Prólogo
Olhei para o topo da árvore. Fetos e orquídeas brotavam do seu tronco, que desaparecia num emaranhado de lianas na copa. Muito acima de mim, um tucano levantava voo do seu poleiro com um grasnido, e um bando de macacos bugio entoava um lento rugido. A chuva deixara de cair e as folhas acima de mim vertiam pesadas gotas de água em chuveiros repentinos. Um nevoeiro baixo pairava sobre o chão.
As raízes da árvore enrolavam-se para fora a partir da base do tronco, desaparecendo nos tufos densos de folhas caídas que cobriam o solo da selva. Usei um pau para remexer o chão e afastar possíveis cobras. Uma tarântula saiu a correr. Ajoelhei-me, perscrutando o caminho abaixo do tronco da árvore e ao longo das suas raízes, numa massa de restos esponjosos em que as raízes mais finas se misturavam num grosso emaranhado vermelho e castanho. Do fundo, exalava um aroma fértil. Térmitas subiam pelo labirinto e um diplópode enrolava-se, fingindo‑se morto. A minha raiz desaparecia no chão. Com uma espátula, limpei a área em redor do local. Usei as mãos e uma colher para afastar a camada superficial de terra e escavei da forma mais delicada possível, destapando‑a lentamente à medida que se estendia a partir da árvore e se retorcia por baixo da superfície do solo.
Uma hora depois, eu escavara cerca de um metro. A minha raiz era agora mais fina que arame e começava a proliferar fortemente. Era difícil segui‑la, pois entrelaçava‑se com as vizinhas; deitei-me de bruços e baixei o rosto para o pequeno buraco que escavara. Algumas raízes tinham um cheiro intenso a nozes, outras, um cheiro mais amargo a madeira, mas as raízes da minha árvore tinham um aroma apimentado e resinoso quando as raspava com a unha. Durante várias horas, movi-me pelo chão, arranhando e cheirando a cada centímetro para me certificar de que não havia perdido a linha.
À medida que o dia avançava, surgiram mais filamentos da raiz que eu destapara e escolhi alguns deles, seguindo-os até às pontas, onde se enterravam em fragmentos de folhas ou rebentos em decomposição. Mergulhei as extremidades num frasco de água para lavar a lama e observei‑as através de uma lupa. As radículas ramificavam-se como uma pequena árvore e a sua superfície estava coberta por uma fina película que parecia fresca e pegajosa. Eram estas estruturas delicadas que eu queria examinar. A partir destas raízes, uma rede fúngica entrelaçava-se no solo e em redor das raízes das árvores vizinhas. Sem esta rede fúngica, a minha árvore não existiria. Sem este tipo de redes fúngicas, nenhuma planta existiria onde quer que fosse. Toda a vida na terra, incluindo a minha, dependia destas redes. Puxei levemente a minha raiz e senti o solo a mover-se.
Introdução
Como é ser um fungo?
Há momentos no amor húmido em que o céu
tem ciúmes do que podemos fazer na Terra.
Hafiz
Os fungos estão em toda a parte, mas é difícil vê‑los. Estão dentro de nós e à nossa volta. Mantêm‑nos e a tudo de que dependemos. Neste preciso momento, os fungos estão a mudar o curso da vida, como vêm fazendo há mais de mil milhões de anos. Comem pedra, formam solos, digerem poluentes, alimentam e matam plantas, sobrevivem no espaço, provocam visões, produzem comida, criam medicamentos, manipulam o comportamento animal e influenciam a composição da atmosfera da Terra. Os fungos são uma chave para a compreensão do planeta em que vivemos, das nossas formas de pensar e de sentir, e dos nossos comportamentos. No entanto, as suas vidas decorrem principalmente fora da nossa vista, e mais de 90% das suas espécies ainda não estão documentadas. Quanto mais aprendemos sobre os fungos, menos sentido tudo faz sem eles.
Os fungos constituem um dos reinos da vida — uma categoria tão ampla e preenchida como a dos «animais» ou das «plantas». As leveduras microscópicas são fungos, bem como as extensas redes de fungos do mel, ou Armillaria, que são um dos maiores organismos do mundo. O detentor atual do recorde, no Oregon, pesa centenas de toneladas, estende-‑se por dez quilómetros quadrados e tem entre 2 mil e 8 mil anos. É provável que existam muitos espécimes maiores e mais antigos que ainda não foram descobertos.
Muitos dos acontecimentos mais dramáticos ocorridos na Terra foram — e continuam a ser — resultado da atividade fúngica. As plantas só saíram da água há cerca de 500 milhões de anos, graças à sua colaboração com os fungos, que serviram como os seus sistemas radiculares durante dezenas de milhões de anos até as plantas conseguirem desenvolver as suas próprias raízes. Hoje, mais de 90% das plantas dependem de fungos micorrizas — dos termos gregos para fungo (mykes) e raiz (rhiza) —, que podem ligar as árvores em redes partilhadas por vezes chamadas «Wood Wide Webs». Esta antiga associação deu origem a toda a vida reconhecível na Terra cujo futuro depende da capacidade constante de as plantas e os fungos formarem relações saudáveis.
As plantas podem ter enverdecido o planeta, mas, se pudéssemos regressar ao período Devoniano, há 400 milhões de anos, ficaríamos admirados com outra forma de vida: os Prototaxites. Estes pináculos vivos espalhavam-‑se por toda a paisagem. Alguns eram mais altos que edifícios de dois pisos. Nada se aproximava deste tamanho: havia plantas, mas não tinham mais de um metro de altura, e nenhum animal com espinha dorsal havia ainda saído da água. Pequenos insetos faziam as suas casas nos troncos gigantes, escavando câmaras e corredores. Este enigmático grupo de organismos — que se pensa terem sido fungos enormes — compôs as maiores estruturas vivas em terra firme durante pelo menos 40 milhões de anos, vinte vezes mais tempo do que a presença do género Homo.
