“É um livro plural e singular”. António Vitorino descreve sumariamente a obra “Macau, entre Portugal e a China - 25 testemunhos”, apresentada no Palácio Galveias, na Biblioteca Municipal de Lisboa, no passado mês de dezembro, dias antes da celebração dos 25 anos da transferência de soberania portuguesa da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) para a República Popular da China, a 19 de dezembro de 2024.
“É plural porque engloba diferentes visões dos períodos da história de Macau e diferentes perspetivas, do desporto à gastronomia, da política à economia”, assinalou ao referir-se à coletânea de 25 vozes ligadas à história de Macau e de Portugal.
“E é singular porque todos os testemunhos têm um traço. Sublinha a natureza única e exclusiva de Macau, da identidade de Macau enquanto espaço humano e territorial”, definiu o antigo secretário-adjunto do governador de Macau (1986-1987).
Uma singularidade retirada das páginas da “A Quinta Essência”, 1999, último romance de Agustina Bessa-Luís e cujo excerto é trasladado para a introdução da obra editada pela Âncora Editora (302 páginas). “Aquilo a que se chama de singularidade, a convivência não sei se só de cerimónia de línguas e culturas, costumes e modos de pensar, serviu para marcar a sua identidade”, lê-se.
Respeito mútuo e a transição de sucesso em Macau
À margem de uma cerimónia que juntou, entre outros, o ex-presidente da República Ramalho Eanes, o antigo primeiro-ministro Cavaco Silva e Vasco Rocha Vieira, o governador que trouxe de volta a bandeira nacional hasteada em Macau, António Vitorino destacou o “respeito” na transição da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) para a República Popular da China
“Sem respeito não se cria confiança e o sucesso da transição de Macau dependia da confiança de todas as partes, das comunidades do território e dos países que assinaram a declaração conjunta, República Popular da China, Macau e Portugal”, sublinhou em conversa com o SAPO24.
“Demonstrámos esse respeito mútuo, pela história e pela dignidade das comunidades e isso fez da transição de Macau uma história de sucesso”, realçou, ao referir-se ao território entregue no século XVI (1553-1557) a Portugal durante a Dinastia Ming.
No processo de transição iniciado na Declaração Conjunta Sino-Portuguesa de 1987, que culminou na transferência da soberania de Macau para a República Popular da China, a 20 de dezembro de 1999, o ex-comissário europeu para a Justiça e Assuntos Internos (1999-2004) destacou uma outra peculiaridade: “a grande concordância entre os órgãos de soberania portugueses”.
Concordância entre presidência e governo que “funcionou sempre sobre Macau”, afirmou, ao recordar que durante o período de negociação com a China, Portugal teve três presidentes (Ramalho Eanes, Mário Soares e Jorge Sampaio) e dois primeiros-ministros de cores políticas diferentes (Cavaco Silva e António Guterres).
Repescou uma palavra cara a Portugal. “Não foi um processo de descolonização no sentido estrito, mas há uma conexão. Era a última colónia portuguesa e quis-se demonstrar que aquele processo de transição era ordenado, seguro, tinha estabilidade, o que não tinha sido sucedido nas colónias africanas”, comparou.
Resistência à interferência do Reino Unido e a preocupação com Hong Kong
O processo de integração de Macau na Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau, pujante e dinâmica região do ponto de vista económico, diferiu do “handover” de Hong Kong, dois anos antes (1 de julho de 1987), terminando 157 anos de governação britânica da antiga colónia.
O ex-diretor-geral da Organização Internacional para as Migrações (OMI) recordou, a propósito, a “interferência do Reino Unido” e aproveitou “a oportunidade para dizer umas coisas sobre Hong Kong que nunca foram ditas”.
“Sofremos algumas tentativas inefetivas por parte de Hong Kong e, naquela altura, do Reino Unido. Convém repor a verdade histórica e dizer que as partes negociadoras, China e Portugal, resistiram a isso”, afirmou ao SAPO24, sem acrescentar mais detalhes em relação à tentativa dos responsáveis britânicos de minarem as boas relações Portugal-China.
