o chapinhar. Tinha os olhos fechados e os lábios moviam-se, e quando Adeline intercetou a velha — já era velha, sempre fora velha — a caminho de casa, Estele disse que estava a rezar aos deuses.

— Para quê?

— O bebé da Marie não está a crescer bem disse. Pedi aos deuses do rio que fizessem as coisas correr naturalmente. São bons nisso.

— Mas porque lhes deu a sua taça?

— Porque os deuses são gananciosos, Addie.

Addie. Uma alcunha carinhosa, de que a mãe escarnecia por parecer nome de rapaz. Um nome que o pai usava, mas apenas quando estavam sozinhos. Um nome que repicava como um sino nos seus ossos. Um nome que lhe assentava muito mais do que Adeline.

Agora, encontra Estele no jardim, emaranhada por entre as gavinhas selvagens de abóbora, o caule espinhoso de um arbusto de amoras, dobrada, muito baixo, como um braço de tear.

— Addie. A idosa diz o seu nome sem olhar para cima.

É outono, e o solo está atulhado dos caroços de frutos que não amadureceram como deviam. Addie toca-lhes com a ponta do sapato.

— Como fala com eles? — perguntou. — Com os velhos deuses. Chama-os pelo nome?

Estele endireita-se, com as articulações a estalarem como galhos secos. Se foi surpreendida pela pergunta, não o revela.

— Eles não têm nomes.

— Existe algum feitiço?

Estele olha-a de forma penetrante.

— Os feitiços são para as bruxas, e as bruxas muitas vezes são queimadas.

— Então como reza?

— Com dádivas e louvores, e, mesmo assim, os deuses são volúveis. Não são obrigados a responder.

— O que se faz então?

— Insiste-se.

Morde o interior da bochecha.

— Quantos deuses existem, Estele?

— Tantos quantas perguntas tiveres responde a idosa, mas na sua voz não há escárnio, e Addie espera que ela acabe, sustém a respiração até ver o sinal que denuncia o suavizar de Estele. É como esperar à porta de um vizinho depois de se ter batido, quando se sabe que está gente em casa. Ouve os passos, o arranhar surdo do trinco, e sabe que este irá ceder.

Estele abre-se num suspiro.

— Os velhos deuses estão por toda a parte — diz. — Nadam no rio e crescem no campo e cantam no bosque. Estão no sol que banha o trigo e sob as árvores jovens, na primavera, e nas gavinhas que crescem pela parede daquela igreja de pedra. Reúnem-se nos limites do dia, de madrugada e sob o crepúsculo.

Os olhos de Addie semicerraram-se.

— Ensinas-me? A chamá-los?

A mulher suspira, sabendo que Adeline LaRue não é apenas esperta, mas também teimosa. Começa a percorrer o jardim com dificuldade até casa, e a rapariga segue-a, receando que, se Estele chegar à porta antes de responder, a possa fechar sobre aquela conversa. Mas Estele olha para trás, de olhos cortantes no seu rosto enrugado.

— Existem regras.

Adeline detesta regras, mas sabe que por vezes são necessárias.

— Como por exemplo?

— Tens de te prostrar perante eles. Tens de lhes levar uma dádiva. Algo que seja precioso para ti. E tens de ter cuidado com aquilo que pedes.

Adeline reflete.

— Só isso?

O rosto de Estele ensombrece.

— Os velhos deuses podem ser poderosos, mas não são nem clementes nem compassivos. São volúveis, inconstantes como o luar sobre a água ou as sombras numa tempestade. Se insistires em invocá-los, atenta bem nisto: tens de ter cuidado com o que pedires, prontificando-te a pagar o preço. E, por mais desesperada ou atribulada que seja a situação, nunca rezes aos deuses que respondem depois de escurecer.

Dois dias mais tarde, quando o pai de Adeline regressa, vem com um bloco de papel suave novo e uma série de lápis pretos de grafite, presos com um cordel, e a primeira coisa que Adeline faz é escolher o melhor e espetá-lo no chão, por trás do jardim, e rezar para que, da próxima vez que o pai vá ao mercado, possa ir com ele.

Mas, se os deuses a ouviram, não responderam.

Nunca mais irá ao mercado.