
Antes
Devem estar cerca de 10 graus sob o imenso céu azul de novembro. Não há quase ninguém na faixa de rodagem dupla, apenas um camião que oscila sobre a linha do horizonte. O ponteiro da velocidade ultrapassa os 130. Emma continua a acelerar. A estrada desfila, hipnótica. O volante treme sob os seus dedos. Hesita em pôr a tocar CocoRosie, o seu CD do momento, mas Jeanne, a mãe, dormita ao seu lado.
Está quase a alcançar o camião. Atrás dele, um velho Citroën, bamboleia-se, sugado pelo seu rasto. O camionista vai demasiado depressa para o 90 que tem afixado na carroçaria. Pelo menos a 110. Emma faz pisca para ultrapassar.
Tudo acontece em simultâneo, num caos em câmara lenta.
O Citroën a mudar de faixa, o brilho ofuscante de um raio de sol, o pé a escorregar no pedal do travão, o grito da mãe, um choque, o grito que não termina, o carro a derrapar mesmo antes de capotar.
Uma, duas, três voltas! canta uma voz na sua cabeça.
O céu, a estrada, o céu, a erva sulcada, um clarão de luz, depois o silêncio, como um vazio depois do trovão.
Presa pelo cinto de segurança, Emma abre um olho e observa o mundo de pernas para o ar. É o cheiro que vem primeiro, antes mesmo das sensações: borracha queimada, gasolina, terra... e algo mais. Um cheiro que se lhe prende na garganta e a reveste de ferro. Vira a cabeça, onde se entrechocam fragmentos de pensamento.
A sua mãe está suspensa de cabeça para baixo, tal como ela, os olhos abertos, tal como ela. Olha para o céu através da chuva vermelha de sangue.
Olha para o céu.
Emma mergulha na escuridão.
Voa numa chuva de vidro, ela voa e o seu corpo gira numa queda sem fim. Há forçosamente barulho, o guinchar dos travões, a chapa de metal que se rasga, no entanto ela não ouve nada, é um estrondo mudo, um grito sufocado, preso na sua garganta...
Emma senta-se na cama, o coração acelerado, um sabor a ferro na boca. Abana a cabeça, ainda atordoada. O pesadelo desperta-a normalmente uma vez por mês.
Mardi solta um miado de protesto antes de se esticar voluptuosamente. Um brilho pálido escoa através das cortinas. O despertador marca as 6h11. Emma enrola-se no edredão, decidida a voltar a dormir. Um ronronar faz-se ouvir, imperioso.
Posso?
Não. O gato não permite outra coisa a não ser a cooperação total. Empurra-a com o nariz, mordisca-lhe a gordura do ombro até ela se levantar da cama. Este felino deve ser a reencarnação do Rei Sol, não tem qualquer tolerância para com os crimes de lesa-majestade.
Na sala de estar, sapatos espalhados pelo chão, uma pilha de roupa por dobrar, chávenas sujas, o tabuleiro da refeição do dia anterior, livros, uma fita métrica – vá lá saber-se porquê! –, meias enrodilhadas... num móvel alto repintado de amarelo-limão, Jeanne sorri sonhadora na sua moldura. Emma faz-lhe uma carícia maquinal de passagem.
Olá, mamã.
Emma adora o seu apartamento. Antes da renovação, era a antiga sapataria do avô. A montra deu lugar a uma parede de tijolos transparentes que conferem à divisão um aspeto de aquário. A arrecadação foi substituída por um quarto e uma casa de banho que dão para um pequeno jardim, o terreno de caça de Mardi. A antiga bancada de trabalho faz agora as vezes de ilha central e separa a cozinha da sala de estar-aquário. Emma é muito apegada a este móvel grande cheio de riscos. Enquanto corta os legumes, sente os gestos mil vezes repetidos do sapateiro debruçado sobre a sua obra – cortar, lixar, coser ou pregar, polir, lustrar –, revê-lhe as mãos nodosas, incrivelmente ágeis, que a fascinavam em criança. Há algo dele que permanece nos veios da madeira.
Esta manhã, o chão da cozinha parece-lhe gelado, devido à insónia que a manteve acordada até altas horas da noite. Abre o frigorífico, pega na lata de paté premium, esmaga a mistura num prato próprio para o efeito – «Musse de pato para gatos exigentes», afirma o rótulo. Meia lata de manhã e à noite, como recomendado pelo veterinário. A saúde é o único domínio em que ela impõe a sua vontade ao Rei Mardi. Em tudo o resto, ele faz o que lhe apetece…
Enquanto o café se faz, encosta-se à porta envidraçada que dá para o jardim. Uma catalpa ergue-se no meio de um canteiro de erva molhada. Encostado à parede de pedra, o solano está em flor. Todos os anos promete a si própria que vai fazer uma horta, sem nunca se decidir. A jardinagem obriga a projetar, algo que ela detesta.
