A Livros Natsuki era uma pequena loja escondida numa rua, na parte velha da cidade, e tinha um traçado bastante peculiar.
Um único longo corredor ligava a entrada às traseiras, ladeado por estantes enormes cujas prateleiras, repletas de livros, chegavam até ao teto. Pendurados no teto estavam candeeiros retro, cuja luz suave se refletia no chão de madeira polida.
A meio caminho, encontrava-se uma simples secretária de madeira para tratar das vendas, mas, além disso e dois bancos de madeira, não existia nenhum outro mobiliário ou adorno de que tipo fosse. Ao fundo da loja, o corredor terminava numa simples parede de madeira desprovida de ornamentos, mas, quando se entrava pela porta da frente com a luz do dia, tinha-se a impressão de que todo o local era muito mais profundo do que na realidade era. Rodeado por paredes de livros, parecia que se entrava numa passagem interminável que desaparecia na escuridão a perder de vista.
Na memória de Rintaro, estava gravada a imagem do avô a ler em silêncio um livro à luz de um candeeiro sobre a pequena secretária; as suas linhas desenhadas com simplicidade, mas com cuidado, como uma pintura a óleo de um mestre artista.
— Os livros têm um poder impressionante.
Era este o mantra do seu avô.
Para dizer a verdade, o velhote não era muito falador, mas, quando se tratava de livros, de repente explodia de vida. Os seus olhos pequenos enrugavam-se num sorriso e as palavras voavam-lhe da boca com uma energia apaixonada.
«Há histórias intemporais, suficientemente poderosas para sobreviverem ao longo das eras. Lê muitos livros como estes — eles serão como amigos para ti. Vão inspirar-te e apoiar-te.»
Rintaro olhou em volta para a pequena livraria com as suas paredes de livros. As prateleiras não albergavam nenhum dos êxitos de vendas atuais. Nenhuma manga popular ou revistas. Hoje em dia, os livros já nem sequer se vendiam como dantes. Os clientes regulares manifestavam muitas vezes preocupação com a sobrevivência da livraria Natsuki, mas o velho e frágil lojista apenas acenava com a cabeça num breve «obrigado». As obras completas de Nietzsche e as coleções de poesia de T. S. Eliot, em bom estado de conservação, permaneciam em exposição junto à porta da entrada.
Este espaço que o seu avô tinha criado era o refúgio perfeito para um rapaz que tendia a ser algo parecido a um recluso. Rintaro, que nunca se tinha encaixado verdadeiramente na escola, habituou-se a vir aqui e mergulhar nos livros, lendo vorazmente tudo o que conseguia encontrar nas prateleiras.
Por outras palavras, este era o porto de abrigo seguro de Rintaro, um lugar onde podia encontrar resguardo do mundo exterior. Mas agora, em poucos dias, seria obrigado a deixar a Livros Natsuki para sempre.
— Avô, que grande trapalhada — sussurrou ele.
Naquele momento, viu-se trazido de volta à realidade pelo alegre toque da sineta à moda antiga que pendia na porta da frente. Normalmente, significaria que um cliente tinha entrado, mas a porta tinha a tabuleta «FECHADO». Lá fora, o sol tinha-se posto, e para lá da porta de vidro não havia nada mais do que a escuridão. Parecia que Akiba tinha acabado de sair, mas, de alguma forma, um grande lapso de tempo passara.
Decidindo que a sineta tinha sido um truque da sua imaginação, Rintaro virou o seu olhar de novo para as estantes.
— Está um pouco sombrio aqui dentro.
A voz assustou-o. Mas quando se virou para verificar a porta, não estava lá ninguém.
— Que pena... tens aqui uma bela coleção, mas estes livros estão a desaparecer neste lugar velho e lúgubre.
Rintaro percebeu que a voz vinha do interior da loja. Deu meia-volta para ver... ninguém. Exceto, isto é, um gato tigrado. Parecia um tigrado alaranjado; um gato bastante grande e gordo com a pelagem às riscas laranjas e amarelas. Este gato em particular tinha marcas distintivas de riscas que iam do topo da cabeça ao longo das costas e cauda — típicas de um tigrado —, mas a barriga e as pernas eram imaculadamente brancas. Em contraste com o fundo pouco iluminado, os seus olhos eram duas brilhantes pedras de jade. E encontravam-se fixados em Rintaro.
Rintaro observava enquanto o gato fletia a sua longa e graciosa cauda.
— És um gato!
— Tens algum problema com isso? — perguntou o felino.
Não havia engano possível — a criatura tinha acabado de falar.
Embora se sentisse abalado, Rintaro conseguiu reunir uma réstia de calma. Fechou bem os olhos e contou até três. Depois, voltou a abri-los.
Uma pelagem farta, cauda espessa, dois olhos verdes penetrantes e duas orelhas triangulares bem proporcionadas — não havia dúvida de que era um gato.
Os bigodes do tigrado estremeceram.
— Ei, miúdo, há alguma coisa de errado com os teus olhos? — perguntou ele. Esta criatura não tinha papas na língua.
— Não, eu... quer dizer... — Rintaro deu voltas à cabeça para dizer a coisa certa. — A minha visão não é assim tão boa, mas consigo ver que está um gato falante sentado mesmo à minha frente.
— Fantástico — disse o gato, com um aceno de cabeça. E continuou: — Chamo-me Tigre. Tigre, o tigrado.
Não havia nada mais bizarro do que um gato a apresentar-se de supetão, mas Rintaro conseguiu de alguma forma corresponder à apresentação.
— Eu sou o Rintaro Natsuki.
— Eu sei. És o novo dono da Livros Natsuki.
— Novo dono?
Rintaro estava confuso. Esta era a primeira vez que ouvia tal coisa.
— Lamento informar que sou apenas um rapaz do secundário, um hikikomori — explicou ele. — O meu avô sabia tudo sobre livros, mas ele já não está entre nós.
— Não há problema — anunciou o gato. — Eu quero mesmo é falar contigo, com o novo proprietário, o novo livreiro.
Ele mirou Rintaro com os olhos ligeiramente semicerrados.
— Preciso da tua ajuda.
— Da minha ajuda?
— Sim. Da tua ajuda.
— Ajuda com...?
— Há livros que foram encarcerados.
— Livros?
— És algum papagaio? Para de repetir tudo o que digo como um macaquinho de imitação.
As palavras estalaram como uma bofetada no rosto de Rintaro. O gato, no entanto, não prestou atenção à reação dele.
— Preciso de resgatar esses livros. — Os olhos de jade pestanejaram. — E tu tens de me ajudar.
Rintaro sentou-se por um momento em silêncio, observando o gato tigrado de laranja. Depois, levantou lentamente a mão direita e começou a mexer na armação dos óculos. Era um hábito seu sempre que pensava.
Devo estar realmente cansado, pensou ele.
Rintaro fechou os olhos, com a mão ainda a tocar na armação dos óculos.
A morte do seu avô e o stresse do funeral tinham-no deixado exausto. Devia ter caído num sono profundo sem se dar conta e agora estava a sonhar. Convencido pela sua própria lógica, voltou a abrir os olhos. Mas o gato ainda se encontrava ali sentado calmamente mesmo à sua frente.
OK, agora tenho um problema.
Pensando bem, já há dias que estou aqui sentado a olhar para estas estantes.
Estou muito atrasado nas minhas leituras...
Agora, onde deixei eu aquela cópia do Cândido que mal comecei a ler?
Começaram a vir-lhe à cabeça todo o tipo de pensamentos aleatórios.
— Estás a ouvir, caro Livreiro?
