Como já foi aqui escrito, num mundo justo, o nome de Silvina Ocampo surgiria sempre de remate cada vez que alguém menciona Jorge Luis Borges ou Adolfo Bioy Casares quando fala dos melhores escritores argentinos. Ser amiga íntima do primeiro e mulher do segundo terá contribuído para que ficasse na sombra dos dois, assim como a sua recusa em dar entrevistas tê-la-á impedido de se apresentar a um público mais vasto. No entanto, foi a sua própria escrita de ficção tida como cruel e obsessiva — com a infância, com crianças, com a memória — o que a privou de uma maior aceitação, ao contrário da sua poesia, mais ortodoxa e, por isso, bem aceite.
Escreve a autora Mariana Enriquez — de certa forma sua herdeira e um dos grandes nomes argentinos da atualidade — que “durante os seus anos de atividade, Silvina Ocampo foi uma escritora famosa mas pouco lida”, sendo que essa fama veio sobretudo das suas origens aristocráticas. “A sua literatura era demasiado peculiar: uma ficção ambígua e excessiva que era indecifrável para um público mais alargado do seu tempo”, continua. Mas os tempos agora são outros e, misturando “a insanidade de Angela Carter com a absoluta originalidade de Clarice Lispector”, Ocampo tem hoje leitores preparados para a sua natureza subversiva — inclusive em Portugal.
Depois de editar “A Fúria” no ano passado, a Antígona traz agora mais um volume de contos — 44, para sermos precisos — para o nosso país em “As Convidadas”, considerado como um dos seus melhores, enquadrado já na fase de maturidade literária de Ocampo. Com doses generosas de surrealismo e do fantástico — figurando crianças surdas-mudas de asas, metamorfoses, aparições e outras bizarrias —, a escritora perverte o quotidiano e junta-lhe umas pinceladas de humor negro.
De resto, talvez seja mesmo um traço do país das Pampas, o de olhar para o copo meio vazio, com mosquitos a boiar e poeiras a flutuar que podem nem existir. Ou apenas uma predisposição inata aos escritores. Talvez esta última frase seja abusiva, mas não o é certamente com Antonio di Benedetto, autor de uma das mais importantes trilogias literárias da Argentina do século XX, a “Trilogia da Espera”. Apesar de reconhecido pela crítica durante a sua carreira, a sua influência é tal que, segundo outro grande escritor seu conterrâneo, Juan José Saer, a cultura argentina tem para com ele “uma imensa dívida que ainda está por saldar”.
Estando duas partes dessa trilogia já publicadas em Portugal — “Zama” e “O Silencieiro” —, a Cavalo de Ferro completa o trio com “Os Suicidas”. No cerne desta história está um jornalista com tendência para o solipsismo, que é incumbido de escrever crónicas sobre uma onda de suicídios que têm ocorrido na cidade. A questão é que, ao enveredar neste projeto, começa a ficar obcecado com a natureza da morte auto-infligida, especialmente tendo em conta que há mais de uma dezena de suicidas na família, incluindo o seu pai, que se matou aos trinta e três anos, idade que o protagonista está em vias de completar. O mesmo Saer escreveu que os personagens de di Benedetto “tinham uma afinidade distante com certos heróis de Dostoiévski", porque tal como os protagonistas do mestre russo “tinham uma particular sensibilidade para a vilania, a sua e a dos outros”.
Passando de vilões para heróis, abandone-se a sordidez, mas não a natureza trágica, e essa característica existe aos molhos nas histórias da antiguidade grega, em particular os eventos da Guerra de Tróia. Aquiles é o exemplo por excelência de um herói fadado à destruição, mas Madeline Miller considerou que o seu fiel companheiro, Pátroclo, não foi menos importante ou desgraçado. Foi o seu amor pela “Ilíada”, de Homero, lida a si enquanto criança, que a impeliu a adaptar este épico grego aos tempos contemporâneos e a contar a história destes dois homens em “O Canto de Aquiles” — e ter um mestrado em estudos clássicos também ajudou.