Até aos nossos dias, os fungos fundaram novos ecossistemas em terra firme. Quando se formam ilhas vulcânicas ou quando os glaciares retrocedem e deixam a rocha a descoberto, os líquenes — uma união de fungos e algas, ou bactérias — são os primeiros organismos a estabelecer‑se e a formar o solo em que as plantas criam depois raízes. Em ecossistemas bem desenvolvidos, o solo seria rapidamente desagregado pela chuva se não fosse a densa malha de tecido fúngico que a mantém unida. Dos sedimentos profundos do fundo marinho até à superfície dos desertos, dos vales gelados da Antártida até aos nossos intestinos e orifícios, há poucos sítios no mundo onde não se encontrem fungos. Dezenas ou centenas de espécies podem existir nas folhas e nos caules de uma única planta. Estes fungos enredam‑se nas aberturas entre as células da planta, num bordado intrincado, e ajudam-‑na a defender-‑se das doenças. Nunca se encontrou uma planta que viva em condições naturais sem estes fungos; fazem tanto parte das plantas como as folhas ou as raízes.
A capacidade dos fungos de prosperar em tal variedade de habitats depende das suas diversas aptidões metabólicas. O metabolismo é a arte da transformação química. Os fungos são magos metabólicos e podem explorar, vasculhar e procurar alimentos de forma engenhosa, e as suas aptidões só se comparam às das bactérias. Usando misturas de potentes enzimas e ácidos, os fungos podem decompor algumas das substâncias mais resistentes do planeta, desde a lignina, a componente mais dura da madeira, a pedras, crude, plásticos de poliuretano e explosivos TNT. Alguns ambientes são demasiado extremos. Uma espécie identificada em resíduos de minas é um dos organismos mais resistentes à radiação alguma vez descobertos, que pode ajudar a limpar sítios de resíduos nucleares. O reator nuclear que explodiu em Chernobil abriga uma grande população destes fungos. Algumas destas espécies resistentes à radioatividade crescem até em direção a partículas radioativas «quentes» e parecem capazes de absorver a radiação como fonte de energia, tal como as plantas usam a energia da luz solar.
Os cogumelos dominam o imaginário popular relativo aos fungos, mas, tal como os frutos das plantas são uma parte de uma estrutura muito maior que inclui ramos e raízes, os cogumelos são apenas os corpos frutíferos dos fungos, o local onde se produzem os esporos. Os fungos usam esporos da mesma maneira que as plantas usam sementes: para se disseminar. Os cogumelos são a maneira como os fungos pedem ao mundo que os rodeia, desde o vento aos esquilos, que os ajudem a disseminar os esporos ou a não interferir neste processo. São as partes visíveis, picantes, cobiçadas, deliciosas e venenosas dos fungos. No entanto, os cogumelos são apenas um dos seus métodos, entre muitos: a esmagadora maioria das espécies fúngicas liberta esporos sem produzir cogumelos.
Todos absorvemos e respiramos fungos, graças às capacidades prolíficas dos corpos frutíferos fúngicos para dispersar esporos. Algumas espécies libertam esporos de forma explosiva, a uma velocidade dez mil vezes superior à do Space Shutle logo após o lançamento, chegando às centenas de quilómetros por hora — alguns dos movimentos mais rápidos alcançados por organismos vivos. Outras espécies de fungos criam os seus próprios microclimas: os esporos são transportados para cima por correntes de ar geradas pelos cogumelos quando a água evapora no seu himénio. Os fungos produzem cerca de 50 megatoneladas de esporos por ano — o equivalente ao peso de 500 mil baleias-‑azuis —, o que faz deles a maior fonte de partículas vivas no ar. Existem esporos nas nuvens, que influenciam o clima ao contribuírem para a formação das gotas de água que formam a chuva e dos cristais de gelo que formam a neve, a aguaneve e o granizo.
Esporos
Alguns fungos, como as leveduras que convertem o açúcar em álcool e que fermentam o pão, fazendo‑o crescer, consistem em organismos unicelulares que se multiplicam dividindo‑se em dois. No entanto, a maioria dos fungos forma redes de muitas células, conhecidas como hifas: finas estruturas tubulares que se ramificam, fundindo‑se e enredando‑se na filigrana anárquica do micélio. O micélio descreve o hábito mais comum dos fungos, que não é tanto uma coisa, mas antes um processo — uma tendência exploratória e irregular. A água e os nutrientes fluem através de ecossistemas no interior de redes de micélios. O micélio de algumas espécies de fungos é eletricamente excitável e transporta ondas de atividade elétrica ao longo das hifas, análogas aos impulsos elétricos nas células nervosas dos animais.
Micélio
As hifas compõem o micélio, mas também criam estruturas mais especializadas. Os corpos frutíferos, como os cogumelos, surgem da feltragem de fios de hifas. Estes órgãos podem realizar muitas ações além de expelirem esporos. Alguns, como as trufas, produzem aromas que fazem deles um dos alimentos mais caros do mundo. Outros, como os cogumelos coprino-cabeludo (Coprinus comatus), são capazes de atravessar asfalto e de levantar pesadas massas de pavimento, embora não sejam compostos de materiais duros. Este cogumelo pode ser frito e comido. Se o deixarmos num frasco, a sua carne branca desfaz‑se e transforma-se em tinta preta passados alguns dias (as ilustrações deste livro foram desenhadas com tinta de Coprinus).
O seu engenho metabólico permite que os fungos forjem uma ampla variedade de relações. Seja nas raízes ou nos rebentos, as plantas, desde que existem, dependem dos fungos para a sua nutrição e defesa. Os animais também dependem de fungos. Depois dos humanos, os animais que formam uma das maiores e mais complexas sociedades são as formigas‑cortadeiras. As suas colónias podem chegar a ter mais de 8 milhões de indivíduos, com ninhos subterrâneos que se estendem por mais de trinta metros. A vida das formigas-cortadeiras gira em torno de um fungo que cultivam em câmaras cavernosas, alimentando-o com fragmentos de folhas.
