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Hitler teve uma infância infeliz?
Hoje em dia, fala-se muito de «família tóxica», mas a abordagem é a mesma: a criança Hitler, privada de qualquer afecto e até martirizada, ter-se-ia vingado da vida. Tal como Estaline, que foi espancado pelo pai, um sapateiro alcoólico e inculto, num contexto de pobreza. E os pais de Adolf Hitler? Seriam eles «tóxicos» para o seu filho, nascido a 20 de Abril de 1889 em Braunau am Inn, uma pequena localidade de três mil habitantes no império Austro-Húngaro, na fronteira alemã?
Olhamos imediatamente para o pai, Alois, de 62 anos. Hitler é aquilo a que se costumava chamar um «filho de velho». O seu pai era filho de pai incógnito. Este vazio genealógico deu origem à bem fundamentada teoria de que Hitler teria origem judaica. Nascido no seio de uma família camponesa pobre conseguiu, pela sua força de vontade e trabalho, tornar-se um funcionário alfandegário. Funcionário zeloso, para não dizer teimoso, note-se, ele é muito pouco apreciado pelos seus colegas. Por outro lado, a sua vida privada é muito instável. Está no seu terceiro casamento, com dois filhos a cargo: Alois e Angela. Além disso, é 23 anos mais velho do que a sua nova mulher, Klara Pölzl.
A recém-casada tem 29 anos. Ela fora governanta dos filhos do segundo casamento de Alois e amante dele. O casamento teve lugar em 1885, depois de lhe ter sido concedida uma dispensa pelo bispado, por motivos de consanguinidade de «primos com laços de parentesco» (primos em segundo grau). O próprio apelido não é certo – o que não era invulgar na época. Hiedler passou a Huetler, o que levou a Hitler. Os três primeiros filhos, nascidos em 1885, 1886 e 1887, morreram todos com tenra idade. É muito, mesmo numa época em que as taxas de mortalidade infantil eram elevadas. Adolf, em 1889, foi o quarto. Seguiu-se um irmão mais novo, que morreu aos seis anos, e depois uma irmã, Paula. Os afectos de Klara centraram-se no seu filhinho Adolf.
Por razões desconhecidas, a família Hitler mudava-se incessantemente, sem nunca deixar a região. Aos 15 anos, Adolf Hitler já tinha conhecido sete domicílios e cinco escolas diferentes. Isto não o favoreceu em termos de escolaridade. Por outro lado, a família não era verdadeiramente pobre. O salário do seu pai era bastante aceitável, mais ou menos equivalente ao de um director de escola. Quando se reformou, em 1895, comprou uma pequena quinta na Alta Áustria para se dedicar à apicultura, a sua paixão. Lemos muitas vezes que este pai, sem dúvida autoritário e obtuso, propenso a acessos de cólera, era um tirano doméstico, agredindo frequentemente os seus dois filhos. Crianças espancadas ou crianças castigadas de vez em quando com castigos corporais, como era costume na altura? Não é a mesma coisa, mas a questão continua sem resposta. Em todo o caso, o meio-irmão de Adolf Hitler, Alois, saiu de casa aos 14 anos, em conflito com o pai, que o deserdou.
Foram conservadas duas fotografias de turma do tempo da escola primária. Uma mostra nada menos do que 41 alunos em cinco filas. O aluno Hitler está no topo, à direita. Numa outra, provavelmente tirada no ano seguinte, com seis filas e 48 alunos, está de novo no topo, desta vez ao centro. Olha para a câmara com um ar confiante, quase desafiador. O seu carácter parece já muito assertivo, em contraste com o gosto pelo estudo. Os seus resultados são, no máximo, medíocres. É provavelmente um líder no recreio e depois da escola, quando os rapazes brincam aos cowboys e aos índios. Eram todos eles, com o jovem Hitler na liderança, ávidos leitores de Karl May, um dos escritores alemães de aventuras de cowboys mais vendido no mundo.
