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Dos acontecimentos que registo nestas páginas, não fui, senão, uma das muitas testemunhas, mais próxima do que a multidão de espectadores, mas igualmente impotente. O meu nome, já sei, foi mencionado nos livros, e, em tempos, tive orgulho nisso. Agora não. A mosca da fábula podia exultar porque a carruagem tinha chegado bem; de que se teria gabado se a viagem tivesse terminado num precipício? Era esse o meu papel, na verdade, o de um volatim supérfluo e azarado. Pelo menos, não fui enganado nem cúmplice.

Nunca corri atrás de aventuras, mas, por vezes, as aventuras levaram-me a sair. Se tivesse podido escolher, tê-la-ia confinado ao único universo que me fascina desde a infância e que, aos 83 anos, devidamente celebrados, continua a fascinar-me até hoje: os insetos, esses notáveis liliputianos, súmula de elegância, habilidade e imemorial sabedoria.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia. Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar a leitura e a discussão à volta dos livros.

Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Tenho o hábito de dizer aos meus interlocutores leigos que não sou, de modo algum, um defensor dos insetos. Podemos, agora, dar- -nos ao luxo de ser magnânimos com os animais ditos superiores, que nós, humanos, escravizámos desde cedo e chacinámos em abundân- cia, e sobre os quais triunfámos de uma vez por todas. Não com os insetos. Entre nós e eles, a luta prossegue, quotidiana, impiedosa, e não há razão para acreditar que a Humanidade sairá vitoriosa. Os insetos já existiam na Terra muito antes de nós, continuarão a existir depois de nós e, quando explorarmos planetas distantes, encontraremos os seus semelhantes e não os nossos. E isso, penso, será um conforto para nós.

Como já referi, não sou defensor dos insetos. Mas sou, certamente, um dos seus tenazes admiradores. Como poderia não o ser? Que criatura alguma vez destilou materiais mais nobres do que a seda, o mel ou o maná do Sinai? Desde sempre, o Homem tentou copiar a textura e o sabor destes produtos dos insetos. E o que dizer do voo da mosca «comum»? Quantos séculos mais serão necessários para a imitar- mos? Para não falar da metamorfose de uma «miserável» larva.
Podia desfiar exemplos até ao infinito. Mas esse não é o meu propósito. As páginas que se seguem não são sobre a minha paixão por insetos, mas antes sobre os únicos momentos da minha vida em que me interessei prioritariamente pelos seres humanos.

Quem me ouça facilmente me confundirá com um urso misantropo. Isso não seria verdade. Os meus alunos têm as melhores recordações de mim; os meus colegas disseram poucas coisas más a meu respeito; por vezes, fui sociável, sem excesso; até cultivei duas ou três amizades em pousio. Acima de tudo, havia a Clarence e, depois, a Béatrice; mas voltarei a falar delas mais tarde.

Digamos, para resumir sem mentir, que raramente suportei o burburinho da miséria quotidiana, mas sempre escutei com ouvidos frescos os grandes debates do meu tempo.

Apreciei, até ao fim, o século da minha juventude, os seus entusiasmos ingénuos, os seus ingénuos medos perante a aproximação do milénio, uma e outra vez o átomo, e outra vez a epidemia, depois, aquelas espadas de Dâmocles sobre os polos. Foi um grande século, a meu ver o maior, talvez o último grande, o século de todas as crises e de todos os problemas; hoje, no século da minha velhice, só se fala de soluções. Sempre pensei que o Céu inventou os problemas, e o Inferno, as soluções. Os problemas abalam-nos, empurram-nos, desconcertam-nos, obrigam-nos a sair de nós próprios. Desequilíbrio salutar: é pelos problemas que todas as espécies evoluem; é pelas soluções que congelam e se extinguem. Será por acaso que o pior crime de que há memória se chama «solução» e «final»?

E tudo o que observo agora à minha volta, este planeta definhado, lúgubre, obscurecido, esta explosão de ódios, esta universal frieza que envolve tudo, como uma nova era glacial... não será isto fruto de uma genial «solução»?

No entanto, o fim do milénio tinha sido grandioso. Uma embriaguez nobre, contagiante, devastadora, messiânica. Todos acreditámos que a Graça chegaria em breve a toda a Terra, que todas as nações poderiam em breve viver em paz, liberdade e abundância. Doravante, a História já não seria escrita por generais, ideólogos e déspotas, mas por astrofísicos e biólogos. Uma humanidade saciada não teria outros heróis senão os inventores e os animadores.

Eu próprio alimentei durante muito tempo esta esperança. Como todos os da minha geração, teria encolhido os ombros se alguém pre- visse que tantos progressos morais e técnicos se revelariam reversíveis, que tantos canais de troca se fechariam, que tantos muros poderiam ressurgir, tudo por causa de um mal omnipresente, mas insuspeito.