As sociedades humanas não estão menos entrelaçadas com os fungos. As doenças causadas por fungos provocam milhares de milhões de dólares de perdas — o fungo da brusone do arroz arruína uma quantidade de arroz suficiente para alimentar mais de 60 milhões de pessoas todos os anos. As doenças fúngicas das árvores, desde a doença holandesa do ulmeiro até ao cancro do castanheiro, transformam as florestas e as paisagens. Os Romanos oravam ao deus do míldio, Robigo, para evitar as doenças fúngicas, mas não foram capazes de acabar com as fomes que contribuíram para o declínio do Império Romano. O impacto das doenças fúngicas está a aumentar em todo o mundo: as práticas agrícolas não-‑sustentáveis reduzem a capacidade das plantas de estabelecerem relações com os fungos benignos de que dependem. O uso generalizado de químicos fungicidas conduziu a um aumento sem precedentes de novas superbactérias fúngicas que ameaçam a saúde dos seres humanos e das plantas. À medida que os humanos dispersam fungos causadores de doenças, criam-se novas oportunidades para a sua evolução. Nos últimos cinquenta anos, a doença mais mortífera alguma vez registada — um fungo que afeta os anfíbios — foi disseminada pelo mundo através do comércio humano. Levou à extinção de noventa espécies anfíbias e ameaça eliminar mais de uma centena de outras espécies. A variedade de banana que representa 99% das exportações globais de bananas, a Cavendish, está a ser dizimada por uma doença fúngica e pode extinguir-‑se nas próximas décadas.
No entanto, tal como as formigas-cortadeiras, os seres humanos aprenderam a usar os fungos para resolver muitos problemas prementes. De facto, é provável que as nossas soluções fúngicas sejam anteriores ao Homo sapiens. Em 2017, investigadores reconstruíram as dietas dos homens de Neandertal, primos dos humanos modernos que se extinguiram há cerca de 50 mil anos. Descobriram que um indivíduo que tinha um abcesso dentário comia um tipo de fungo, um bolor produtor de penicilina, o que implica conhecimento das suas propriedades antibióticas. Há outros exemplos menos antigos, incluindo o «Homem do Gelo», um cadáver do Neolítico extremamente bem conservado descoberto no gelo glacial, que data de há cinco mil anos. No dia em que morreu, o Homem do Gelo levava uma sacola com molhos do fungo amadou (Fomes fomentarius), que usava quase de certeza para fazer fogo, e fragmentos cuidadosamente preparados do cogumelo políporo de bétula (Fomitopsis betulina), muito provavelmente usado como medicamento.
Os povos indígenas da Austrália tratavam feridas com bolores colhidos no lado sombreado dos eucaliptos. No Talmude judaico, aparece um remédio de bolor chamado «chamka», que consiste em milho bolorento impregnado de vinho de tâmara. Antigos papiros egípcios de 1500 a. C. referem-se às propriedades curativas do bolor; e, em 1640, o ervanário do rei em Londres, John Parkinson, descreveu o uso de bolores para tratar feridas. No entanto, foi apenas em 1928 que Alexander Fleming descobriu que um bolor produzia um químico, chamado penicilina, capaz de matar bactérias. A penicilina tornou-se o primeiro antibiótico moderno e, desde então, salvou inúmeras vidas. A descoberta de Fleming é geralmente considerada um dos momentos mais marcantes da medicina moderna e terá até ajudado a alterar o equilíbrio de poder na Segunda Guerra Mundial.
A penicilina, um composto que podia proteger os fungos das infeções bacterianas, também pode defender os humanos. Isto não é invulgar: embora os fungos sejam tradicionalmente ligados às plantas, são, na verdade, mais aparentados com os animais — um exemplo do tipo de erro categorial que os investigadores cometem nos seus esforços para compreender a vida dos fungos. Ao nível molecular, os fungos e os humanos são suficientemente parecidos para beneficiarem de muitas das mesmas inovações bioquímicas. Quando usamos fármacos produzidos por fungos, estamos geralmente a adotar uma solução fúngica e a realojá-la nos nossos corpos. Do ponto de vista farmacêutico, os fungos são prolíficos, e, hoje, dependemos deles para muitos outros químicos além da penicilina: a ciclosporina (um fármaco imunodepressor que possibilita o transplante de órgãos), as estatinas para reduzir o colesterol, grande número de compostos antivirais e anticancerígenos (incluindo o famoso fármaco Taxol, originalmente extraído dos fungos que vivem nos teixos), já para não falar do álcool (fermentado por uma levedura) e da psilocibina (o composto ativo dos cogumelos psicadélicos que, em ensaios clínicos recentes, revelou ser capaz de combater a depressão profunda e a ansiedade). Das enzimas usadas na indústria, 60% são geradas por fungos e, de todas as vacinas, 15% são produzidas por estirpes de levedura modificadas. O ácido cítrico, produzido por fungos, é usado em todas as bebidas gaseificadas. O mercado global dos fungos comestíveis está a crescer fortemente e calcula-‑se que aumente dos 42 mil milhões de dólares em 2018 para os 69 mil milhões em 2024. As vendas de cogumelos medicinais vêm aumentando todos os anos.
As soluções fúngicas não se limitam à saúde humana. Algumas tecnologias fúngicas radicais podem ajudar‑nos a responder a alguns dos muitos problemas decorrentes da atual devastação ambiental. Os compostos antivirais produzidos por micélio fúngico reduzem o problema do desaparecimento das colónias de abelhas produtoras de mel. Os apetites vorazes dos fungos podem ser usados para decompor poluentes, como o crude dos derramamentos de petróleo, num processo conhecido como «micorremediação». Na «microfiltração», a água contaminada passa por grelhas de micélio, que filtram os metais pesados e decompõem as toxinas. Na «micofabricação», produzem-se materiais de construção e têxteis a partir de micélio, que substituem os plásticos e o couro em muitas aplicações. As melaninas fúngicas, pigmentos produzidos por fungos resistentes à radiação, são uma nova e promissora fonte de biomateriais resistentes à radiação.
As sociedades humanas giraram sempre em torno dos prodigiosos metabolismos fúngicos. Levar-nos‑ia meses a recitar uma lista completa dos feitos químicos dos fungos. O certo é que, apesar do seu potencial e do papel central que desempenharam em muitos fascínios humanos antigos, os fungos receberam uma fração minúscula da atenção dada aos animais e às plantas. A melhor estimativa sugere que existem entre 2,2 milhões e 3,8 milhões de espécies de fungos no mundo — seis a dez vezes o número estimado de espécies de plantas —, o que significa que só foram descritas 6% de todas as espécies de fungos. Estamos apenas a começar a compreender as complexidades e as sofisticações das vidas dos fungos.