O tom agudo do gato tigrado furou a bolha dos pensamentos de Rintaro.
— Olha, miúdo, vou dizer tudo outra vez. Preciso que me ajudes a salvar esses livros.
— Dizes que precisas de mim, mas...
Rintaro lutava para encontrar as palavras certas.
— Não tenho emenda. Como já disse, sou apenas um hikikomori da escola secundária — disse ele com seriedade de onde se encontrava, atrás da caixa registadora.
Por alguma razão, não conseguia mentir a este gato falante.
— Não há problema. Já sabia que eras um miserável, um introvertido inútil — zombou o gato. — Mas ainda tenho um favor a pedir-te.
— Se já sabias isso, então por que razão estás a pedir a minha ajuda? Existem milhões de pessoas que poderiam ajudar-te melhor do que eu.
— É escusado dizer.
— E eu acabo de perder o meu avô. Estou a sentir-me bastante deprimido neste momento.
— Já percebi isso.
— Então porque é que...
— Não gostas de livros?
A voz profunda do gato tigrado enxotou todos os protestos de Rintaro. Agora era mais gentil, mas também cheia de determinação. Rintaro não compreendia realmente do que é que o gato estava a falar, mas a sua forte presença e o poder do seu discurso pareciam roubar-lhe toda a razão.
Os olhos de jade estavam fixos nos de Rintaro.
— Sim… Sim, claro que gosto de livros.
— Então, o que é que te impede?
Tudo no gato era ousado e confiante — tão diferente do próprio Rintaro. O rapaz começou a mexer de novo na armação dos óculos, tentando desesperadamente perceber o que se estava a passar. Mas não havia explicação que fizesse algum sentido.
— O mais importante é sempre difícil de compreender, caro Livreiro — disse o gato, como se estivesse a ler os pensamentos de Rintaro. — A maioria das pessoas não entende essa verdade óbvia. Limitam-se a viver a sua vidinha, e, no entanto, é apenas com o coração que se pode ver como deve ser; o que é essencial é invisível aos olhos.
— Bem! — Rintaro esbugalhou os olhos. — Nunca esperei ouvir um gato a citar O Principezinho.
— Não estás virado para o Saint-Exupéry?
— Ele é um dos meus autores favoritos — respondeu Rintaro, apontando para uma prateleira ali perto —, mas acho que gosto mais do Voo Noturno. E eu não consegui trazer para baixo o Courier Sud.
— Fantástico — disse o felino com um sorriso rasgado.
A compostura do gato cobriu o rapaz com uma forte onda de nostalgia. De alguma forma, lembrou-lhe o avô, só que o avô nunca fora tão falador.
— Então, vais ajudar-me ou não?
Rintaro encolheu os ombros.
— É-me permitido recusar?
— É — respondeu o gato de imediato. Depois, acrescentou: — Mas ficarei amargamente desiludido se o fizeres.
Rintaro fez um ligeiro esgar.
Então, este gato aparece não sei muito bem de onde, a pedir ajuda, e depois diz que ficará amargamente desiludido se eu não concordar…
Não era nada razoável, mas havia um não-sei-quê de apelativo no discurso do felino — não conseguia zangar-se com ele. Sim, pensando bem, este gato era provavelmente muito parecido com o seu avô, afinal de contas.
— Então, diz-me lá o que é que precisas que eu faça.
— Segue-me.
— Para onde?
— Anda lá!
O gato virou-se e dirigiu-se não para a porta de entrada, mas na direção das sombras no outro extremo da loja. Um pouco confuso, Rintaro seguiu-o, mas, mal tinha dado meia dúzia de passos, foi acometido por uma sensação muito curiosa de vertigem. A Livros Natsuki era comprida e estreita; ele esperava correr contra a parede nas traseiras com apenas alguns passos. Mas hoje, não havia um beco sem saída. O corredor orlado com as suas imponentes estantes repletas de livros parecia não ter fim. Os candeeiros antiquados que pendiam do teto também pareciam repetir-se infinitamente. Conforme caminhavam, Rintaro reparou que as prateleiras estavam cheias de livros que nunca vira antes. Muitos tinham uma encadernação diferente da que se usa hoje em dia. Os velhos livros em segunda mão tinham ficado para trás, e agora viam-se belos tomos encadernados em pele, estampados a ouro; a passagem tornara-se uma galeria de livros espetaculares.
— Isto... hã...
Rintaro começou num desvario incoerente. O gato olhou para ele por cima do ombro.
— Estás assustado, caro Livreiro? Se me vais deixar na mão, é melhor que o faças agora.
— Estava apenas a tentar perceber quando é que a loja recebeu todos estes novos livros — retorquiu ele, olhando para longe, e desviando depois o olhar para o gato. — Com todos estes novos títulos para ler, acho que ainda não estou pronto para deixar a vida hikikomori. Se calhar é melhor perguntar à minha tia se podemos adiar a mudança.
— Humm. O teu sentido de humor deixa muito a desejar, mas o teu coração está no lugar certo. Este mundo arremessa-nos todo o tipo de obstáculos, somos forçados a suportar tanta coisa que é absurdo. É o humor, e não a lógica, e muito menos a violência, a nossa melhor arma para combater toda a dor e os problemas do mundo.
Tendo oferecido esta pérola de sabedoria ao estilo de um filósofo antigo, o gato tigrado tornou a caminhar lentamente pelo longo corredor.
— Vamos, caro Livreiro.
Rintaro obedeceu e foi no seu encalço.
De súbito, as estantes dos dois lados ficaram repletas de uma panóplia de grossos volumes que lhe não eram nada, mas mesmo nada, familiares. Conforme o rapaz e o gato iam avançando, a passagem foi sendo inundada por um ligeiro brilho azulado. Pouco a pouco iluminou-se, até que por fim todo o espaço foi preenchido com uma luz branca ofuscante.
* * *
Ele viu luz solar luminosa e árvores a oscilar mansamente.
A luz branca desvaneceu-se, e Rintaro viu-se rodeado por um cenário agradável. A seus pés, as lajes refulgiam ao sol. Por cima, os ramos de uma grande árvore-da-seda balançavam na brisa, criando chuviscos brilhantes de raios de sol. E para lá desses... Rintaro semicerrou os olhos para tentar ver melhor.
— Um portão?
A uma distância muito curta, no cimo de um lance de degraus de pedra, encontrava-se um magnífico portão com telhado -yakuimon. O telhado era feito de telhas decorativas tradicionais e as grandes portas de madeira tinham sido polidas até obterem um brilho requintado, mas a sensação geral era de algo vagamente opressivo. Rintaro olhou para a esquerda e para a direita. Em ambas as direções, existia uma parede perfeitamente uniforme a perder de vista. Ao lado do portão principal havia uma porta mais pequena recortada na parede; a placa de identificação parecia não ter nada escrito.
As lajes regulares, alongando-se à distância, estavam imaculadas. Não tanto quando uma folha caída desfigurava a sua superfície. As partículas de luz que entravam pelos espaços entre o telhado e as árvores brilhavam como gotas de água dançantes.
Não havia ninguém à vista.
— Já aqui estamos — declarou o gato. — Chegámos ao nosso destino.
— É aqui que estão os livros?
— Estão encarcerados ali atrás.
Rintaro olhou mais uma vez para o magnífico portão e para a árvore-da-seda mais acima. Os seus ramos gigantes estavam cobertos de flores felpudas. Que estranho! Estávamos em dezembro, o que fazia com que esta árvore-da-seda fosse muito invulgar. Desde o início, uma coisa era certa, tudo o que tinha visto hoje desafiara o senso comum. Por agora, parecia não valer a pena fazer grande alarido por causa destas flores vivazes.
