Deus e família, pátria, autoridade e trabalho eram tudo o que a ditadura não admitia discutir e que permitiram agora a Pedro Gil construir uma comédia em torno do cânone de D. Juan, que começa em Espanha, no século XVII, e termina em pleno século XXI, na Avenida da Liberdade, em Lisboa.

Num palco onde apenas uma faixa transversal azul quebra o negro, Tónan Quito encarna o papel de D. Juan, o fidalgo espanhol que não pode ver uma mulher sem que se apaixone por ela, independentemente de ser solteira ou casada.

Filipa Matta, Miguel Loureiro, Pedro Gil — que também escreveu o texto e encena -, Raquel Castro e Rita Calçada Bastos são os outros intérpretes da peça ao longo da qual vão interpretando várias personagens.

“Todos têm medo de D. Juan”, “Por onde passa destrói tudo, o D. Juan” e “D. Juan traz a morte ao peito” ouve-se a uma das personagens logo no início da peça sem que nada faça prever as peripécias a que D. Juan será submetido ao longo da ação.

Na primeira parte, a peça coincide com o cânone da original, enquanto a segunda parte da peça fica marcada pela chegada de D. Juan a Lisboa, numa viagem que acaba também por se passar no tempo, já que passa do século XVII para a atualidade.

Após uma temporada vestido de fidalgo a pedir na Baixa, e de dormir num albergue de homens, D. Juan acaba por responder a classificados de um jornal e responde a um anúncio para ser mulher de limpeza num escritório de advogados, sendo assediado pelo futuro patrão logo que este o entrevista.

Em Lisboa, D. Juan vive os maiores percalços — mais ainda do que aqueles que viveu em Espanha quando todas as mulheres se apaixonavam por ele.

Em busca do amor, D. Juan acaba por inventar uma máquina, a que chama “a Amorosa”, após o que é preso por cinco anos por crimes de evasão fiscal.

“A minha atração pelo D. Juan já era antiga, acho que, ao ver aquelas cinco palavras, aqueles cinco nãos [Não discutimos a pátria, não discutimos a autoridade, não discutimos a família, não discutimos o trabalho e não discutimos Deus] iluminaram um bocadinho o D. Juan que tinha para fazer, por ser um vilão solteiro, blasfemo, antipatriótico, sem filhos, que não trabalha”, disse Pedro Gil.

Uma visita a uma exposição no Museu do Aljube, onde um avô esteve preso durante o Estado Novo, e onde o ator viu numa das paredes da exposição os “cinco nãos” do Estado Novo, despertou em Pedro Gil a vontade de elaborar de raiz uma peça em torno daquela personagem que já lhe era “cara”, referiu.

D. Juan é alguém que, na sua conduta, questiona aqueles “cinco nãos” embora não o faça de uma forma construtiva, mas antes destrutiva e não moralista, acabando por questionar coisas normais da vida, acrescentou o ator e encenador.

No final da peça, D. Juan acaba por ser assaltado e esfaqueado na avenida da Liberdade, em Lisboa, sem que o público perceba se morre ou não.

Com desenho de luz de Daniel Worm d’Assunção, cenografia e adereços de Pedro Silva e figurinos de Catarina Graça, “D. Juan Esfaqueado Na Avenida da Liberdade” vai estar em cena a partir de quarta-feira, 07 de novembro, até 02 de dezembro, de quarta-feira a sábado, às 21.00, e, aos domingos, às 17:30.

No dia 18 de novembro, haverá conversa com os artistas.