Desde que me lembro, sempre me senti fascinado pelos fungos e pelas transformações que provocam. Um tronco sólido transforma-‑se em solo, um bocado de massa cresce para se tornar pão, um cogumelo irrompe da noite para o dia — mas como? Enquanto adolescente, lidei com a minha perplexidade tentando arranjar maneiras de me envolver com os fungos. Apanhava cogumelos e cultivava-os no meu quarto. Mais tarde, fabriquei álcool na esperança de ficar a saber mais sobre a levedura e a sua influência em mim. Maravilhava-me com a transformação de mel em hidromel e de sumo de fruta em vinho — e como o produto destas transformações podia transformar os meus sentidos e os dos meus amigos.
Na altura em que comecei os meus estudos formais sobre os fungos, quando me tornei aluno de licenciatura do Departamento de Ciências das Plantas em Cambridge — não existe um departamento de Ciências dos Fungos —, estava fascinado com a simbiose — as relações íntimas que se formam entre organismos sem parentesco. A história da vida revelava estar cheia de colaborações íntimas. Aprendi que a maioria das plantas depende de fungos para lhes fornecerem nutrientes do solo, como fósforo ou azoto, em troca de fontes de energia como os açúcares e os lípidos produzidos na fotossíntese — o processo pelo qual as plantas consomem luz e dióxido de carbono. A relação entre as plantas e os fungos deu origem à biosfera tal como a conhecemos e sustenta a vida na Terra até hoje, mas parecia que compreendíamos muito pouco. Como surgiram estas relações? Como é que as plantas e os fungos comunicam entre si? Como poderia eu aprender mais sobre a vida destes organismos?
Aceitei fazer um doutoramento para estudar as relações micor-rízicas nas florestas tropicais do Panamá. Pouco depois, mudei-me para uma estação de campo numa ilha dirigida pelo Smithsonian Tropical Research Institute. A ilha e as penínsulas circundantes faziam parte de uma reserva natural totalmente coberta por floresta, com exceção de uma clareira para os dormitórios, uma cantina e os laboratórios. Havia estufas para cultivar plantas, armários de secagem cheios de sacos de húmus, uma sala com microscópios e um grande congelador repleto de amostras: garrafas com seiva de árvores, morcegos mortos, provetas que continham carrapatos retirados de ratos‑de-espinho e de jiboias. No quadro dos avisos, havia cartazes com um anúncio de oferta de recompensas em dinheiro a quem recolhesse na floresta fezes frescas de ocelote.
A floresta vibrava de vida. Havia preguiças, pumas, cobras e crocodilos; havia lagartos basiliscos capazes de correr sobre a superfície da água sem se afundarem. Em poucos hectares viviam tantas espécies de plantas lenhosas como em toda a Europa. A diversidade da floresta refletia-se na rica variedade de biólogos que iam para lá estudá‑la. Alguns subiam às árvores para observar formigas. Outros saíam de madrugada todos os dias para seguir os macacos. Outros ainda estudavam os relâmpagos que atingiam as árvores durante as tempestades tropicais. Alguns passavam o dia pendurados em gruas a medir as concentrações de ozono na canópia da floresta. Outros aqueciam o solo usando elementos elétricos para perceber como as bactérias reagiam ao aquecimento global. Alguns estudavam a forma como os escaravelhos se guiam pelas estrelas. Abelhões, orquídeas, borboletas — parecia que não havia nenhum aspeto da vida da floresta que não fosse observado por alguém.
Fiquei surpreendido com a criatividade e o humor desta comunidade de investigadores. Os biólogos de laboratório passam grande parte do tempo a estudar pequenos pedaços da vida. As suas próprias vidas humanas são passadas fora dos frascos que contêm os objetos que estudam. Os biólogos de campo raramente têm tanto controlo. O mundo é o frasco e eles estão dentro dele. O equilíbrio de poder é diferente. As tempestades arrastam as bandeiras que marcam as suas experiências. Há árvores que caem nas suas parcelas. Há preguiças que morrem onde se planeava medir os nutrientes presentes no solo. As formigas Paraponera clavata picam-nas quando passam por elas. A floresta e os seus habitantes dissipam qualquer ilusão de que os cientistas têm o controlo. Rapidamente, instala‑se a humildade.
As relações entre as plantas e os fungos micorrízicos são essenciais para compreender o funcionamento dos ecossistemas. Eu queria aprender mais sobre como os nutrientes passavam pelas redes fúngicas, mas senti vertigens ao pensar no que acontecia debaixo do solo. As plantas e os fungos micorrízicos são promíscuos: muitos fungos podem viver dentro das raízes de uma única planta, e muitas plantas podem ligar-se a uma única rede de fungos. Deste modo, várias substâncias, desde os nutrientes aos compostos sinalizadores, podem passar entre as plantas através das ligações fúngicas. Em termos simples, as plantas relacionam-se em redes sociais através dos fungos. É isto que significa «Wood Wide Web». As florestas tropicais onde trabalhei continham centenas de espécies de plantas e de fungos. Estas redes são incrivelmente complexas, as suas implicações são enormes e ainda mal compreendidas. Imagine‑se a perplexidade de um antropólogo extraterrestre que descobrisse, após décadas de estudo da humanidade moderna, que tínhamos uma coisa chamada Internet. É mais ou menos assim que se sentem os ecologistas contemporâneos.
Nos meus esforços para investigar as redes de fungos micorrízicos que se difundem debaixo da terra, recolhi milhares de amostras de solo e de raízes de árvores, e triturei-as até se tornarem uma pasta da qual se extraíam as suas gorduras, ou ADN. Cultivei centenas de plantas em vasos com diferentes comunidades de fungos micorrízicos e medi o crescimento das suas folhas. Polvilhei com pimenta preta as zonas em redor das estufas para impedir que os gatos entrassem e trouxessem com eles comunidades de fungos do exterior. Aspergi as plantas com produtos químicos e segui o rasto destes químicos nas raízes e no solo para poder medir a quantidade que passava para os fungos a elas associados — mais trituramentos e massas. Percorri as penínsulas florestadas num pequeno barco a motor que se avariava com frequência, trepei cascatas em busca de plantas raras, andei quilómetros por caminhos lamacentos com uma mochila cheia de terra empapada e conduzi camiões por trilhos de lodo denso e vermelho da selva.