— Que mansão impressionante. Só este portão tem mais ou menos o tamanho da nossa livraria.
— Não te deslumbres. É tudo uma intrujice. Quem vê caras não vê corações; nunca se sabe o que está por trás disto tudo.
— Bem, mas eu que não passo de um aluno do secundário, de bom coração, não me importaria de ter uma cara como esta.
— Aproveita ao máximo a tua liberdade para te lamuriares — ripostou o gato. — Se não conseguirmos salvar aqueles livros, vais ficar retido neste labirinto para sempre.
Rintaro ficou assarapantado.
— ...Eu, hã... não me disseste nada sobre isso.
— Claro, como é óbvio. Se te tivesse contado, nunca terias concordado em vir. Por vezes, a ignorância é uma bênção.
— Isso não se faz. Enganaste-me.
— Enganei? Estava na cara que não tinhas muito a perder, aí plantado com essa cara de meter dó.
As palavras do gato eram puro veneno. Portanto, era isto que queriam dizer com ser «brutalmente honesto», pensou Rintaro. Fitou o céu gloriosamente azul enquanto enunciava a sua resposta.
— Não me dá gozo magoar animais néscios, mas... — Fez uma pausa para ajustar os óculos. — Neste momento, estou a ser tomado por um desejo avassalador de te agarrar pelo pescoço e estrafegar-te.
— Esplêndido. É esse o espírito!
Com toda a compostura, o gato começou a subir os degraus até ao portão. Rintaro trepou apressadamente, seguindo-o.
— Estou aqui a pensar... o que acontece se não conseguirmos voltar?
— Talvez estejamos condenados a caminhar ao longo deste muro por toda a eternidade. Mas nunca fiquei aqui preso antes, por isso não sei.
— Isso não me soa nada bem.
Rintaro parou no último degrau, mesmo antes das enormes portas de madeira.
— Então, diz-me lá: o que é que eu tenho de fazer?
— Basta falares com o senhor da herdade.
— E depois?
— Se conseguires persuadi-lo, a nossa missão está concluída.
— Só isso?
Rintaro parecia abismado. Mas o gato ainda tinha alguma na manga.
— Tenho mais uma tarefa para ti — anunciou num tom pomposo. — Importas-te de tocar à campainha?
E Rintaro fez o que lhe foi pedido.
* * *
Uma mulher atraente, vestida com um simples quimono índigo, abriu a pequena porta junto ao portão. Pelo seu comportamento comedido, imaginava que seria uma senhora idosa, mas era difícil de calcular a sua idade exata. Parecia fria e os olhos sem vida. Pelo gancho de cabelo ornamental vermelho preso no seu puxo e pela brancura de porcelana da sua pele, poderia facilmente ser confundida com uma requintada boneca japonesa.
Rintaro viu-se privado de palavras.
— Posso ajudá-lo? — perguntou ela, com uma voz monocórdica.
O gato tomou o lugar do rapaz nervoso.
— Gostaríamos de falar com o seu marido.
A mulher virou o seu olhar sem vida para o gato. Rintaro foi acometido por um arrepio nervoso, mas tanto o gato como a mulher pareciam completamente imperturbáveis.
— O meu marido é um homem ocupado. Visitas inesperadas...
O gato interrompeu-a logo.
— Este é um assunto da maior importância. E sensível ao tempo, também. Por favor, tenha a bondade de o informar que estamos aqui.
— Todos os dias o meu marido recebe visitas de pessoas que afirmam ter assuntos urgentes e importantes para ver com ele, mas ele está demasiado ocupado com as suas aparições na televisão e na rádio. A sua agenda não permite visitas inesperadas. Por favor, venham noutro dia.
— Não temos tempo para isso.
A determinação na voz do felino tigrado fez com que a mulher estacasse. O gato aproveitou o momento.
— Estamos aqui para discutir assuntos relacionados com livros. Este jovem aqui ao meu lado tem informações vitais para o seu marido. Tenho a certeza de que ele será capaz de arranjar tempo para nos ouvir.
A maneira de ser do gato parecia ter um efeito sobre a mulher de quimono. Ela permaneceu imóvel durante algum tempo, aparentemente avaliando as palavras do gato. Depois, por fim, com um precipitado «Esperem aqui», fez uma reverência rápida e desapareceu pela porta.
Rintaro olhou embasbacado para o gato.
— Quem tem «informações vitais»? — exigiu ele.
— Não nos vamos preocupar com os pormenores agora. A meu ver, estamos a usar as próprias táticas do intrujão para lhe fazer frente. Intrujar o intrujão, se preferires. Vamos combinar o que vamos dizer assim que entrarmos.
— Isso é tão... — Rintaro hesitou um momento. — ...tranquilizador! — bufou ele.
A mulher reapareceu passado pouco tempo. Fez uma reverência ao rapaz e ao gato, antes de se lhes dirigir no mesmo tom monocórdico:
— Por aqui, por favor.
* * *
Do outro lado do portão encontrava-se uma magnífica mansão, cujo estilo Rintaro nunca tinha visto.
Caminharam pelas lajes imaculadas, passaram pela porta da frente em treliça e descalçaram-se no átrio de entrada genkan. Depois, foram encaminhados por um corredor com o soalho polido até a um alpendre engawa que rodeava a casa, que por sua vez conduzia a uma espécie de ponte de ligação que os levou até um edifício anexo.
Da ponte de ligação, podiam ver extensos jardins de estilo japonês. Os pássaros chilreavam nas árvores e os arbustos de azáleas bem podados estavam em plena florescência — mais uma vez, florindo fora de época.
— Por acaso não me disseste que a casa seria modesta? — lembrou Rintaro.
— Falei de maneira alegórica. Para de tagarelar. Poupa o fôlego.
Rintaro e o gato estavam a sussurrar encarniçadamente um com o outro, mas a mulher que caminhava à sua frente não disse uma única palavra.
Conforme caminhavam, a paisagem começou a mudar. O que de início pareceu ser uma residência tradicional japonesa passou por uma transformação extremamente estranha.
Primeiro, o alpendre de madeira transformou-se numa escadaria de mármore, e os extensos jardins, que a certa altura se viam da balaustrada de uma ponte em arco chinesa, transformaram-se subitamente nos de um palácio ocidental, salpicados por fontes de pedra e estátuas nuas requintadas. E mais à frente, para lá das portas de papel fusuma japonesas, pintadas com delicados padrões de bambu, viam-se brilhantes lustres e jarras reluzentemente pintadas, que se encontravam em mesas de chá art déco.
— Não sei como te sentes, mas eu estou a ficar com dores de cabeça — informou Rintaro.
— Eu também padeço do mesmo.
Era a primeira vez que o gato concordava com ele.
— É como se tivessem atirado uma data de tralha de todo o mundo para um só lugar — prosseguiu Rintaro.
— Parece que está cheio, mas na realidade está vazio.
A resposta do gato foi muito zen.
— Não há filosofia por detrás disto, nem gosto. Por muito rico e maravilhoso que pareça por fora, quando se tira a tampa e se olha para dentro, não há nada mais do que uma salgalhada de tralha emprestada. É o pior tipo de ignorância.
— Acho que estás a exagerar — retorquiu Rintaro.
— Estou apenas a dizê-lo como é. E, de qualquer modo, é muito comum. Vê-se isto em todo o lado, todos os dias.
— Esta mansão — disse a mulher, interrompendo suavemente o gato — foi decorada para refletir a rica e variada riqueza de experiências e o excelente bom senso do meu marido. Imagino que possa estar além da vossa compreensão.