Tinha 11 anos quando os pais o mandaram, no início do ano lectivo de 1900, para a Staats-Realschule de Linz. Passa a ser apenas mais um aluno, enfrentando os filhos da burguesia da cidade. Os seus resultados escolares passam de medíocres a maus. Eduard Huemer, um dos seus professores, descreve-o, 24 anos mais tarde, como «magro e pálido [...] inegavelmente dotado, mas teimoso. Tinha dificuldade em controlar-se ou, pelo menos, era visto como recalcitrante, autoritário, sempre a querer ter a última palavra, irascível, e era-lhe visivelmente difícil adaptar-se à estrutura de uma escola. Também não era trabalhador, caso contrário teria obtido resultados muito melhores». Adolf Hitler fez a sua comunhão na catedral de Linz, mas ao abandonar a escolaridade abandonou também a religião.
O seu pai estava ainda mais infeliz porque queria um filho que fosse funcionário público. Hitler afirma em Mein Kampf. «Não queria ser funcionário público, não, cem vezes não. [...] Sentia uma aversão física à ideia de ficar num gabinete, privado da minha liberdade.» Muito dotado para o desenho desde tenra idade, mete na cabeça tornar-se pintor, para grande desgosto do pai: «Quando se apercebeu da seriedade das minhas intenções, opôs-se-lhes com toda a força de vontade que possuía.» Embora amplamente aceite, esta é a versão de Hitler, que a utilizou para justificar o seu insucesso escolar. Isto seria verdade se o não tivesse feito de propósito, para desencorajar o pai.
Este último, porque via no seu filho sobretudo um horrível preguiçoso, perde rapidamente a paciência com este, vindo a morrer subitamente com uma hemorragia pulmonar, a 3 de Janeiro de 1903, aos 65 anos. A sua viúva, de 42 anos, muda-se para uma casa modesta nos arredores de Linz. Algumas poupanças e a sua pequena pensão de viuvez mal chegam para criar os dois filhos, Adolf e Paula. Quanto a Angela, está prestes a casar-se. No entanto, a mãe faz, ainda assim, o sacrifício de mandar o filho para um novo estabelecimento escolar em Steyr, a 45 quilómetros de distância. Só regressa a casa aos domingos. É acolhido por uma família e fecha-se mais do que nunca em si próprio. Um professor descreve-o como «triste e taciturno». Os seus resultados caíram a pique e não chegou a terminar o terceiro ano, inventando uma doença debilitante que levou a mãe a chamá-lo de volta para casa da família.
Assim começou o que Hitler descreveu em Mein Kampf como «os melhores anos da minha vida». E por uma boa razão: não faz nada. Único homem da casa, adorado pela mãe, sem qualquer intenção de aprender uma profissão, ele vadia e sonha vagamente com o seu futuro como artista. Faz amizade com um rapaz da sua idade, August Kubizek. Em 1953, este publicou as suas memórias (Adolf Hitler, mein Jugendfreund [Hitler, o meu amigo de infância]), durante muito tempo postas em causa, nomeadamente pelos historiadores americanos, mas que foram reavaliadas nos últimos anos. August Kubizek trabalha como aprendiz de estofador na empresa do seu pai, mas a sua paixão é a música. Está completamente integrado na sua família. Diz ter conhecido Adolf Hitler na ópera de Linz, em finais de 1904. Ambos estavam apaixonados por Wagner e, em particular, por Rienzi, uma ópera histórica. Na Roma do século xiv, dilacerada por conflitos entre famílias patrícias, Rienzi, filho de um padeiro ascendido a tribuno, ergue-se e apela à revolta do povo. No entanto, talvez não devamos dar crédito a Kubizek quando conta que, tendo sido convidado por Hitler para o Festival de Bayreuth, em Agosto de 1939, o ouviu confidenciar a Winifred Wagner (nora do compositor e nazi fervorosa): «Foi aí que tudo começou» (1).