De entre os muitos organismos que viviam na floresta tropical, fiquei fascinado por uma espécie de flor pequena que brotava do chão. Estas plantas tinham a altura de uma chávena de café, os seus caules eram espigados e brancos, com uma única flor azul-clara equilibrada no topo. Eram uma espécie de genciana silvestre chamada Voyria, que há muito perdera a capacidade de realizar a fotossíntese. Por isso, também perdera a sua clorofila, o pigmento que possibilita a fotossíntese e que dá a cor verde às plantas. Eu estava perplexo com a Voyria. A fotossíntese é uma das características essenciais das plantas. Como podiam estas plantas sobreviver sem ela?
Tinha a suspeita de que as relações da Voyria com os seus parceiros fungos eram invulgares e quis saber se estas flores me poderiam dizer alguma coisa sobre o que acontecia debaixo da terra. Passei muitas semanas na selva à procura da Voyria. Algumas flores cresciam em clareiras da floresta e eram fáceis de encontrar. Outras escondiam-se atrás das raízes das árvores. Em parcelas com o quarto do tamanho de um campo de futebol, podia haver centenas de flores e tinha de as contar a todas. A floresta raras vezes era aberta ou plana, o que significava ter de trepar e de me curvar. De facto, significava quase tudo menos andar. Regressava todas as noites à estação de campo todo sujo e exausto. Ao jantar, os meus amigos ecologistas holandeses faziam piadas sobre as minhas bonitas flores com os seus caules frágeis. Estudavam o modo como as florestas tropicais armazenavam carbono. Enquanto eu rastejava pelo chão em busca de flores minúsculas, eles mediam o perímetro das árvores. No saldo das emissões de carbono da floresta, as Voyria eram insignificantes. Os meus amigos holandeses gozavam comigo por causa da minha pequena ecologia e dos meus delicados fascínios. Eu gozava com a sua ecologia bruta e o seu machismo. Na madrugada do dia seguinte, voltava a sair, perscrutando o chão na esperança de que aquelas curiosas plantas me ajudassem a encontrar o meu caminho neste mundo subterrâneo, oculto e fervilhante.
Seja em florestas, em laboratórios ou em cozinhas, os fungos mudaram a minha compreensão do funcionamento da vida. Estes organismos fazem-nos questionar as nossas categorias e, ao pensarmos neles, o mundo parece diferente. Foi a capacidade destes organismos de mudar a minha visão do mundo que me levou a escrever este livro. Tentei arranjar maneira de desfrutar das ambiguidades que os fungos apresentam, mas nem sempre é fácil sentirmo-nos confortáveis no espaço criado por questões em aberto. A agorafobia pode instalar‑se. É tentador ficar escondido em quartos pequenos construídos com respostas rápidas. Dei o meu melhor para resistir a esse impulso.
David Abram, um amigo, filósofo e ilusionista, costumava ser o mágico da casa no Alice’s Restaurant, no Massachusetts (famoso graças a uma canção de Arlo Guthrie). Todas as noites, percorria as mesas a manipular moedas entre os dedos; estas desapareciam, reapareciam onde não deviam, voltavam a desaparecer, dividiam-se em duas e desapareciam de novo. Certa noite, dois clientes regressaram ao restaurante pouco depois de terem saído e falaram a sós com David. Pareciam preocupados. Disseram‑lhe que, quando saíram do restaurante, o céu parecia de um azul assombroso e as nuvens, grandes e intensas. Será que ele lhes pusera alguma coisa nas bebidas? Nas semanas seguintes, continuou a acontecer o mesmo: os clientes regressavam para dizer que o trânsito parecia mais ruidoso do que antes, as luzes da rua pareciam mais brilhantes, os padrões dos passeios, mais fascinantes, a chuva, mais refrescante. Os truques de magia estavam a mudar a forma como as pessoas experienciavam o mundo.
David explicou-me o que pensava ter acontecido. As nossas perceções funcionam, em grande parte, por expectativa. É necessário menos esforço cognitivo para entender o mundo usando imagens preconcebidas atualizadas com uma pequena quantidade de nova informação sensorial do que para formar constantemente perceções totalmente novas a partir do nada. São as nossas preconceções que criam os pontos cegos onde trabalham os ilusionistas. Por desgaste, os truques com moedas aliviam o domínio das nossas expectativas sobre como as mãos e as moedas funcionam. E acabam por quebrar o domínio das nossas expectativas sobre as nossas perceções de um modo mais geral. Ao saírem do restaurante, o céu parecia diferente porque os clientes viam o céu como era realmente e não como esperavam que fosse. Libertos da ilusão das expectativas, apoiamo‑nos nos sentidos. O incrível é o abismo que existe entre o que esperamos encontrar e o que encontramos quando olhamos realmente.
Os fungos também nos iludem com as nossas preconceções. As suas vidas e os seus comportamentos são impressionantes. Quanto mais estudava os fungos, mais as minhas expectativas enfraqueciam, e os conceitos mais familiares começavam a parecer menos próximos. Dois campos da investigação biológica em rápido crescimento ajudaram‑me a navegar por estes estados de surpresa e forneceram-me balizas que guiaram a minha exploração do mundo dos fungos.
O primeiro é um conhecimento crescente dos muitos comportamentos sofisticados, capazes de resolver problemas, que evoluíram em organismos sem cérebro fora do reino animal. Os exemplos mais conhecidos são os bolores limosos, como o Physarum polycephalum (ainda que sejam amebas e não fungos, como são os verdadeiros bolores). Como veremos, os bolores limosos não têm o monopólio da resolução de problemas sem cérebro, mas são fáceis de estudar e tornaram-se organismos exemplares que abriram novas vias de investigação. O Physarum forma redes exploratórias constituídas por veias semelhantes a tentáculos e não possui sistema nervoso central — nem nada que se pareça com tal. No entanto, é capaz de «tomar decisões» comparando uma série de opções possíveis e é capaz de encontrar o caminho mais curto entre dois pontos num labirinto. Investigadores japoneses libertaram bolores limosos em placas de Petri que reproduziam a área metropolitana de Tóquio. Flocos de aveia marcavam os principais centros urbanos e luzes brilhantes representavam obstáculos, como montanhas — os bolores limosos não gostam de luz. Um dia depois, o bolor encontrou o percurso mais eficiente entre os flocos de aveia, formando uma rede quase idêntica à rede ferroviária de Tóquio. Em experiências semelhantes, os bolores limosos recriaram a rede de autoestradas dos Estados Unidos e a rede de estradas romanas da Europa Central. Um entusiasta dos bolores limosos falou‑me de uma experiência que realizou. Com frequência, perdia-se nas lojas da IKEA e passava muitos minutos a tentar encontrar a saída. Decidiu apresentar o mesmo problema aos seus bolores limosos e construiu um labirinto baseado na planta da loja IKEA mais próxima. Sem sinais ou funcionários que os orientassem, os bolores limosos encontraram rapidamente o caminho mais curto para a saída. «Como vês», disse-me ele a rir, «são mais espertos do que eu.»