Por uma fração de segundo, Rintaro pensou que isto era algum tipo de piada. A mulher caminhava à frente por isso ele não conseguia ver-lhe o rosto, mas depois percebeu que ela falava a sério.
Havia uma estranha tensão no ar enquanto avançavam cada vez mais para a residência. Corredores, escadas, alpendres de ligação — era extraordinária a distância que estavam a percorrer. E, nesse percurso, passaram por esculturas de marfim misturadas por entre pinturas a tinta japonesa, estátuas de Vénus, sabres. Parecia não haver tom nem som por detrás da disposição de qualquer um destes ornamentos.
A direção para a qual se encaminhavam parecia mudar inesperadamente, de modo que não faziam a menor ideia de onde se encontravam no seio do caos.
De vez em quando, a mulher virava-se e perguntava-lhes por cima do ombro «Estão bem?», ao que Rintaro e o seu amigo tigrado não lhes restava outra coisa que não fosse dizer que sim com a cabeça e prosseguir.
— Mesmo que nos dissessem para irmos embora agora, não tenho a certeza se conseguiria encontrar o caminho de volta — sussurrou Rintaro.
— Não te preocupes, amigo Livreiro — assegurou-lhe o gato olhando para ele. — Também não faço a mais pálida ideia de como sair daqui.
Como de costume, o gato não dourou a pílula.
Finalmente, chegaram ao fim da sua longa viagem. Caminharam por um último corredor atapetado de vermelho, ao fim do qual se encontrava uma porta de correr fusuma axadrezada. A mulher estacou em frente a ela.
— Obrigada pela vossa paciência — disse ela, pondo a mão levemente na porta, que deslizou, abrindo-se. Os olhos de Rintaro esbugalharam-se conforme assimilava o conteúdo da sala.
Era um salão enorme, com as paredes, o chão e o teto pintados de branco. A brancura tornava impossível determinar o tamanho exato do espaço, mas, no mínimo, Rintaro podia dizer que era diferente de tudo o que vira antes. O teto era tão alto como o de um ginásio de escola, e as paredes pareciam alongar-se eternamente.
O salão estava cheio de filas organizadas de vitrinas pintadas de branco. Cada uma destas vitrinas era mais alta do que Rintaro, e dispostas no que devem ter sido cerca de vinte filas, todas perfeitamente alinhadas. Mas mesmo que o início de cada fila fosse visível, elas estendiam-se a perder de vista.
Contudo, o que mais espantou Rintaro não foi o tamanho ou o número destas vitrinas de exposição; foi o seu conteúdo. Todas as vitrinas estavam repletas de livros. Todas as prateleiras de cada vitrina se encontravam atafulhadas. Ele não conseguia saber exatamente quantas destas estantes gigantescas existiam, ou o número total de livros aqui guardados, mas uma coisa ele sabia: o número devia ser assombroso.
— Uau!
Ele começou a andar por uma fileira de vitrinas. Era de cortar a respiração. Havia uma enorme panóplia de livros de todos os períodos. Literatura, filosofia, poesia, coleções de cartas, diários — todos os géneros que se possam imaginar. A excelência e o número eram avassaladores.
E, no entanto, cada livro parecia ser novinho em folha. Nem uma beliscadura se via neles — eram belíssimos.
— Nunca vi uma coleção tão maravilhosa! — exclamou Rintaro.
— Estou contente por ouvir isso.
A voz ressoou algures de entre as vitrinas.
Rintaro seguiu a fonte da voz através da sala, de estante em estante, e por fim deparou com um homem alto sentado numa cadeira branca.
Vestia um fato exatamente no mesmo branco reluzente que o chão polido. Estava sentado com as pernas cruzadas numa pequena cadeira giratória; os seus olhos fixos no grosso livro aberto no colo. As vitrinas do outro lado da sua cadeira ainda não tinham livros. Por outras palavras, tinham chegado ao ponto mais distante da coleção, bem no interior do armazém.
— Bem-vindos ao meu gabinete de trabalho.
O homem olhou de relance para Rintaro.
Tinha um sorriso suave, mas um olhar penetrante, revelando um homem de grande sofisticação.
Rintaro recordou que a mulher mencionara aparições na televisão e na rádio. Este homem parecia ser alguém que se veria na televisão.
— Ele parece muito esperto — murmurou Rintaro ao gato.
— Deixas-te intimidar assim tão facilmente? Mantém-te firme!
O olhar do homem mudou de Rintaro para o gato.
— São vocês que estão aqui para discutir «assuntos sobre livros»?
— Bem, hã...
Os olhos do homem pestanejaram friamente perante a resposta pouco convicta de Rintaro.
— Se me dão licença, estou muito ocupado. Não tenho mesmo tempo para ficar aqui sentado a conversar com um rapaz qualquer, principalmente um que aparece sem ser convidado, que nem sequer se dá ao trabalho de se apresentar, e depois fica aqui especado sem reação.
— Oh, desculpe. Chamo-me Rintaro Natsuki. — Reajustando logo a sua postura, Rintaro fez uma vénia profunda. — Queira fazer o favor de desculpar a intromissão.
— Estou a ver — respondeu o homem semicerrando os olhos. — Agora, diz-me lá que informação vital é essa que tens para mim. Se tem que ver com livros, então acho que gostaria de a ouvir.
Rintaro estava agora sob os holofotes, e não tinha nada para dizer. Não existia nenhuma informação vital. Ele olhou desesperadamente para o gato.
— Viemos libertar os seus livros. — Os bigodes brancos do gato estremeceram quando falou.
O homem semicerrou ainda mais os olhos ao mirar o gato. Havia algo ameaçador no seu olhar.
— Não tenho mesmo um minuto a perder. Tenho as minhas aparições na televisão e na rádio para preparar, e tantas palestras e artigos para escrever... Consigo arranjar a custo algum tempo para dar uma espreitadela a estes livros; a minha coleção é feita de livros de todas as partes do mundo. Mas não tenho tempo para lidar com loucos furiosos. — Suspirou profundamente, olhando de forma magistral para o seu relógio de pulso. — Já desperdicei dois preciosos minutos a ouvir-vos. Se já terminaram, gostaria que se fossem embora agora.
Mas o gato não ia desistir assim tão facilmente.
— A conversa ainda não acabou.
— Já vos disse para se irem embora. — O homem olhou de viés para o obstinado felino. — Até agora só li sessenta e cinco da minha quota de cem livros. Desapareçam da minha vista.
— Uma centena de livros? — Rintaro não conseguiu deixar de perguntar. — Lê uma centena de livros por ano?
— Não num ano — respondeu o homem, virando teatralmente a página seguinte do seu livro. — Num mês — prosseguiu ele, com grande pompa e circunstância. — E é por isso que estou tão ocupado. Recebi-vos, pensando que me traziam notícias que me poderiam ser benéficas, mas claramente estava enganado. Se continuarem a desperdiçar o meu tempo, mandarei expulsá-los. Claro que, uma vez que saiam desta sala, não faço a mínima ideia se irão conseguir, alguma vez, sair daqui, mas isso não me diz respeito.
O seu tom era gélido. No silêncio abrupto que se seguiu, o único som foi o ruído das páginas a serem folheadas. O gato tigrado lançou-lhe um olhar agressivo, mas o homem estava com-pletamente imperturbável. Era como se se tivesse esquecido de todo da existência dos seus visitantes.