A falta de sono provoca-lhe uma languidez agradável. Paradoxalmente, é nestes momentos de fadiga que o seu toque se refina e ela massaja melhor, acreditando que o excesso de trabalho a leva a entregar-se à lassidão, provocando um curto-circuito mental. De qualquer forma, se lhe houvesse sido dada a escolha, teria preferido dormir sete horas seguidas para enfrentar o dia.
Maldito Dia D!
O céu está pesado, mas a chuva parou. Lemonier corre o risco de ter um ataque de fúria se os VIPs desembarcarem sob uma tromba de água. A imagem fá-la rir, uma pequena vingança pela semana que passou. O diretor do centro de talassoterapia de Portivy atormentou-as até ao limite do assédio à medida que a data se aproximava. Foi tudo cuidadosamente revisto: o planeamento - ele pura e simplesmente cancelou as reduções de carga horária de trabalho e as folgas de fim de semana - a limpeza, recorrendo a uma equipa externa como reforço, toalhas novas bordadas a fio de ouro e roupa especial para o pessoal que tenha de estar em contacto com Sua Excelência e a Sua Comitiva - Emma consegue ver claramente as letras maiúsculas sempre que o big boss menciona a delegação. Segundo Claire, a sua colega fisioterapeuta, Lemonier mandou pintar o seu gabinete de vermelho e verde, as cores de Omã! Embora estejam habituados a receber celebridades, de grandes empresários a estrelas de cinema, ele nunca deixara transparecer uma tal excitação… Uma questão de dinheiro ou de prestígio?
Lemonier é um homem afável, na casa dos 50 anos, de estatura modesta e com uma calvície incipiente - em suma, um homem quase vulgar em que apenas a sua ambição sobressai. Para Emma, a sua cortesia é uma máscara que não lhe serve. Não conseguiu concretizar a vocação de tirano nem a sua vontade de dirigir um complexo hoteleiro, o mais prestigioso possível. O mais estranho é que ele provavelmente não tem consciência disso. Bajula os poderosos com a esperança de que o seu esplendor se reflita nele próprio, e a visita da delegação do sultanato de Omã produziu uma verdadeira explosão. Desde o anúncio da sua chegada, há oito semanas, que a cidade fervilha com os rumores e as conjeturas mais extravagantes. Emma não teria prestado qualquer atenção se Lemonier não a tivesse nomeado massagista titular de Sua Excelência, «um enorme privilégio, espero que seja digna dele!». E uma vez que ele dificilmente a poderá seguir até à sala de tratamentos, ficou limitado a preocupar-se com os mais pequenos pormenores e a verificar a logística três vezes por dia.
Habitualmente, o diretor é suficientemente subtil para manter as distâncias. Está à frente de um estabelecimento de luxo, Emma é apenas uma colaboradora, e não é exatamente uma funcionária exemplar. Na verdade, ele tê-la-ia despedido há muito tempo não fossem as suas massagens elogiadas pelos clientes mais exigentes. E pelos mais ricos... Por seu lado, apesar de Lemonier ser o estereótipo do chefe de quem se deve fugir, Emma não tem qualquer vontade de procurar trabalho noutro lugar, e muito menos de abrir o seu próprio salão. Pensar no futuro é como inclinar-se sobre um abismo vertiginoso. A ligação com a jardinagem surge-lhe repentinamente: nada se planta sem raízes, no entanto, é-lhe impossível planear a vida para além do fim de semana. Não com aquele passado que a puxa para trás…
O café está morno. Emma engole-o de um só trago. São 7h10 e a ideia de estar à espera da hora de partida, toda aperaltada, exaspera-a antecipadamente. Terá de estar no centro às 10 horas em ponto e a delegação por volta das 11 horas. Lemonier foi muito claro: devem estar todos nos seus postos! Se se apressar, ainda pode ir ver o mar.
As ruas estão quase desertas; apenas alguns velhos a puxar um carrinho de compras ou um cão relutante. Emma faz força nos pedais. A bicicleta só tem três mudanças e uma das rodas está meio deformada, mas ela usa-a todos os dias, haja vento ou neve. A sua amiga Pénélope não compreende como é que alguém pode passar sem um carro, convencida de que aquilo faz parte do «problema Emma»: ser linda, solteira, viver segundo os seus próprios princípios e com alguns problemas de sociabilização. Emma lembra-lhe o seu empenho em termos ecológicos. Em vão. Pénélope não quer saber disso. Jeanne também era uma grande amante da natureza, e uma ativista empenhada. Para Emma, a sua bicicleta é um amuleto da sorte e uma recordação dos valores que a mãe lhe transmitiu.
Por vezes, a sua necessidade de relacionar tudo com a mãe fá-la sentir-se como uma criança que se apraz a coçar uma crosta até sangrar. Precisa da sua dose para funcionar, um misto de culpa e de memórias felizes...