Chamar «inteligentes» aos bolores limosos, aos fungos e às plantas depende do ponto de vista. As definições científicas clássicas de inteligência usam humanos como referência pela qual todas as outras espécies são medidas. Segundo estas definições antropocêntricas, os humanos estão sempre no topo das classificações da inteligência, seguidos dos animais que se nos assemelham (chimpanzés, bonobos, etc.), por sua vez seguidos de outros animais «superiores», mais acima ou mais abaixo numa tabela de classificação — uma grande cadeia de inteligência traçada pelos Gregos antigos, que, de uma forma ou de outra, persiste até aos nossos dias. Como estes organismos não se parecem connosco nem se comportam como nós — e como não têm cérebro —, são tradicionalmente colocados numa das últimas posições da escala. Com demasiada frequência, são vistos como o pano de fundo inerte da vida animal. No entanto, muitos deles são capazes de comportamentos sofisticados que nos levam a repensar o que significa, para os organismos, «resolver problemas», «comunicar», «tomar decisões», «aprender» e «recordar». Deste modo, algumas das hierarquias controversas que sustentam o pensamento moderno começam a tornar‑se mais flexíveis. E, enquanto se tornam mais flexíveis, as nossas atitudes ruinosas em relação ao mundo mais-do‑que-humano podem começar a mudar.
O segundo campo de investigação que me guiou neste estudo diz respeito ao modo como pensamos os organismos microscópicos — ou micróbios — que cobrem cada centímetro do planeta. Nas últimas quatro décadas, as novas tecnologias ofereceram um acesso sem precedentes à vida microbiana. O resultado? Para a minha comunidade de micróbios — o meu «microbioma» —, por exemplo, o meu corpo é um planeta. Alguns preferem a floresta temperada do meu couro cabeludo, outros, as planícies áridas do meu antebraço, outros ainda, a floresta tropical das minhas virilhas ou dos meus sovacos. Os nossos intestinos (que, se desdobrados, ocupam uma área de 32 metros quadrados), orelhas, dedos dos pés, boca, olhos, pele, bem como todas as superfícies, passagens e cavidades que temos estão infestados de bactérias e fungos. Temos mais micróbios do que células «próprias». Existem mais bactérias nos nossos intestinos do que estrelas na nossa galáxia.
Para os humanos, identificar onde acaba um indivíduo e começa outro não é, em geral, algo em que pensemos. Normalmente, é dado como garantido — pelo menos nas sociedades industriais modernas — que começamos onde os nossos corpos começam e acabamos onde os nossos corpos acabam. Os desenvolvimentos na medicina moderna, como o transplante de órgãos, baralham estas distinções; os desenvolvimentos na microbiologia abalam as suas fundações. Somos ecossistemas, compostos — e decompostos — por uma ecologia de micróbios cuja importância só agora começa a ser entendida. Os mais de 40 biliões de fungos que vivem no nosso corpo permitem-nos digerir a comida e produzir minerais essenciais que nos alimentam. Tal como os fungos que vivem nas plantas, protegem-nos das doenças. Guiam o desenvolvimento dos nossos corpos e dos nossos sistemas imunitários, e influenciam o nosso comportamento. Se não forem controlados, podem causar doenças e até matar‑nos. Não somos um caso especial. Até as bactérias têm vírus no seu interior (um nanobioma?). E até os vírus podem conter vírus ainda mais pequenos (um picobioma?). A simbiose é uma característica omnipresente da vida.
Participei numa conferência no Panamá sobre micróbios tropicais e, juntamente com muitos outros investigadores, passei três dias a surpreender-‑me cada vez mais com as implicações dos nossos estudos. Houve alguém que falou de um grupo de plantas que produzia um certo tipo de químicos nas suas folhas. Até então, esses químicos eram pensados como uma característica definidora desse grupo de plantas. No entanto, supôs‑se que esses químicos eram, na verdade, produzidos por fungos que viviam nas folhas da planta. A nossa ideia da planta teve de ser reformulada. Outro investigador contestou isto, sugerindo que talvez não fossem os fungos que viviam na folha a produzir esses químicos, mas sim as bactérias que viviam dentro dos fungos. A discussão prosseguiu dentro destas linhas. Dois dias depois, a noção de indivíduo aprofundara-se e expandira‑se de tal maneira que se tornou irreconhecível. Já não fazia sentido falar de indivíduos. A biologia — o estudo dos organismos vivos — transformara-‑se em ecologia — o estudo das relações entre os organismos vivos. Para complicar as coisas, entendíamos muito pouco. Os gráficos de populações microbianas projetados no ecrã tinham grandes secções marcadas como «desconhecido». Recordei-me de como os físicos modernos apresentam o Universo, do qual mais de 95% é descrito como «matéria escura» e «energia escura». A matéria e a energia são escuras porque nada sabemos sobre elas. No nosso caso, lidávamos com matéria biológica escura, ou vida escura.