Não havia mais nada a dizer. Rintaro olhava em redor, impotente, quando o seu olhar caiu sobre uma das vitrinas. A coleção do homem era realmente variada, ou talvez, simplesmente aleatória; as prateleiras estavam cheias não só de livros habituais, mas também de revistas, mapas, dicionários. Nada havia sido organizado em qualquer sequência, ou relacionado com qualquer tema em particular.
A Livros Natsuki também tinha uma coleção notável, mas o avô de Rintaro sempre tivera um sistema de organização na disposição das prateleiras. Em contraste, apesar da sua aparência impressionante, a coleção do homem era, de facto, um caos total.
Rintaro inspirou profundamente.
— Já leu tudo de Nietzsche?
Ele estava a olhar para a estante que se encontrava atrás do homem. Todas as obras de Nietzsche, incluindo o famoso Assim Falava Zaratustra, juntamente com as coleções das suas cartas, estavam alinhadas dentro da vitrina.
— Também gosto de Nietzsche — acrescentou ele.
— Há pessoas em todo o mundo que afirmam gostar de Nietzsche — respondeu o homem, sem levantar a cabeça do seu livro. — No entanto, muito poucas dizem isso depois de lerem toda a sua obra. Veem uma citação peculiar ou alguma versão resumida. Experimentam Nietzsche como se estivessem a experimentar um casaco da moda. Também és um desses?
Rintaro foi rápido a responder.
— Os estudiosos que no fundo não fazem muito hoje em dia a não ser folhear os livros acabam por perder totalmente a sua capacidade de pensar por si próprios. Quando não folheiam, não pensam1.
O homem levantou lentamente a cabeça do seu livro.
— Nietzsche era, de facto, um tagarela honesto e direto — continuou Rintaro, apressadamente. — É por isso que eu gosto dele.
Sem mexer um músculo, o homem sentou-se e observou o seu parceiro de conversa bastante tímido. Apesar de o seu olhar estar repleto de desdém, algures lá bem no fundo havia um resquício de interesse. Por fim, lá se resolveu a fechar o livro.
— Muito bem. Talvez eu consiga arranjar alguns minutos do meu tempo para falarmos.
A atmosfera glacial derreteu-se um bocadinho. O gato olhou para Rintaro com uma grande dose de admiração, mas Rintaro não tinha tempo agora para o seu amigo felino. Pressionado pela expressão do homem, teve de lutar contra o instinto de fugir. A sua voz fez-se ouvir:
— Viemos aqui porque ouvimos dizer que tem muitos livros encarcerados.
— Não se deve acreditar em tudo o que se ouve. Vejam com os vossos próprios olhos. Tenho apenas um exemplar de cada livro que li. Estou a tomar muito bem conta deles.
— Cada livro que leu? Já leu todos estes livros?
— Claro. — Com o braço fez um gesto a abarcar o imenso salão. — Desde a primeira estante junto à porta por onde entraram, até onde estou agora sentado. Cinquenta e sete mil, seiscentos e vinte e dois livros. Este é o número de livros que li até agora.
— Cinquenta e sete mil...
O homem esboçou um meio sorriso.
— Não é um número assim tão impressionante. Todos os líderes intelectuais do nosso tempo, como eu, estão constantemente a ler. É vital para nós aperfeiçoarmos constantemente a nossa filosofia e expandirmos os nossos conhecimentos. Os livros fizeram de mim o homem que sou hoje. São os meus companheiros de eleição. E assim sendo, sinto-me muitíssimo ofendido por vocês os dois terem vindo aqui com falsas acusações.
Ele descruzou, descontraidamente, as suas longas pernas e atirou um olhar ao rapaz. Rintaro foi atingido por uma onda de arrogância e orgulho tão forte que pensou que o iria fazer desfalecer. Não obstante, manteve-se firme — Rintaro estava genuinamente perplexo.
— Mas então porque é que guarda os seus livros dessa maneira?
As vitrinas estavam todas fechadas hermeticamente, os seus puxadores fechados a cadeado. Rintaro ainda não compreendia o significado exato das palavras do gato — «livros que foram encarcerados» — mas, no entanto, sabia que esta não era a maneira correta de expor os livros. As vitrinas eram bonitas, mas sufocantes.
— É contranatura — replicou Rintaro.
O homem franziu o sobrolho.
— Estes livros são importantes para mim. Eu adoro livros. Por que razão seria contranatura guardar o meu tesouro?
— Porque os está a tratar como peças de museu. Colocando-lhes um grande cadeado assim; os livros são seus, mas nem sequer lhes consegue chegar.
— Chegar-lhes? Por que motivo havia de querer fazer isso? Já os li.
Agora, Rintaro estava ainda mais confuso do que o homem.
— Dá-se por satisfeito depois de os ter lido uma vez? Não quer voltar a lê-los...?
— Lê-los outra vez? És doido?
As palavras reverberaram através do grande salão. O homem do fato branco estendeu um dedo longo e esguio e tocou suavemente no vidro da vitrina mais próxima dele.
— Não ouviste nada do que eu disse? Estou demasiado ocupado a ler livros novos. Já é suficientemente difícil atingir a minha quota mensal. Não tenho tempo livre para os reler.
— Então, nunca relê os seus livros? — perguntou Rintaro, surpreendido.
— Claro que não. — O homem parecia genuinamente chocado e abanou a cabeça.
— Vou atribuir a tua estupidez à tua tenra idade. Caso contrário, a inanidade destes últimos três minutos vai mergulhar-me no desespero. O mundo está cheio de livros, concordas? É impossível contar o número de livros que foram, e ainda continuam a ser, escritos. Arranjar tempo para voltar a ler os mesmos livros, bem, é simplesmente inconcebível.
As palavras ecoaram ocas no espaço enorme. Rintaro começou a sentir-se tonto e enjoado.
— O mundo está cheio de «leitores» — prosseguiu o homem. — Mas uma pessoa da minha posição é obrigada a ler muito mais livros do que um leitor médio. Alguém que tenha lido vinte mil livros é muito mais valioso do que quem leu apenas dez mil. E então porque é que eu iria reler o mesmo livro quando ainda há pilhas de livros que precisam de ser lidos? Está fora de questão! Seria um desperdício de tempo ridículo!
Os olhos semicerrados do homem ganharam um brilho que vinha de uma autoconfiança tão absoluta que raiava a insanidade.
Sem conseguir encontrar as palavras corretas, Rintaro manteve-se de boca fechada e observou.
O que o homem dizia não era completamente irrealista. O seu raciocínio, por mais distorcido e deformado que fosse, estava bem argumentado. E porque estava imensamente orgulhoso e seguro de si próprio, o caso que expusera era sólido e inabalável.
Os livros têm um poder impressionante.
Essa era a frase de estimação do seu avô. E agora o homem que se encontrava na frente de Rintaro afirmava que os livros o tinham feito o homem que ele era hoje — pareceu a Rintaro como se os dois homens estivessem a dizer a mesma coisa.
E, no entanto...
Rintaro levantou-se e começou a brincar com a armação dos óculos. Havia algo de muito diferente neste homem; as suas palavras foram, de alguma forma, distorcidas. Se ele fosse o avô de Rintaro, teria arranjado tempo para responder com calma e amabilidade às perguntas do rapaz.
— Estou extremamente ocupado — repetiu o homem.
E, ao dizer isto, virou a cadeira em direção às estantes, de costas para as suas visitas. Abriu de novo o livro, depois levantou uma mão, apontando para a porta.
— Por favor, saiam.
Rintaro não se mexeu. O gato também parecia estar embrenhado em pensamentos profundos. O silêncio tornou-se opressivo. O homem tornou a folhear as páginas do seu livro, o som seco e rumorejante reverberando pelo enorme salão.
