O “Blast From the Past” é uma das rubricas do podcast "Start Now, Cry Later", uma empreendimento Startup Portugal conduzido pela jornalista Mariana Barbosa. Nesta rubrica, a Startup Portugal mergulha nos anais da história para encontrar as tecnologias que se esperavam mortas, mas continuam saudáveis. Como é o caso das cassetes — sim, esse paralelepípedo que detinha o monopólio de distribuição de música, principalmente romântica e o dito Pimba, em bombas de gasolina.
Esperamos todos que um objeto tão volumoso em relação ao tempo de música que consegue aguentar estivesse completamente fora de circulação na era do streaming, do Spotify, do YouTube e do consumo massificado de dados convertidos em sons. Estragamos-vos desde já o final deste texto para vos dizer: tal não aconteceu. Parafraseando Mark Twain, aquando se fez circular notícias da sua morte de forma prematura, os rumores sobre a morte da cassete são francamente exagerados. Mais ainda em Portugal do que noutros pontos do mundo. Mas já lá vamos.
A cassete é uma parte fundamental da partilha de música dos anos 90, sendo mesmo a tecnologia essencial para alguns dos impérios de hip hop que surgiram nos Estados Unidos, por exemplo. A cassete, pela sua produção barata e formato relativamente portátil, serviu como principal meio de distribuição de artistas alternativos até que a indústria não pudesse ignorar mais o seu potencial comercial.
O próprio 50 Cent, nome essencial do hip hop na viragem do século, começou a ganhar reputação pelas constantes “mixtapes” (cassetes gravadas em formato caseiro) que colocava a circular, e foi assim que captou a atenção do lendário produtor Dr. Dre. Mesmo antes de Curtis Jackson, nome civil do rapper 50 Cent, os lendários Wu-Tang Clan varreram as ruas de Nova Iorque com as suas cassetes, empreendimento que lhes valeu o estatuto de que hoje gozam — não é por acaso que constam do círculo de amigos de Bill Murray.
Na Europa, a história da cassete poderá ser um pouco diferente, mas as suas características únicas serviram de matéria para uma série de selos que funcionavam à margem da indústria discográfica, um fenómeno que prolongou a vida do formato até aos dias de hoje. No nosso jardim à beira mar plantado, o formato viveu além do consumo — pois é aqui, mais especificamente na Maia, que ainda funciona a última fábrica que produz cassetes na península Ibérica: a eDisco. De resto, a atividade da eDisco serve já de prova de que a cassete está viva e recomenda-se, pelo menos a quem ainda tiver como as ouvir.
Já não é de agora, o regresso do culto dos formatos físicos. Figuras como Nuno Markl, através dos seus vários programas, trouxeram os discos em vinil de volta para a ribalta, apesar de este nunca ter saído de circulação graças à cultura DJ. Contudo, as rodelas prensadas voltaram aos escaparates e artistas como Adele tomaram em força as linhas de produção das fábricas do Centro da Europa, que mantiveram o culto das 33 ou das 45 rotações a rodar. As montras das grandes lojas de conteúdos média, cada vez mais preenchidas com discos, só vieram dar força à tendência.
A cassete apela em força a esse mesmo culto do objeto, mas é nas suas fragilidades que se torna ainda interessante — a sua qualidade não se aproxima da de um disco de vinil, nem a facilidade de se encontrar um leitor, mas tudo isso se reflete no preço de custo, muito mais acessível a qualquer artista independente. Consequentemente, os lucros que estes têm acabam por ser superiores por poderem vender o objeto a quantias módicas que não impactem as suas margens, e por funcionar numa lógica quase de economia marginal, sem grandes cadeias de lojas ou discográficas envolvidas na distribuição.
Assim, não só sabemos que a eDisco, o último Moicano das cassetes na península, continua a funcionar, como a sua produção de cassetes nunca cessou, produzindo e distribuindo um pouco por toda a Europa. E com volumes de vendas crescentes. Os editores independentes portugueses mantiveram-se cientes desta realidade. Selos como os da Lovers & Lollypops (principalmente através da sub-editora Tapes, She Said), a Meifumado Fonogramas, ou a Holuzam recorrem ao formato frequentemente, e há mesmo quem se dedica a lançar maioritariamente a dita “tape”, como é o caso da Rotten/Fresh e da Labareda. Lá fora, pode-se ver esse fenómeno em editoras como a singular Awesome Tapes From Africa.
Se achavam que a cassete estava obsoleta, não estão a procurar nos sítios certos. O formato não desapareceu e parece tão vivo quanto antes, partilhando alguma dessa vitalidade com um conjunto de artistas que não caem nos ouvidos das grandes discográficas, mas que têm a capacidade de criar tendências e, verdade seja dita, vontade de correr os riscos que essas grandes empresas já não ponderam, sequer. A cassete é o capital de risco das artes sonoras, e as suas injeções rápidas de dinheiro têm salvo muita arte do esquecimento. A própria Câmara Municipal do Porto validou tal ideia ao apoiar o projeto Found Tapes Porto, que está a fazer um levantamento da produção de cassetes na cidade do Porto entre 2004 e 2019.
A cassete, mais do que um “blast from the past” é uma cultura de troca de ideias que mantém o tecido cultural pulsante e sedento de novidades. Mas é um blast from the past na mesma, e um que saiu diretamente do podcast "Start Now, Cry Later". Este conteúdo da Startup Portugal, onde este artigo foi originalmente pensado, pode ser ouvido através desta ligação.
Comentários