Muitos conceitos científicos — do «tempo» às «ligações químicas», passando pelos «genes» e pelas «espécies» — não têm definições estáveis, mas continuam a ser categorias úteis para pensar. Em certo sentido, o conceito de «indivíduo» não é diferente: trata-se apenas de mais uma categoria para orientar o pensamento e o comportamento do ser humano. No entanto, a vida e a experiência quotidianas — já para não falar dos nossos sistemas filosóficos, políticos e económicos — dependem de tal maneira dos indivíduos que pode ser difícil assistir à dissolução do conceito. Onde é que isto «nos» deixa? E «eles»? «Eu»? «Todos»? «Qualquer um»? A minha reação às discussões na conferência não foi apenas intelectual. Como uma vez depois de um jantar no Alice’s Restaurant, em que me senti diferente: o familiar deixara de o ser. A «perda do sentido de autoidentidade, as ilusões de autoidentidade e as experiências de “controlo alienígena”», observou uma eminência no campo da investigação do microbioma, são potenciais sintomas de doença mental. Ficava tonto ao pensar em quantas ideias teriam de ser revistas, sobretudo os nossos conceitos culturalmente valiosos de identidade, autonomia e independência. Em parte, é este sentimento desconcertante que torna emocionantes os avanços na microbiologia. As nossas relações microbianas são tão íntimas quanto quaisquer outras. Conhecer melhor estas associações altera a experiência que temos dos nossos próprios corpos e dos lugares que habitamos. «Nós» somos ecossistemas que transpõem as fronteiras e ultrapassam as categorias. Os nossos «eus» emergem de um emaranhado complexo de relações que só agora começam a ser conhecidas.
O estudo das relações pode ser confuso. Quase todas são ambíguas. Terão as formigas‑cortadeiras domesticado o fungo de que dependem, ou terá sido o fungo a domesticar as formigas? Terão as plantas cultivado os fungos micorrízicos, ou serão os fungos os que cultivam as plantas? Para onde aponta a seta? Esta incerteza é saudável.
Tive um professor chamado Oliver Rackham, ecologista e historiador, que estudava os modos como os ecossistemas formaram as culturas humanas — e foram formados por estas — ao longo de milhares de anos. Levava-nos aos bosques das proximidades e contava-nos a história desses locais e dos seus habitantes humanos: lia as sinuosidades e as fendas nos ramos dos antigos carvalhos, observava onde brotavam as urtigas e anotava que plantas cresciam ou não cresciam numa sebe. Graças à influência de Rackham, a linha clara que eu imaginava que existia entre a «natureza» e a «cultura» começou a diluir‑se.
Mais tarde, ao fazer trabalho de campo no Panamá, deparei com muitas relações complexas entre os biólogos de campo e os organismos que estudavam. Brincava com os cientistas especializados nos morcegos, dizendo que, ao passarem as noites em claro e ao dormirem todo o dia, estavam a aprender os hábitos dos morcegos. Perguntavam‑me como é que os fungos me influenciavam. Ainda não tenho a certeza. Mas continuo a perguntar a mim mesmo como, na nossa dependência total dos fungos — como regeneradores, recicladores e tecedores de redes que ligam os mundos —, podemos ser mais influenciados por eles do que imaginamos.
E se é assim, esquecemo‑lo com facilidade. Com muita frequência, distancio‑me e vejo o solo como um lugar abstrato, uma vaga arena de interações esquemáticas. Eu e os meus colegas dizemos coisas como: «(Fulano de tal) registou um aumento aproximado de 25% no carbono do solo de uma estação seca para a estação húmida seguinte.» Como poderia ser de outro modo? Não temos maneira de experienciar a natureza do solo e as inúmeras vidas que nele florescem.
Com os instrumentos de que dispunha, tentei. Milhares das minhas amostras foram processadas por máquinas dispendiosas que agitavam, irradiavam e fragmentavam os conteúdos das provetas em sequências de números. Passei meses a olhar para o microscópio, imerso em emaranhados de hifas congeladas em atos ambíguos de acasalamento com células de plantas. Contudo, os fungos que eu podia ver estavam mortos, embalsamados e reproduzidos em cores falsas. Sentia-me um detetive desajeitado. Enquanto me agachava durante semanas a recolher lama para pequenas provetas, os tucanos grasnavam, os macacos uivavam, as lianas enredavam-se e os papa-formigas procuravam comida. As vidas microbianas, em especial as do subsolo, não eram acessíveis como o mundo vibrante e carismático da superfície. De facto, para que os meus achados ganhassem vida, para permitir que contribuíssem para uma melhor compreensão, era necessária imaginação. Não havia volta a dar.
Nos círculos científicos, a imaginação costuma significar especulação e é vista com alguma suspeição — nas publicações, é geralmente acompanhada de um aviso, para que se tenha cuidado. Parte da escrita para investigação consiste em limpar as ideias fantasiosas e fúteis e os milhares de tentativas e erros que dão origem a descobertas ínfimas. Nem todas as pessoas que leem um estudo querem saber de todo o processo de investigação. Além disso, os cientistas têm de parecer credíveis. Se espreitarmos os bastidores, podemos encontrar gente não muito apresentável. Mesmo nos bastidores, nas conversas noturnas que partilhava com os meus colegas, era invulgar entrar nos pormenores de como imaginávamos — de forma acidental ou deliberada — os organismos que estudávamos, fossem peixes, bromélias, lianas, fungos ou bactérias. Havia algo de embaraçoso em admitir que o emaranhado das nossas conjeturas, fantasias e metáforas infundadas pudesse ter ajudado a dar forma às nossas investigações. Seja como for, a imaginação faz parte da atividade quotidiana da investigação. A ciência não é um exercício de racionalidade fria. Os cientistas são — e sempre foram — sen-síveis, criativos, intuitivos, seres humanos completos, que formulam questões sobre um mundo que nunca foi catalogado e sistematizado. Sempre que perguntava o que estes fungos faziam e concebia estudos para tentar compreender os seus comportamentos, eu imaginava-‑os necessariamente.
Uma experiência obrigou-‑me a espreitar para os recantos mais profundos da minha imaginação científica. Voluntariei-me para participar num estudo clínico sobre os efeitos do LSD nas capacidades de cientistas, engenheiros e matemáticos para resolver problemas. O estudo fazia parte do amplo ressurgimento do interesse científico e médico no potencial desaproveitado das drogas psicadélicas. Os investigadores queriam saber se o LSD podia dar aos cientistas acesso ao seu inconsciente profissional e ajudá‑los a abordar problemas conhecidos a partir de novas perspetivas. A nossa imaginação, normalmente posta de lado, iria ser a estrela do espetáculo; os fenómenos seriam observados e até potencialmente medidos. Um grupo eclético de jovens investigadores fora recrutado através de cartazes expostos nos departamentos de ciência de todo o país («Tens um problema importante que precisa de solução?»). Era um estudo ousado. É sabido que é difícil organizar avanços criativos seja onde for, mais ainda na unidade de ensaios clínicos de medicamentos de um hospital.