Abruptamente, ouviu-se um som diferente e cortante. Tinha-se aberto a porta fusuma branca, mas não havia vivalma do outro lado; nenhum sinal da mulher que os trouxera até ali. Tudo o que conseguiam ver era uma escuridão profunda e sinistra. Rintaro sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo.
— Pensa bem, caro Livreiro — sussurrou o gato. — Ele é um forte rival porque existe verdade no que diz.
— A sério?
— Sim. Este labirinto rege-se pelo poder da verdade. E não importa quão retorcida possa ser essa verdade, desde que haja convicção pessoal, não se desfará facilmente. Mas nem tudo o que ele diz é verdade.
O gato deu um passo comedido em frente.
— Ele tem um ponto fraco — silvou ele. — É muito hábil a declamar montes de palavras, mas nem tudo o que diz é verdadeiro. Tem de haver uma mentira algures.
— Uma mentira?
Algo na atmosfera mudou. Rintaro virou-se, fixando o olhar na porta. Para lá da escuridão, começou a sentir-se um vento a soprar de lá. Ou melhor, havia um vento a soprar através do corredor, em direção à escuridão, empurrando Rintaro e o gato em direção à porta fusuma. A força deste vento aumentava constantemente, o seu destino era aquele misterioso vórtice negro de vazio no exterior. Rintaro sentia um arrepio a correr-lhe pela coluna vertebral abaixo.
Virou-se para trás e viu que o homem continuava absorto no seu livro, como se nada estivesse a acontecer. Parecia que ele tinha chegado quase ao fim daquele grande e grosso volume... E depois de ter folheado a última página, aquele livro, que acabara de ser lido, não seria mais do que um objeto decorativo algures no caos desta cripta de livros. Atulhado numa destas vitrinas vistosas. Trancado, para nunca mais ser manuseado.
Todos estes livros se encontravam, na verdade, encarcerados.
Agora, o vento tinha começado a ulular, e Rintaro não conseguia ouvir o gato, que tentava dizer-lhe algo.
Mas Rintaro tinha toda a sua atenção concentrada nos livros. Virou-se para o homem.
— Há algo aqui que não está bem. — Fora apenas um murmúrio quase inaudível, mas os ombros do homem tremeram como resposta.
— Tenho a certeza de que está a mentir.
Desta vez a voz de Rintaro tinha força, e o homem virou-se, olhando ameaçadoramente para ele. Mas Rintaro não teve medo.
— Está a mentir-nos. Diz-nos que adora livros, mas isso não é verdade.
— Nem sabes o que dizes. — A resposta do homem foi demasiado rápida. — És apenas um miúdo. Antes de provocares a cólera do teu superior, é melhor pegares nessa monstruosidade ofensiva que é esse gato e saíres daqui para fora.
— O senhor não gosta nada de livros — repetiu Rintaro, levantando-se muito hirto e olhando diretamente o homem nos olhos. O seu adversário retraiu-se de modo percetível.
— Com que provas...
— Basta olhar à sua volta.
A voz de Rintaro saiu mais poderosa do que ele esperava. Mas não era apenas a força da sua voz, era porque ele sabia exatamente o que dizer.
— Concordo que há aqui um número impressionante de livros. Tenho a certeza de que é raro encontrar tal variedade num só lugar. E o senhor até tem livros antigos preciosos que são realmente difíceis de encontrar nos dias de hoje. Mas é tudo.
— Tudo?
— Veja, por exemplo, esta edição de dez volumes: The D’Artagnan Romances.
Rintaro apontou para uma fila de dez livros maravilhosamente encadernados que se encontravam numa prateleira à sua esquerda. Os títulos destacavam-se em letras douradas sobre fundo branco. As maiores obras de Alexandre Dumas, traduzidas em japonês, estavam confinadas a uma vitrina.
— Não é todos os dias que se tem a oportunidade de ver todas estas obras juntas desta forma. Os dez volumes parecem nunca ter sido abertos, encontrando-se em perfeitas condições. Observe bem o tamanho destes volumes. Não importa o cuidado com que os leia, mas após a sua leitura ficam sempre com uma ou duas marcas, talvez até uma lombada vincada. E, no entanto, estes livros parecem ter acabado de ser entregues, novinhos em folha.
— Os livros são como tesouros para mim. Leio cada livro com o maior cuidado, e coloco-o na vitrina quando termino. Faz parte da minha rotina diária, e dá-me um enorme prazer.
— Então onde está o volume 11?
O homem franziu o sobrolho.
— Na tradução japonesa, a série The D’Artagnan Romances é um conjunto de onze volumes. Não está aqui o volume final, Farewell to the Sword — declarou Rintaro, fazendo com que o homem ficasse petrificado.
Rintaro ignorou-o, gesticulando para a prateleira à sua direita.
— Ali tem Jean-Christophe2, de Rolland. Consigo ver o primeiro e o último volumes, mas também deve haver um volume no meio. E que dizer d’As Crónicas de Nárnia? Onde está O Cavalo e o Seu Rapaz? Disse-nos que os livros são para si como tesouros, mas não parece ser assim. Aparentemente, tudo parece estar em perfeita ordem, mas quando se olha de perto, estas prateleiras estão uma confusão.
Rintaro olhou para o teto do grande salão. A determinada altura do seu discurso, o intenso vento ululante tinha amainado para uma brisa.
— Isto não é uma biblioteca para guardar os seus preciosos livros. É para expor os livros a que conseguiu deitar a mão. Isto tudo não é mais do que um salão de exposições. — Rintaro fez uma pausa por um momento, depois virou-se, fixando o olhar diretamente nos olhos do homem. — As pessoas que, na verdade, gostam de livros não os tratam desta forma.
A sua mente foi assoberbada pela recordação do seu avô, sorrindo contente a ler um dos seus livros preferidos inúmeras vezes até que este se desfez. Ele ficara completamente arrebatado por cada história.
O avô de Rintaro tratara sempre os livros na sua loja com o maior dos cuidados, mas isso não significava que os tratava como decorações. Não estivera obcecado em ter uma espécie de exposição deslumbrante — tinha-se concentrado em criar um espaço bem conservado e repleto do tipo de livros que as pessoas pudessem facilmente encontrar e pegar, por mais velhos ou muito manuseados que fossem. Foi isso que fez de Rintaro um leitor.
Rintaro repetiu algo que o seu avô lhe dissera e que sempre retivera na sua memória.
— É bom ler muitos livros, mas não se engane…
O homem de fato branco voltou a vacilar, mas não articulou palavra. No silêncio, as memórias de Rintaro transformaram-se cada vez mais fluidas em palavras.
— Os livros têm um poder impressionante. Mas meta na sua cabeça que é o livro que detém o poder e não o senhor.
Era o que o avô lhe dizia quando Rintaro faltava às aulas e passava os dias a assaltar freneticamente as prateleiras da Livros -Natsuki. Rintaro ter-se-ia fechado entre as paredes de livros, imerso no mundo das letras, e perdido gradualmente todo o interesse pelo mundo exterior. O velhote, normalmente taciturno, avisava o neto:
«Não é verdade que quanto mais se lê, mais se vê do mundo. Não importa o conhecimento que se enfie na cabeça, a menos que penses com a tua própria mente, caminhes com os teus próprios pés, o conhecimento que adquires será sempre um vazio e nunca te pertencerá.»
Rintaro respondeu-lhe encolhendo os ombros, mas o avô continuou calmamente:
«Os livros não podem viver a tua vida por ti. O leitor que se esquece de andar com os seus próprios pés é como uma velha enciclopédia, com a cabeça repleta de informações desatualizadas. A menos que outra pessoa a abra, não passa de uma antiguidade inútil.»