A antiga colónia britânica mereceu ainda um alerta. “Não podemos deixar de ver com apreensão o que se passa em Hong Kong. Não podemos deixar de ver com preocupação a afirmação da China num comprimento de onda de potência global, que, apesar de tudo, não tem feito sentir-se em Macau”, referiu Vitorino.
O antigo comissário europeu denota “apreensão com o mundo e também com aquela região onde há tensões”, alertando que “isso afeta a região administrativa de Macau”, disse ainda.
Traumas da descolonização, o bacalhau à Brás e a identidade única
“Macau era importante para nós sobretudo porque a população portuguesa ainda estava traumatizada pela descolonização que tinha sido a possível e quase que se exigia que tudo fizéssemos para que a entrega de Macau fosse feita com rigor, elegância e respeito para aquilo que era a história dos portugueses”, relatou António Ramalho Eanes ao SAPO24 à margem da apresentação do livro “Macau, entre Portugal e a China - 25 testemunhos”.
“O acordo conseguido em conformidade com o princípio 'Um país, dois sistemas', honrou a República Popular da China, respeitou a dignidade de Portugal e salvaguardou os interesses de Macau”, escreveu.
“A forma como decorreram as negociações e o conteúdo do acordo foram um bom exemplo para a comunidade internacional. Foi um bom acordo, que salvaguardou direitos políticos, económicos, religiosos, sociais e laborais dos habitantes de Macau”, testemunhou Aníbal Cavaco Silva, primeiro-ministro entre 1985 e 1995 e presidente da República entre 2006-2015.
Tendo em consideração “a proximidade de uma civilização milenar como a chinesa”, Vasco Rocha Vieira destacou que a “preservação da identidade de Macau” era “talvez o objetivo mais ambicioso” e “estratégico quando se refletia sobre o processo de transição a longo prazo assumindo ações que permitissem no futuro reconhecer em Macau uma marca distintiva construída ao longo de quatro séculos e meio”, acrescentou o último governador de Macau.
Na primeira vez que pisou solo macaense, os olhos de Pedro Pauleta, internacional português, fixaram-se na “arquitetura colonial, as igrejas barrocas e os edifícios administrativos”, autênticos “testemunhos do legado português”, recordou ao recuar à passagem no estágio da seleção nacional de futebol, em 2002, nos preparativos do campeonato do mundo Coreia/Japão.
Uma herança lusa expressa, igualmente, na língua portuguesa que “desempenhou um papel crucial na formação daquilo que constituiu a identidade portuguesa”, relembrou o antigo número 9 das Quinas que cita ainda a influência nacional na culinária macaense que “combina técnicas das cozinhas europeias e asiáticas”, conta. “Pratos como o Bacalhau à Brás, a galinha à portuguesa e tartes de pastéis de nata” são exemplos dessa fusão gastronómica de Macau.
O “ciclone dos Açores” regressou à ilha do jogo, 22 anos depois para um jogo particular e realçou que a influência portuguesa “continua a ser uma parte essencial da identidade do território”, cujo exemplo “simbólico” vive na “preservação do nome das ruas em português e chinês.
O antigo ponta de lança nascido em Ponta Delgada, Açores, aproveitou para lançar um repto: “A preservação da herança portuguesa em Macau não é apenas uma questão de se manter as tradições. Trata-se também de assegurar a identidade única de Macau, forjada ao longo de séculos de intercâmbio cultural, continue a ser uma fonte de orgulho de ambos os países, de tolerância pela diferença e uma verdadeira ponte entre a China e o mundo lusófono.
25 anos após a transferência do território macaense para a administração chinesa, António Vitorino sublinhou, por fim, estar “confiante na preservação da história e património português” na Região Administrativa de Macau.
Um legado luso que está vivo e se respira. Por exemplo, patente na “modernização nas infraestruturas, o aeroporto de Macau, por um lado, “a economia, o jogo, uma força e vulnerável, o BNU ou a pataca como moeda”, por outro.
No domínio cultural e preservação das comunidades de Macau, destacou o “papel da Fundação Oriente, a escola portuguesa de Macau, a arquitetura, a Universidade Macau como polo de cultura na Ásia, o Festival de Música de Macau, a TDM e o jornalismo”, bem como a presença da Igreja Católica, finalizou.
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