Ao chegar ao boulevard de la Teignouse, entra na ciclovia ao longo da costa. O céu oferece uma visão dantesca de luzes e sombras refletidas na superfície da água, que vão do verde ao preto. Nos dias de tempestade, a ondulação encharca o pavimento, mas o tempo está a ficar bom. Inebriada pelo vento, acelera a cadência, a boca aberta para abocanhar os salpicos. O oceano reacende-lhe a sensação de ser livre como o ar, esquiva.
Começa a cantarolar ao ritmo do seu andamento a balada de Pete Doherty, The Fantasy Life of Poetry and Crime.
Pouco antes da Ponta de Conguel, no fim da península, detém-se para vestir uma camisola. Uma súbita rajada de vento rouba-lhe a alegria. Conguel é a praia preferida da mãe. Era. Emma confunde os tempos verbais de propósito, é a sua maneira de manter uma ligação ou de preencher o vazio, pouco importa. As recordações, a bicicleta, este pedaço de terra batida pelo vento do Norte, as conversas na sua cabeça... Jeanne está ali, algures.
– Tenho saudades tuas, mãe!
O mundo dos vivos e dos mortos sempre lhe pareceu flutuante. Não há luto, não há ausência real, antes uma necessidade física de carícias e cheiros. Emma daria quase tudo para voltar a sentir o abraço da mãe. Faz nove anos este ano, o fim de um ciclo.
Mataste-a...
Enxota a pequena voz da cabeça e acelera, passa pelo parque de campismo de quatro estrelas, a longa alameda das casas móveis. Acossados pelo vento, os pinheiros assemelham-se a guarda-chuvas virados ao contrário.
Depois do parque de estacionamento, o caminho de areia que conduz ao pontão está interdito a veículos de duas rodas. Ela continua, sem fazer caso do sinal. Às 8h15, não haverá muita gente por ali para lhe chamar a atenção sobre a transgressão.
Chegada junto ao painel informativo, desmonta da bicicleta e caminha em direção ao mar, com os braços abertos como uma maromba. O vento é de tal forma forte que lhe tira o fôlego e lhe deixa na língua um sabor salgado de lágrimas. A mãe contou-lhe que ela já fazia isso aos três anos, com os pequenos braços esticados como asas, convencida de poder voar para longe.
«Tinha medo que a borrasca te levasse, meu amor…»
Aqui sente a presença da mãe em todo o lado. Emma tenta imaginar a sua figura graciosa a adentrar nas ondas. Jeanne era rebelde e destemida, assaz bonita para alvoraçar corações, e gostava de nadar no inverno, «para fazer as minhas células valsar», dizia ela a rir.
Ao largo, duas ilhotas emergem do mar, «le petit trou» e «le grande trou». Na maré baixa pode-se caminhar até Toul-Bihan. Em Toul-Bras encontraram sepulturas gaulesas.
Ali é que deviam repousar os ossos da sua mãe.
No dia de Todos os Santos, Michel, seu pai, insiste em arrastá-la até ao cemitério. Para Emma, isso não tem qualquer sentido, exceto o mais trivial: uma fila de corpos em decomposição encerrados em caixões. Porque se prenderia a alma a este lugar lúgubre? Pensar no pai provoca-lhe um arrepio de exasperação. Por muito que o ame, o conformismo dele ultrapassa-a. Como é que Gérard, o sapateiro, herói de guerra, pode ter gerado um filho tão dócil, já derrotado?
E Jeanne? Deviam estar muito apaixonados um pelo outro...
Emma despe-se à pressa. Vestiu um velho fato de banho e pôs na mochila roupa interior e uma toalha. O vento gela-a em poucos segundos. Caminha pela pedra de granito até à beira da água. Uma onda lava-lhe os pés, uma mistura de febre e de amor, como se a pedra e a sua mãe tivessem nascido da mesma fonte. Sente a cabeça à volta, mas de exaltação. Agacha-se, com as mãos espalmadas sobre a pedra para melhor lhe sentir a força nas suas palmas.
- Estás a ver, eu também faço as minhas células valsar!
O vento nada responde, ela levanta-se então e entra no mar. A água gelada tem o efeito de uma dentada. Grita de dor, gelada até aos ossos. Se alguém a surpreender, ela vai ter um sermão sobre os perigos da irresponsabilidade, mas não se importa. Sem risco, o prazer não seria tão intenso.
Não penses!
Lança-se em direção à onda e começa a nadar num crawl frenético, levada pela força do oceano. O choque térmico transformou o frio em queimadura e provoca-lhe uma descarga de energia pura.
A corrente arrasta-a para o largo, mas ela aproveita a contracorrente para não se afastar demasiado, impulsionada pela ondulação. Após um momento de luta para se manter na enseada, encontra finalmente o seu ritmo e a sua trajetória. Amiúde, levanta a cabeça para verificar se não se desviou em direção à ilha, de onde seria impossível regressar. É como uma luta entre a água e ela, a minúscula rapariga animada pela sua raiva contra o oceano titânico.
Naquele momento, Emma está completamente viva, nada mais existe.
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