Livro editado originalmente em Portugal pela Bertrand Editora em 2013, encontrava-se há muito esgotado, razão que levou a Minotauro a resgatá-lo da escassez. A reedição, aliás, é tanto mais oportuna porque o livro teve um enorme aumento de popularidade quando passou a ser recomendado no TikTok. É fácil perceber porquê: trocando a formalidade do épico de Homero pela simplicidade e secura da linguagem mais próxima dos livros de fantasia e romance atuais, teve um ressurgimento notável, mais até do que quando foi inicialmente lançado e aclamado pela crítica. Afinal de contas, foi o que valeu a Miller o Women's Prize for Fiction, apenas o quarto dado a uma obra de estreia.
De milénios de distância para um passado não tão longínquo assim, é um lugar comum dizer-se que quem não aprende com os erros da história, arrisca-se a repeti-los. A frase é discutível, porque as circunstâncias são sempre diferentes (por isso é que é mais seguro dizer que a história não se repete, mas rima), mas teria sido útil tanto à URSS nos anos 80 e 90 como aos EUA e ao Reino Unido no início do século perceberem porque é que o Afeganistão é conhecido como “o cemitério dos impérios” — e os britânicos perceberam isso a mal da primeira vez.
A chamada Primeira Guerra Anglo-Afegã, de 1839 a 1842, foi um fracasso tremendo para o Império Britânico. Se, no início, aproximadamente 20 mil soldados coloniais submeteram o país e repuseram um líder favorável no trono, passados dois anos da ocupação o povo afegão aderiu à chamada para a jihad e forçou as tropas britânicas a recuarem para as montanhas, onde foram submetidas à humilhação militar britânica do século XIX.
Esses anos são detalhadamente narrados pelo historiador escocês William Dalrymple em “O Regresso de um Rei, A Batalha pelo Afeganistão”, obra editada pela Dom Quixote que vai além do âmbito histórico, sendo também um livro de viagens. Dalrymple deslocou-se para a região, recorrendo a fontes afegãs e indianas até agora inexploradas para produzir mais um livro multipremiado. Escrito em 2012, já havia aqui temores quanto ao que aconteceria com a saída das forças ocidentais do Afeganistão: os acontecimentos de 2021 dar-lhes-iam razão.
Do passado para o tempo presente e como vivê-lo, talvez nenhum outro filósofo português esteja tão empenhado em destrinçar o caos que nos rodeia como André Barata. Da série de livros que tem publicado com a Documenta, primeiro veio a reflexão quanto à forma como nos deixamos consumir pelo tempo frenético e em constante suspensão (e como emancipar-nos dessa situação) em “E se Parássemos de Sobreviver? Pequeno Livro para Pensar e Agir Contra a Ditadura do Tempo”. Depois, surgiu o confronto do paradoxo de um mundo cada vez mais interconectado, mas onde as pessoas estão cada vez mais isoladas e desligadas, com “O Desligamento do Mundo e a Questão do Humano”.
Agora, vem a análise de como nos relacionamos com o nosso ambiente — não apenas no sentido ecológico do termo, mas literalmente o que nos rodeia. Em “Para Viver em Qualquer Mundo - Nós, os Lugares e as Coisas”, o professor e investigador da Universidade da Beira Interior apela a que revolucionemos a forma como nos ligamos aos lugares e lhes conferimos sentido, não como espaços permutáveis, equivalentes entre si, mas como sítios onde criamos relações de sentido reais. E se o título refere “qualquer mundo”, é porque a solução não está no lugar em si, geográfico, mas em nós, e como podemos transportar esta ideia para qualquer lado.
Outros lançamentos:
Pode ter em conta também ainda a edição do tratado fundacional "Da Guerra" (Relógio d'Água), em que o general prussiano do século XIX Carl von Clausewitz trabalhou até à sua morte, o romance YA "A Casa no Mar Cerúleo" (Desrotina), que valeu a TJ Klune o prémio Alex, o memorial bem humorado "Manual de Anti-Protocolo: Notas Inconvenientes de um Diplomata" (Oficina do Livro), onde Henrique Silva Borges documenta a sua vida enquanto embaixador por Portugal, e "Entrevistas Corsárias" (VS Editores), conjunto de entrevistas e escritos do eterno realizador, escritor e polemista italiano Pier Paolo Pasolini.
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