Era uma vez na memória, nos confins do mar Mediterrâneo, uma ilha tão bela e azul, que muitos viandantes, peregrinos, cruzados e mercadores que se apaixonaram por ela nunca de lá quiseram sair ou tentaram rebocá-la com cordas de cânhamo até aos seus países de origem.
Lendas, porventura.
Mas as lendas existem para nos contar o que a História esqueceu.
Já se passaram muitos anos desde que deixei aquele lugar a bordo de um avião, dentro de uma mala de couro preto macio, para não mais regressar. Desde então, adotei outra terra, Inglaterra, onde cresci e me desenvolvi, mas não se passa um único dia em que não deseje voltar. Lar. Terra natal.
Ainda deve estar onde a deixei, elevando-se e afundando com as ondas que rebentam e espumam nas suas costas escarpadas. Na interceção de três continentes — Europa, África, Ásia — e do Levante, essa vasta e impenetrável região, desaparecida por completo dos mapas atuais.
Um mapa é uma representação bidimensional com símbolos arbitrários e linhas incisas que decidem quem será nosso inimigo e quem será nosso amigo, quem merece o nosso amor e quem merece o nosso ódio e quem merece a nossa mera indiferença.
Cartografia é outro nome para as histórias contadas pelos vencedores.
Para as histórias contadas pelos vencidos, não há nome.
Eis como me recordo dela: praias douradas, águas turquesa, céus luminosos. Todos os anos as tartarugas-marinhas vinham à costa pôr os ovos na areia fina. A brisa de final de tarde trazia consigo as fragrâncias de gardénia, cíclame, lavanda, madressilva. Ramos entrançados de glicínias trepavam pelas paredes caiadas, almejando atingir as nuvens, esperançosas como só os sonhadores. Quando a noite nos beijava a pele, como sempre fazia, sentia-se o perfume do jasmim no seu hálito. A Lua, aqui mais próxima da Terra, suspendia-se, luminosa e amável, acima dos telhados, lançando um brilho vívido sobre as vielas estreitas e as ruas empedradas. Contudo, as sombras encontravam um modo de se insinuarem através da luz. Os murmúrios de desconfiança e conspiração alastravam no escuro. De facto, a ilha estava dividida em dois: o Norte e o Sul. Em cada parte prevalecia uma língua diferente, uma escrita diferente, uma memória diferente, e quando os ilhéus rezavam raramente o faziam ao mesmo deus.
A capital encontrava-se separada por uma divisória que a trespassava como uma punhalada no coração. Ao longo da linha de demarcação — a fronteira — havia casas arruinadas crivadas de buracos de balas, pátios desertos desfigurados por rebentamentos de granadas, lojas entaipadas falidas, portões ornamentados tortos, pendentes dos gonzos partidos, automóveis luxuosos, de outra era, a enferrujar sob camadas de pó... As estradas estavam intransitáveis, com rolos de arame farpado, pilhas de sacas de areia, barricas cheias de betão, valas antitanque e torres de vigia. As ruas terminavam de forma abrupta, como pensamentos por concluir, sentimentos por resolver.
Os soldados montavam guarda com metralhadoras, quando não faziam as rondas — homens jovens, entediados e solitários de vários pontos do mundo que pouco sabiam acerca da ilha e da sua história complexa até se verem destacados para aquele ambiente estranho. As paredes estavam cobertas de avisos oficiais, em cores garridas e letras maiúsculas:
PROIBIDA A PASSAGEM ALÉM DESTE PONTO
ÁREA RESTRITA, MANTER A DISTÂNCIA!
PROIBIDO FOTOGRAFAR E FILMAR
Depois, mais adiante na barricada, um acrescento ilícito a giz, garatujado numa barrica por um transeunte:
BEM-VINDOS À TERRA DE NINGUÉM
A divisória que cortava Chipre de uma extremidade à outra, uma zona-tampão patrulhada pelas tropas das Nações Unidas, tinha cerca de cento e oitenta quilómetros de comprimento e uma largura que ia de seis quilómetros e meio em certos locais até poucos metros noutros. Atravessava todo o género de paisagens — aldeias abandonadas, terras remotas costeiras, pântanos, terrenos incultos, pinhais, planícies férteis, minas de cobre e estações arqueológicas —, descrevendo meandros ao longo do trajeto como o fantasma de um qualquer antigo rio. Mas era aqui, no centro e em torno da capital, que se tornava mais visível, tangível e, por isso, inquietante.
Nicósia, a única capital dividida de todo o mundo.
