VAMOS COM CALMA
Pouco depois de começarmos a namorar, ele veio viver para Lisboa. Arrendou um pequeno quarto, numa casa escura que partilhava com outro rapaz. O prédio era velho, a porta de casa abria-se com um empurrão forte, entrava-se diretamente para uma pequena cozinha que não devia ser limpa há anos. O branco das paredes estava coberto por sujidade acumulada, o chão de madeira gasto escondido sob pesados tapetes de pó, a casa de banho exígua e duas portas que davam para os quartos. Não havia sala nem corredor e, ao todo, o apartamento deveria ter uns 30 metros quadrados, se tanto.
A porta de um dos quartos abriu-se e vi sair um rapaz de uns 30 anos, bem como um cheiro nauseabundo a álcool.
– Bem-vindos – saudou, com um sorriso estremunhado.
Entrei no quarto e abri a janela para dissipar o cheiro a humidade. Do outro lado da rua, na parede de um prédio esquecido, por entre carros e elétricos que passavam, li: «A puta da minha vida.»
Imaginei que pudesse ser o desabafo de um sem-abrigo. Fiquei hipnotizada com a desgraça que acontecia a cinco metros de mim, nas ruas de Lisboa, nas tendas rasgadas e nas ruínas do que outrora tinham sido quartos de meninas bem-comportadas.
Acompanhei a fachada até terminar rente a um prédio acabado de reconstruir, finíssimo, sem graffiti, e com um belo parque automóvel à entrada.
Recolhi a cabeça, mas mantive a janela do quarto aberta, apesar do trânsito.
– Porque escolheste esta casa?
– Fica perto da tua.
Arregaçou as mangas e atirou-se às limpezas. Com o balde repleto de detergentes e a esfregona em punho, lavou, limpou, deitou fora o lixo e tratou de meter a vida inteira num quarto minúsculo.
Conseguiu; conseguia tudo aquilo a que se propunha.
– Basta meter uma coisa na cabeça...
Disse-mo tantas vezes. Admirava-lhe a determinação, era algo que não existia em mim. Admirava a coragem de ter vindo para Lisboa à procura de trabalho mesmo que isso implicasse deixar o filho para trás. Também questionava a facilidade e a rapidez com que tudo acontecera. Mas obrigava-me a afastar esses pensamentos, castigando-me por plantar dúvidas onde não existiam.
Foda-se, que burra.
*
A casa que escolheu era um buraco e passava a maior parte do tempo na minha. Mas não tinha lógica pensarmos viver juntos, a relação estava a começar, estávamos a conhecer-nos.
– Podemos ir com calma?
– Mas eu adoro-te.
– Temos todo o tempo do mundo.
– Estás com medo?
A vontade dele empurrou a minha pelo desfiladeiro, atropelou-a. A pressão para nos juntarmos, apaixonados como estávamos, começou a ser demasiada. Quanto mais lhe mostrava o meu amor, forte e determinado, mais ficava feliz e realizado. Aproveitava para sublinhar o facto de ter mudado a vida para estar comigo.
– Mas eu não te pedi nada.
– Não sejas ingrata.
A certa altura, disse que não entendia por que razão vivíamos separados. Calei-me. Deixei-me ir, estava apaixonada.
Vivia do outro lado do bairro, numa casa pequenina com quintal, um rés do chão no topo de uma colina. Adorava a casa. Entrava-se para um corredor muito comprido que, ao fundo, dava para a casa de banho. Do lado direito, um quarto, do lado esquerdo, uma pequena sala e a cozinha, cuja janela abria para um pátio de muros amarelos. A toda a volta, vasos com flores, que alternavam com molduras de janelas de madeira velha, apanhadas na rua. O chão era de cimento e estendia uma manta de lã, para me deitar ao sol, perdendo-me nas histórias das famílias que aquelas paredes tinham abrigado. Eram histórias de amor, perfeitas, imaculadas, como eu desejava que fosse a minha.
Havia risos na cozinha, conversas sem tempo na sala. E a paixão que se entranhava nas frinchas das paredes e nas rachas dos tetos, na humidade e no bolor que crescia indomável.
Uma semana depois de ele se ter mudado para Lisboa, saí de casa para comprar pão e reparei num desenho feito com tinta vermelha, no chão, à porta do prédio. Era uma peça de um puzzle. Percebi que tinha sido ele, que tantas vezes me dizia: somos duas peças do mesmo puzzle.
Sem imaginar o quebra-cabeças que a minha vida se tornaria, não coube em mim toda a felicidade que senti.
*
A minha casa era pequena e tive de me encolher para ele caber nela.
Foi enquanto arrumava as prateleiras que descobri um livro que muito me fizera questionar a vida e a minha forma de a viver, quando andava perdida no início da adolescência. Peguei no Livro do Desassossego e folheei-o à procura de anotações, curiosa por reviver aquilo que sentira.
Cresci sozinha, refugiada nos livros. Lia compulsivamente. Revejo-me com o dicionário debaixo do braço, procurando os significados das palavras que não conhecia.
Foi assim toda a vida: eu e os meus livros. Quando íamos de férias para a praia, a minha mala acusava o peso dos livros; quando ia de férias para casa da minha avó, a mochila era pequena para tantos livros. E cadernos e canetas, vivia no pânico de que as folhas e a tinta acabassem.
Tantas vezes que os livros me salvaram. Sempre que li um livro fui corajosa. Por isso li tantos quando estive internada, a ver se a coragem não me abandonava. Mas os livros que li nos 49 dias em que estive deitada na cama de um hospital foram os últimos por muito tempo. Durante longos anos, não permiti que outro livro me salvasse porque sempre que abria um, sentia que me atirava para aquele quarto onde esperei, desarmada, pela morte.
«Sou quem não sou. E, não sabendo o que sou, escrevo porque me alivia. Alivia-me o peso de ser uma prateleira carregada de frascos vazios.»
O meu eu de antigamente e o de agora resumidos naquelas linhas.
Agradeci-me por ter finalmente encontrado o homem que ia preencher a minha vida, que caíra no meu colo com o objetivo de me ajudar a encontrar-me. Já não precisava de sofrer com os eus que não me permitia ser.
Enchemos a carrinha com as tralhas dele, conduzimos de janelas abertas numa felicidade que se fazia ouvir pelas ruas da cidade. Eu não queria acreditar no que estava a acontecer. Aquele homem, sim, aquele homem estava apaixonado por mim, queria viver comigo! Fazia a capa de uma revista, aquele homem; podia ter qualquer mulher, aquele homem, mas escolheu-me a mim e senti que essa era uma das coisas mais extraordinárias que tinham acontecido na minha vida.
Olhei-me ao espelho e vi-me mais bonita do que no dia anterior.
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