Porque odioso embuste do destino o nosso sonho foi desmantelado? Como é que chegámos aqui? Porque é que fui obrigado a fugir da cidade e de toda a vida civil? O que gostaria de contar aqui, o mais fielmente, o mais escrupulosamente possível, é o lento desabrochar do flagelo que nos envolve desde os primeiros anos do novo século, arrastando-nos para esta regressão sem precedentes, parece-me, tanto na sua dimensão como na sua natureza.

Apesar do terror reinante, esforçar-me-ei por escrever serenamente até ao fim. Neste momento, sinto-me seguro no meu refúgio de alta montanha, e a minha mão quase nem treme sobre este velho reportório ainda virgem, ao qual vou confiar os meus fragmentos de verdade. Encontro mesmo, ao evocar certas imagens do passado, uma alegria em que me comprazo, a ponto de esquecer, por momentos, o drama que se supõe devo contar. Não é uma das virtudes da escrita a capacidade de pôr na mesma página horizontal o trivial e o extraordinário? Tudo num livro adquire a insignificante espessura de uma tinta esmagada.

Contudo, chega de preâmbulos! Prometi a mim próprio que me cingiria aos factos.

B

Foi no Cairo que tudo começou, numa estudiosa semana de fevereiro, há quarenta e quatro anos, até anotei o dia e a hora. Mas para quê fazer malabarismos com datas, basta dizer que foi por volta do ano com três zeros. Escrevi «começou»? Começou para mim, quero dizer; os historiadores fazem remontar a génese do drama a um passado muito mais longínquo. Mas aqui estou a falar estritamente do ponto de vista da testemunha: aos meus olhos, a coisa nasceu quando a encontrei pela primeira vez.

Esta introdução pode levar a pensar que pertenço à raça dos grandes viajantes, um encontro nas margens do Nilo, uma escapadela ao Amazonas ou ao Bramaputra... Muito pelo contrário. Passei a maior parte da minha vida à secretária, viajando entre o meu jardim e o meu laboratório. E não me arrependo, aliás, de nada; cada vez que me colava à ocular do microscópio, era como se embarcasse.

Livro: "O Século Primeiro Depois de Béatrice"

Autor: Amin Maalouf

Editora: Marcador

Data de Lançamento: 8 de janeiro de 2025

Preço: € 15,90

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E quando entrava num avião a sério, era quase sempre para ver de perto um inseto. Esta viagem em particular, ao Egito, era sobre o escaravelho. Mas não estava habituado a essa ideia. Normalmente, quando participava num seminário, o tema era a agricultura ou as epidemias. Os convidados de honra eram a filoxera ou a Propillia japonica, o anófele ou a mosca tsé-tsé, para variações entediantes de um tema tão antigo como a Pré-História: «os nossos inimigos, as feras». O encontro do Cairo prometia ser diferente. A carta de convite falava de, e cito, «apreciar o lugar do escaravelho na civilização do Antigo Egito: arte, religião, mitologia, lendas».

Acho que não estarei a ensinar nada a ninguém ao lembrar que, na época faraónica, o escaravelho era venerado como uma divindade. Em particular, a espécie conhecida, justamente, como «escaravelho sagrado», Scarabeus sacer, mas, de modo geral, todas as variedades deste valente inseto. Acreditava-se que era dotado de virtudes mágicas e o repositório dos grandes mistérios da vida. Ao longo dos meus anos de estudante, todos os professores me disseram a mesma coisa, cada um à sua maneira, e assim que tive o meu próprio laboratório no Museu de História Natural, os meus alunos também tiveram direito ao verso anual, ditirâmbico e apaixonado, sobre o escaravelho. Podem imaginar o que representa para um especialista em coleópteros saber que Ramsés II pode ter-se proster- nado perante um destes bicharocos devoradores de esterco? O culto do escaravelho estendeu-se mesmo além das fronteiras do Egito, à Grécia, à Fenícia e à Mesopotâmia; os legionários romanos começaram a cinzelar a silhueta de um escaravelho no punho das suas espadas, e os etruscos esculpiram delicadas joias de ametista na sua efígie.

Para a minha disciplina, repito, o escaravelho é uma glória, um título de nobreza. Ia dizer um antepassado venerável. E, naturalmente, fiz algumas leituras, algumas pesquisas sobre o assunto, não podia pô-lo na mesma categoria que as baratas do sótão, nem todos os insetos nas- cem no mesmo esterco.

E, no entanto, por mais aprofundada que tenha sido a minha investigação, senti-me imediatamente deslocado no seminário do Cairo. Entre os vinte e cinco participantes de oito países, só eu era incapaz de ler hieróglifos, incapaz de enumerar os Tutmés ou os Amenófis, e só eu ignorava, além disso, o copta saídico e o copta subaquímico — nem pensem em perguntar-me o que é isto, nunca mais ouvi esta palavra, mas acho que a transcrevi corretamente.

Como se tivessem conspirado para me humilhar, todos os confe- rencistas tinham colorido os seus discursos com expressões faraónicas aparentemente muito divertidas, que nenhum deles, como é óbvio, se lembrou de traduzir — não se faz no seu meio e seria indecoroso pôr assim em dúvida a erudição dos ouvintes.