Kubizek descreve o seu camarada dos anos de 1905-1907 da seguinte forma: «Tinha uma postura direita, uma estatura delgada, o rosto pálido e magro, quase como o de um tísico, um olhar curiosamente claro, olhos brilhantes.» Também ele refere o brilho no olhar que causou à sua mãe «mais medo do que admiração» da primeira vez que o viu – mas só muito depois da guerra é que Kubizek conta este facto. Acrescenta: «Eu era calmo por natureza, muito intuitivo e adaptável e, portanto, conciliador», enquanto «Hitler tinha um temperamento veemente e colérico. Coisas sem importância, algumas palavras irreflectidas, por exemplo, podiam induzir-lhe uma fúria terrível».
Adolf Hitler faz uma primeira visita a Viena no início de 1906. «Já na altura», escreve Kubizek, «o seu pensamento era deixar Linz e voar para a capital». A sua vocação artística pode ser fraca, mas, ainda assim, passa pela capital austríaca e pela sua Academia de Belas- -Artes. Podemos imaginar os sacrifícios financeiros que isto representou para Klara Hitler. Em Maio de 1907, soube que tinha cancro da mama, mas não disse nada ao seu querido filho. Em Outubro desse ano, Adolf fez o exame de admissão à Academia de Belas-Artes. Reprovou (2). A Academia, como o seu nome indica, não se contenta com um nico de talento. Também exige «provas de desenho», conhecimentos básicos, estudos – tudo o que faltava ao candidato Hitler. Este fracasso foi dramático para o seu ego e para o mundo de sonho em que se contemplava. Não diz nada à sua mãe. Saberia que ela estava a morrer?
Klara Hitler faleceu na noite de 21 de Dezembro de 1907, aos 47 anos. O médico da família, Dr. Bloch, testemunha a dor do seu filho. Hitler diz em Mein Kampf: «Foi um golpe terrível. Eu respeitava o meu pai, mas amava a minha mãe. A sua morte pôs fim às minhas grandes ambições.» O jovem parte para Viena em Fevereiro de 1908. Juntamente com a sua irmã, pede uma pensão de sobrevivência e recebe uma parte da magra herança do seu pai. Mal chega para subsistir, vivendo modestamente com uma costureira, num bairro pobre da capital. Não tinha profissão e as portas da Academia de Belas-Artes fecharam-se-lhe definitivamente depois de uma segunda tentativa, infrutífera, no Outono de 1908. «Insuficiente», diz o registo da Academia. As páginas da sua infância e juventude estão irrevogavelmente fechadas.
Então, teve uma infância infeliz? Uma família tóxica? Se não um pai abusivo, pelo menos um pai «pouco carinhoso». Pelo contrário, uma mãe demasiado carinhosa, que fazia do seu filho querido o centro do mundo. Uma família recomposta, que mudava constantemente de casa e sofria da tirania paterna, com ou sem alcoolismo. É verdade, mas isso não é suficiente para descrever a infância de Hitler como «infeliz». O que fez a diferença foi a preguiça e a propensão de uma criança para sonhar que, muito cedo, perdeu o contacto com a realidade.
Já em criança, Adolf Hitler parecia ser um marginal fantasioso, incapaz de uma actividade regular ou de um esforço sustentado, incapaz de se integrar, incapaz até, acreditando no seu único amigo de infância, de manter uma conversa ou trocar impressões sem se zangar. Com menos de 20 anos, já se tinha fechado em si mesmo.
(1) A partitura original de Rienzi foi oferecida ao Führer como prenda de aniversário em 1939.
(2) E se o jovem Hitler tivesse sido admitido na Academia de Belas Artes de Viena? O curso da História ter-se-ia alterado radicalmente! Provavelmente, a Segunda Guerra Mundial nunca teria acontecido. O escritor franco-belga Éric-Emmanuel Schmitt transformou esta ideia num romance ucrónico: La Part de l ’autre (Albin Michel, 2001).
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