O velhote desgrenhou gentilmente o cabelo do rapaz.
«Queres acabar por ser uma enciclopédia ambulante?», pro-vocou ele.
Rintaro não se lembrava do que lhe respondera. Mas recordava-se de que não foi muito depois dessa altura que tornou a ir à escola.
Mesmo assim, ele ainda tinha tendência para se enterrar completamente no mundo dos livros. O seu avô sentar-se-ia ali, bebendo a sua chávena de chá, e enviando-lhe o lembrete ocasional:
«É muito bom que leias livros, mas assim que acabas de ler um, tens de ir à tua vida.»
Ocorreu finalmente a Rintaro que esta era a forma estranha de o seu avô o encorajar, o orientar — ele fizera o seu melhor.
O homem de branco interrompeu os pensamentos de Rintaro.
— Mas foi assim que eu elevei o meu estatuto, ao recolher todos estes livros. Quanto mais livros tiver, mais poderoso sou. Foi assim que cheguei onde estou.
— E foi por isso que os aprisionou? Para os mostrar como se o poder deles lhe pertencesse completamente? — interrogou Rintaro.
— Estás a falar de quê?
— Considera-se tão extraordinário... Construiu este showroom ridículo e pretensioso só para que todos possam ver quantos livros leu.
— Cala-te! — O homem não podia ficar quieto por mais tempo. Abandonando toda a pretensão de ler o seu livro, olhou furiosamente para Rintaro. — O que é que um pirralho como tu pode saber? — Gotas de suor começavam a aflorar na testa do homem. — Quem é que a sociedade valoriza mais? O homem que lê o mesmo livro dez vezes, ou aquele que lê dez livros uma vez cada? — prosseguiu ele. — Como é óbvio, quanto mais livros se lê, mais respeitado se é. Quanto mais culto fores, mais fascinante e atraente as pessoas te consideram. Estou errado?
— Não consigo dizer-lhe se está certo ou errado. Mas não é disso que estou a falar.
— O quê? — O homem estava totalmente confuso.
— O que a sociedade exige, que tipo de pessoas recebem respeito. Não estou a falar de nada disso.
— Então o que é que tu...
— O que eu estou a dizer é que o senhor não gosta de livros. A única coisa de que gosta é de si próprio. Como acho que já mencionei, as pessoas que gostam verdadeiramente de livros não os tratam desta forma.
Mais uma vez, um silêncio profundo tomou conta do salão. O homem parecia ter-se transformado em pedra. Não se mexeu na cadeira; as mãos ainda agarravam o seu livro aberto. Antes, tão arrogante e prepotente, parecia agora ter-se reduzido à sua insignificância.
A brisa ligeira esmaeceu e a divisão ficou silenciosa. Rintaro virou-se e viu que a porta fusuma se tinha fechado novamente.
— Tu g...
O homem abriu a boca para falar, mas interrompeu-se imediatamente. O silêncio reinou de novo no salão, enquanto ele tentava encontrar as palavras corretas. Por fim, pareceu estar satisfeito com uma frase.
— Tu gostas de livros?
Não foi a brusquidão da pergunta que surpreendeu Rintaro, mas o brilho sincero que irradiava dos seus olhos. Que diferença tão grande da frieza e da atitude prepotente que ele demonstrara até agora. Foi um brilho que mostrou um novo tipo de consideração, juntamente com uma profunda sensação de solidão.
— Apesar de tudo, ainda gostas de livros?
A expressão «apesar de tudo» tinha tanto significado. Rintaro levou um momento a considerar todas as suas implicações.
— Gosto — disse ele com firmeza.
— Eu também.
A voz do homem era mais suave; desaparecera o tom cortante, parecia agora quase espiritual.
De repente, Rintaro ouviu um som curioso que lhe lembrava o sussurro suave de uma brisa. Olhou à sua volta e viu que toda a sala começara a transformar-se. Todas as vitrinas gigantes — outrora o orgulho e regozijo do homem de branco — começavam a desabar como castelos de areia. Um a um, os livros elevavam-se no ar, como pássaros a voar.
— Podes ter a certeza de que gosto mesmo de livros.
E, com estas palavras, o homem fechou cuidadosamente o livro que estivera a ler, enfiou-o debaixo do braço e levantou-se. Enquanto fazia este movimento, a vitrina mais próxima desfez-se em pó, os seus livros agora um bando de pássaros em migração. Rintaro observava com imenso respeito toda a sala repleta de livros voadores. O homem de branco olhou para ele.
— És um jovem impressionante.
— Eu não sou...
O homem levantou uma mão, interrompendo-o, e depois olhou para o lado.
— Afinal, parece que convidaste a entrar os visitantes mais problemáticos — disse ele, com um sorriso.
Rintaro deu-se conta de que o homem se dirigia à mulher de quimono, que se materializara ali do nada. Ela parecia diferente. Quando se encontraram no portão, ela não tinha expressão no rosto, quase como se estivesse a usar uma máscara. Agora, um sorriso iluminava-lhe o semblante.
— Não vão precisar de ajuda para regressar a casa. Vão encontrar o vosso caminho — declarou o homem.
A sua voz ressoava acima do barulho que os livros alados faziam a voar.
Quando a última das estantes-vitrinas se transformou em pó, uma luz pálida e azulada começou a encher a sala, refletindo-se nas páginas dos livros em migração e transformando o ar num turbilhão de brancura.
O homem olhou para o relógio de pulso.
— Bem, vocês tomaram-me muito do meu tempo. Mas devo confessar que foi o mais agradável que já passei. Estou-vos muito grato.
A mulher entregou-lhe um chapéu branco, que ele pôs na cabeça, e virou-se para se ir embora.
— Au revoir3 — disse ele.
A mulher ao seu lado acabara de baixar a cabeça numa reverência, quando um súbito clarão pintou tudo de um branco ofuscante.
* * *
Às sete horas da manhã seguinte, Rintaro estava na cozinha. Acabara de tomar o pequeno-almoço e abriu a porta da livraria. Entrou, acendeu as luzes, levantou as persianas, e deixou entrar um pouco de ar no espaço. A brisa fria que se infiltrou por ali adentro afugentou o ar velho e estagnado dali para fora. Rintaro varreu os degraus de pedra que levavam à porta, depois trocou a vassoura por um espanador de penas e pôs-se a limpar o pó das estantes.
Esta rotina era uma que o seu avô realizava todas as manhãs. Era a mesma cena que Rintaro observava todas as manhãs antes de ir para a escola, mas hoje era a primeira vez que ele próprio executava a tarefa. Tinha retirado das prateleiras e lido tantos dos livros que lá estavam, mas nunca tinha ajudado na sua limpeza.
— O que raio estás a fazer? — disse-lhe uma voz dentro da sua cabeça.
Mas depois outra voz, diferente, riu-se.
— Não tem mal — respondeu ela.
Ambas as vozes eram de Rintaro, e era verdade que ele não tinha ideia do que estava a fazer. Soltou um suspiro, e o seu hálito era branco no ar reluzente, mas frio da manhã.
Olhava com tristeza para as estantes, questionando-se porque é que tinha começado a limpar-lhes o pó. Nas profundezas da sua mente, perdurava a memória da estranha aventura do dia anterior.
— Fizeste um excelente trabalho, amigo Livreiro.
A voz veio de um gato tigrado de refinada pelagem.