Quase parecia uma coisa positiva, quando dita assim — uma certa qualidade especial, senão única, um certo sentido de desafio da gravidade, como o único grão de areia a mover-se para cima numa ampulheta acabada de virar ao contrário. Todavia, na realidade, Nicósia não era exceção, mas um nome mais adicionado à lista dos locais segregados e comunidades separadas, aqueles consignados à História e aqueles ainda por vir. Neste momento, contudo, destacava-se como uma peculiaridade. A última cidade dividida da Europa.
A minha cidade natal.
Há muitas coisas que uma fronteira — ainda que bem definida e guardada como esta era — não consegue impedir de cruzar. Os ventos etésios, por exemplo, que, apesar de docemente designados meltemi ou meltem, sopram com força. As borboletas, os gafanhotos e os lagartos. Também os caracóis, por aflitivamente lentos que sejam. Por vezes, o balão de aniversário que se escape das mãos de uma criança e se eleve no céu, passando para o outro lado — território inimigo.
E, claro, as aves. Garças-azuis, verdilhões-de-cabeça-preta, tartaranhões-apívoros, alvéolas-de-cabeça-amarela, felosas-musicais, picanços-núbios e, os meus prediletos, papa-figos-reais. Vindos do hemisfério norte e viajando sobretudo durante a noite, com a escuridão a reunir-se nas pontas das suas asas e desenhando círculos vermelhos em torno dos seus olhos, param aqui, a meio da longa travessia, antes de prosseguirem para África. Para eles, a ilha é um local de repouso, uma lacuna na história, um interregno.
Há um monte em Nicósia onde aves de todas as plumagens vêm procurar comida e alimentar-se. Está eriçado de silvas altas, espinheiros e moitas de urze. No meio desta vegetação densa, existe um velho poço com uma roldana que range ao menor movimento e um balde de metal atado a uma corda, esgarçada e coberta de algas devido ao pouco uso. Lá no fundo, está sempre negro como breu e um frio de rachar, mesmo quando o sol inclemente do meio-dia bate diretamente sobre a cabeça. O poço é uma boca faminta, a aguardar a refeição seguinte. Consome todo o raio de luz, todo o vestígio de calor, aprisionando cada partícula na sua goela ovalada de pedra.
Se alguma vez se encontrar ali perto e, levado pela curiosidade ou pelo instinto, se debruçar sobre o rebordo e espreitar para o fundo, esperando que os seus olhos se habituem à obscuridade, poderá vislumbrar um brilho lá em baixo, como o lampejo fugaz das escamas de um peixe antes de este desaparecer de novo na água. Não se deixe iludir. Não há peixes lá em baixo. Nem serpentes. Nem escorpiões. Nem aranhas suspensas de fios sedosos. O brilho não provém de um ser vivo, mas de um antigo relógio de bolso — ouro de dezoito carates com embutidos de madrepérola, onde estão gravados os versos de um poema:
Lá chegar é o teu destino último,
Mas não te apresses nunca na viagem...
E no verso duas letras, ou, mais precisamente, a mesma letra escrita duas vezes:
Y & Y
O poço tem uma profundidade de dez metros e uma largura de pouco mais de um metro. Foi construído com silhares ligeiramente curvos que descem em voltas horizontais idênticas até às águas silenciosas e turvas do fundo. Em baixo encontram-se aprisionados dois homens. São os proprietários de uma taverna popular. Ambos de constituição delgada e altura mediana, com grandes orelhas protuberantes que costumavam ser motivo de chacota. Ambos nados e criados nesta ilha, na casa dos quarenta quando foram sequestrados, espancados e mortos. Foram lançados para o poço depois de serem acorrentados primeiro um ao outro e depois a uma lata de três litros de azeite cheia de betão, para garantir que nunca voltariam à superfície. O relógio de bolso que um deles usava no dia do rapto parou quando faltavam exatamente oito minutos para a meia-noite.
O tempo é um canto de ave e, como qualquer canto de ave, pode manter-se cativo. Pode aprisionar-se numa gaiola e durante um período maior do que se julgaria possível. Mas o tempo não pode ser dominado perpetuamente.
Nenhum cativeiro é eterno.
Algum dia a água vai corroer o metal e as cadeias abrir-se-ão, e o duro coração de betão amolecerá como mesmo os corações mais empedernidos tendem a fazer, com o passar dos anos. Só então os dois cadáveres, por fim livres, nadarão na direção da lasca de céu sobre as suas cabeças, reluzente à luz refratada do sol; ascenderão até àquele azul bendito, primeiro devagar, depois depressa e de modo frenético, como caçadores de pérolas desesperados por ar.
Mais cedo ou mais tarde, este velho e arruinado poço naquela bela e solitária ilha nos confins do mar Mediterrâneo vai abater-se sobre si mesmo e o seu segredo virá à superfície, como é fatal que aconteça a todos os segredos, no final.
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