Os investigadores que dirigiam a experiência colocaram desenhos psicadélicos nas paredes, instalaram um sistema de som para reproduzir música e iluminaram a sala com «luzes de ambiente» coloridas. Os seus esforços para dar um ar menos clínico à sala fizeram-na parecer mais artificial: uma admissão do impacto que eles — os cientistas — podem ter nos seus objetos de estudo. Era um ambiente que tornava visíveis muitas das inseguranças saudáveis que os investigadores enfrentam de forma quotidiana. Se os objetos de todas as experiências biológicas tivessem o seu equivalente de luz ambiente e de música relaxante, comportar-se-iam de maneira muito diferente.
Os enfermeiros certificaram-se de que eu bebesse o LSD exatamente às nove horas da manhã. Não desviaram os olhos enquanto não engoli todo o líquido, que fora misturado num pequeno copo de água. Deitei-me na cama do meu quarto de hospital e os enfermeiros recolheram uma amostra de sangue do meu antebraço. Três horas depois, quando cheguei à «altitude de cruzeiro», fui gentilmente encorajado pelo meu assistente a começar a pensar no meu «problema relacionado com o trabalho». Entre a bateria de testes psicométricos e de avaliações de personalidade que havíamos realizado antes da trip, pediram-nos que descrevêssemos os nossos problemas da forma mais minuciosa possível — os nós que perturbavam as nossas investigações. Impregnar os nós de LSD podia ajudar a desatá-los. Todas as minhas questões de investigação tinham que ver com fungos, e alegrava-‑me saber que o LSD derivava originalmente de um fungo que vive nas plantas de cultivo; uma solução fúngica para os meus problemas fúngicos. Que iria acontecer?
Eu queria usar o ensaio de LSD para pensar de forma mais geral sobre a vida das flores azuis, as Voyria, e as suas relações com os fungos. Como viviam sem a fotossíntese? Quase todas as plantas se sustentam absorvendo minerais de redes fúngicas micorrízicas presentes no solo; o mesmo acontecia com as Voyria, a julgar pela massa desgrenhada de fungos que se enredavam nas suas raízes. No entanto, sem a fotossíntese, as Voyria não podiam produzir os açúcares e os lípidos ricos em energia de que necessitavam para crescer. Onde é que as Voyria iam buscar a sua energia? Será que estas plantas absorviam substâncias de outras plantas verdes através das redes de fungos? Neste caso, teriam as Voyria algo a dar em troca aos seus parceiros fúngicos, ou seriam apenas parasitas — hackers da «Wood Wide Web»?
Deitei-me na cama do hospital com os olhos fechados e pensei em como seria ser um fungo. Imaginei-me debaixo da terra, rodeado de pontas que cresciam entrelaçadas umas nas outras. Bandos de animais globulares a pastar — raízes de plantas e o seu alvoroço —, o Oeste Selvagem do solo, com bandidos, foragidos, lobos solitários, jogadores de dados. O solo era um intestino externo sem horizonte — digestão e resíduos por toda a parte, rebanhos de bactérias a surfar em ondas de carga elétrica, sistemas climáticos químicos, autoestradas subterrâneas, abraço infeccioso e viscoso, fervoroso contacto íntimo por todos os lados. Ao seguir uma hifa fúngica numa raiz cavernosa, fiquei surpreendido com o refúgio que oferecia. Havia muito poucos fungos diferentes; sem dúvida, não se viam vermes nem insetos. Havia menos alvoroço e confusão. Era um santuário de paz pelo qual eu podia pagar. Seria isto que as flores azuis ofereciam aos fungos em troca do seu apoio nutricional? Abrigo da tormenta.
Não defendo a validade factual destas visões. São, quando muito, plausíveis e, no pior dos casos, disparates delirantes. Nem sequer eram erradas. No entanto, aprendi uma lição valiosa. O modo como eu me habituara a pensar nos fungos envolvia «interações» abstratas entre organismos que, de facto, pareciam os diagramas que os professores desenhavam nos quadros: entidades semiautomáticas que se comportavam segundo uma lógica do Game Boy de inícios dos anos 1990. Mas o LSD forçou‑me a admitir que eu tinha uma imaginação, e passei a ver os fungos de maneira diferente. Eu queria compreender os fungos, sem os reduzir a mecanismos de relógio que giram e emitem ruídos, como fazemos muitas vezes. Ao invés, -queria deixar que estes organismos me afastassem dos meus desgastados padrões de pensamento, imaginar as possibilidades que enfrentam, deixá‑los pressionar os limites do meu entendimento, autorizar-‑me a ser surpreendido — e confundido — pelas suas vidas entrelaçadas.
Os fungos habitam mundos imbricados; inúmeros fios atravessam estes labirintos. Segui todos os que pude, mas há fendas pelas quais não consegui passar, por mais que me esforçasse. Apesar da sua proximidade, os fungos são desconcertantes, as suas possibilidades são muito outras. Deveria isto afugentar-nos? Será possível que os humanos, sem os seus cérebros e corpos animais, e sem a sua linguagem, aprendam a compreender organismos tão diferentes? Como é que este processo nos modificaria? Num espírito otimista, imaginei este livro como um retrato deste ramo negligenciado da árvore da vida, mas é mais intricado do que isto. É um relato da minha viagem para a compreensão da vida dos fungos e, ao mesmo tempo, da marca que a vida dos fungos deixou em mim e em muitos outros que fui conhecendo, humanos e não só. «Que deverei fazer com a noite e o dia, com esta vida e esta morte?», escreve o poeta Robert Bringhurst. «Cada passo, cada sopro, rola como um ovo em direção à margem desta questão.» Os fungos rolam em direção à margem de muitas questões. Este livro decorre da minha experiência de espreitar para algumas destas margens. A minha exploração do mundo dos fungos levou‑me a reexaminar muito do que sabia. A evolução, os ecossistemas, a individualidade, a inteligência, a vida — nada disto é exatamente como pensava que era. Espero que este livro modere algumas das vossas certezas, tal como os fungos moderaram as minhas.
Comentários