Rintaro fez uma careta enquanto observava o felino a caminhar na sua direção pelo espaço estreito da livraria, os seus olhos verdes de jade vincados num sorriso.
— Que se passa? — perguntou o gato.
— Não estou habituado a ser elogiado por dá cá aquela palha — respondeu Rintaro.
— É bom ser humilde. Mas é preciso saber-se ir um pouco mais além.
O gato continuou a caminhar na sua direção.
— As tuas palavras conseguiram mudar alguém. É um facto. E conseguiste libertar um enorme número de livros que se encontravam aprisionados, ao mesmo tempo que tiveste êxito em regressar a casa. Sem as tuas palavras, nunca teríamos podido regressar, e teríamos ficado a deambular naquela casa bizarra para todo o sempre.
O pensamento era aterrador, mas o gato falou na sua maneira descontraída habitual. Rintaro vislumbrou nos olhos do gato um vestígio de um sorriso.
— Excelente trabalho. Conseguimos atravessar o primeiro labirinto.
— Obrigado... O quê? — Rintaro interrompeu-se e olhou fixamente para o gato. — O que é que queres dizer com «primeiro labirinto»?
— Oh, não ligues. Não te preocupes com isso.
Rintaro estava de pé no meio da Livros Natsuki. O gato escapuliu-se por entre as pernas dele e dirigiu-se de novo para a parede posterior.
— Espera aí! Tu disseste para não me preocupar com isso, mas… Ei, tu!
— Eu disse-te que me chamava Tigre, o tigrado. Ora lembra-te lá!
O gato sorriu por cima do seu ombro.
— Foi realmente um trabalho notável.
— Não mudes de assunto.
Mal Rintaro tinha proferido estas palavras, a passagem extra nas traseiras da livraria dissolveu-se numa luz branca e ele viu-se sozinho perante a parede de madeira. Tinha passado um dia inteiro desde a aventura, mas, de alguma forma, sentiu-se como se ainda estivesse a sonhar.
Trabalho notável, hem?
Ainda conseguia ouvir a voz do gato a ressoar-lhe nos ouvidos.
Nunca ninguém o enaltecera de forma tão direta. Normalmente, as pessoas faziam pouco dele, chamavam-lhe «cagarola» ou «lingrinhas». Habituara-se a ser ignorado porque estava sempre muito macambúzio, mas agora encontrava-se estranhamente agitado com estas novas aptidões que descobriam nele. Sentia-se tão inquieto que se viu incapaz de se sentar com um livro na loja obscura, como de costume. Em vez disso, agarrou de novo no espanador e afadigou-se energicamente na limpeza daquelas prateleiras.
Estava quase a terminar quando ouviu a campainha da porta da frente. Olhou e viu Sayo Yuzuki, a sua vizinha e delegada de turma, embrulhada num quente cachecol vermelho. Ela espreitou para a livraria, e levantou uma sobrancelha perfeitamente delineada quando viu Rintaro ali parado.
— O que é que estás a fazer? O que é que tu...?
Por uns segundos, ele ficou confuso, mas depois, quando pensou nisso, percebeu que deveria ter sido ele a fazer-lhe a pergunta.
— São sete da manhã. O que estás aqui a fazer, Sayo?
— Vou ao ensaio da banda. Saio sempre por esta hora.
Ela levantou a mão esquerda para lhe mostrar a caixa do instrumento preta.
— E, ao passar, reparei por acaso que a Livros Natsuki, que deveria estar fechada, encontrava-se, na verdade, aberta. Entrei para ver o que se estava a passar.
Ela atravessou o limiar da porta, o vapor da sua respiração branco no ar gelado.
— Se tens tempo suficiente para limpar a loja esta manhã, isso significa que estás a planear ir para a escola a seguir? — inquiriu ela, com as mãos nas ancas.
— Bem... Mas eu...
— Nem mas, nem meio mas! Se não tens nada melhor para fazer, então vem para a escola. Estás na realidade a planear faltar ao resto das tuas aulas enquanto não mudas de casa?
— Sim, acho que sim.
Sayo lançou um olhar feroz ao balbuciante rapaz.
— Olha lá! Já pensaste como é que eu me sinto? Venho aqui, a casa do meu colega de turma sorumbático, trazer-lhe os trabalhos de casa. Estou a tentar ser simpática.
Rintaro percebeu que nunca lhe agradecera por ela lhe ter trazido os trabalhos de casa no dia anterior. Mas assim que murmurou «Obrigado por ontem», o semblante de Sayo espelhou uma expressão intrigada.
— Disse alguma coisa que não devia? — perguntou Rintaro.
— Não, estou apenas surpreendida. Ontem, não parecias nada feliz de eu te ter trazido os trabalhos de casa, e agora estás aqui especado, a agradecer-me?
— Não fiquei nada insatisfeito com isso. Tu é que parecias estar chateada...
— Chateada? — Sayo foi apanhada de surpresa por um momento, mas depois reagiu: — Não especialmente.
Mas agora ela parecia mesmo um pouco zangada.
— Estava apenas preocupada contigo, Natsuki.
— Preocupada? Comigo?
Rintaro parecia espantado.
— Claro que sim.
Sayo olhou-o com severidade.
— O teu avô morre, e agora tens de mudar de casa. Claro que fiquei preocupada contigo. Mas depois dou contigo a andar com o Akiba como se tudo estivesse bem. Isso chateou-me um bocado.
Não tinha reparado nisso, pensava Rintaro. Egoistamente, ele pensara que Sayo o visitara por obrigação. Mesmo apesar de ela lhe ter dito logo que estava preocupada com ele, presumiu que ela o dissera por cortesia. Mas parecia que não era esse o caso.
Num momento, Sayo estava a olhar para ele, espantada, para no instante seguinte, desviar o olhar.
— Eu parecia mesmo chateada?
Rintaro ficou sem palavras. Não foi por causa da pergunta dela, mas porque, apesar de ver Sayo centenas de vezes, nunca reparara antes como os olhos dela eram vivos e bonitos. Quando pensou nisso, deu-se conta de que ela vivia mesmo ao virar da esquina, mas nunca tinha falado pessoalmente com ela antes.
— Pareci-te assim tão idiota?
— ...Não pensei nada disso.
— Mentes mesmo muito mal, Natsuki.
Rintaro não tinha resposta para aquilo. Ergueu a mão direita e remexeu nos óculos por uns instantes.
— Tenho o velho serviço de chá do avô — retorquiu ele por fim, apontando acanhadamente para as traseiras da loja. — Se tiveres tempo, posso fazer-te uma chávena de chá.
Uf, pensou Rintaro. Que frase mais imbecil. O seu convite desajeitado foi recebido pela sua alegre colega de turma com um ligeiro esgar.
— O que é isso? Algum tipo de sedução?
— Claro que não!
— Mas como convite a alguém que veio até aqui para te trazer os teus trabalhos de casa, não é nada má.
Foi uma resposta habilidosa. Ela chegou-se para o lado e sentou-se no banco ao lado de Rintaro.
— Vou dar-te pontos pelo esforço.
— Fico-te muito agradecido.
Rintaro mal teve tempo para suspirar de alívio antes de Sayo prosseguir:
— Vou beber uma chávena de Darjeeling com bastante açúcar.
A sua voz otimista foi como a chegada inesperada da primavera em pleno inverno.
Notas:
1 — Citação da obra Ecce homo, de Nietzsche. (NT)
2 — Jean-Christophe é um romance em dez volumes de Romain Rolland, a que foi atribuído o Prémio Femina em 1905 e o Prémio Nobel em 1915. (NT)
3 — «Adeus», em francês. (NT)
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