Não se fala do ponto preto tatuado na pele, sinal cardeal que dá o norte às radiações que tratam o cancro da mama.
– Se ele tivesse nome, o que é que isso mudaria? – pergunta-me Madalena.
A marca tatuada no gado de Auschwitz, que ficará até ao fim da vida no corpo que pediu salvação. Não importa quem se seja, ou aquilo em que se esteja a transformar. Muito menos o quanto se possa ainda amar e ser amada. Está lá, o ponto que nada diz do tamanho de atrevimentos e contorções futuras.
– Vês? – mostra-me Madalena, afastando um pouco o fato de banho azul, enquanto bebemos a segunda caipirinha num bar do Portinho da Arrábida.
Há cinco anos estava ela sentada no carro, à frente de uma clínica de diagnóstico, com um grande envelope na mão, quando me telefonou. Ainda não nos assusta os quarenta anos, a rapariga quase tão intranquila quanto eu divorciou-se há pouco tempo. Fui com Belém à festa do seu casamento com Francisco, recebemos um ostensivo olhar de reprovação da mãe de Madalena quando levantámos as mãos e cruzámos os dedos à entrada da noiva na igreja, como fazíamos antes de um exame escolar. O Francisco é o neto de sonho para os senhores tios presentes, e não são poucos, enfiados no fraque emulado em naftalina. Aos vinte anos beijava a mão das senhoras mais velhas, bons modos à prova de bala. Devorava história, palácios e gravuras antigas. A primeira vez que almoçou com a futura mulher arrastou-a para a rota de alfarrabistas da Baixa, como sobremesa. O neto ideal não foi contudo o marido ideal. No baptizado de um sobrinho, Madalena encontrou-o sem cuecas e por cima de um dos amigos do jovem pai. Na cama imensa onde estavam depositados os casacos, entre golas de pele.
A irmã de Madalena teve um cancro do mesmo tipo e foi operada de um dia para o outro no privado, a minha amiga fez finca pé em ser tratada no Serviço Nacional de Saúde. Esperou infindáveis meses até que o IPO de Lisboa a chamasse para a cirurgia. Nesse primeiro compasso logo se teceu uma rede à sua volta. Javier, colega seu na Loewe, não a deixava só.
Conhece-lhe as manias e detecta à distância as nuvens mais contraditórias. Tem com ela uma intimidade que o ex-marido
não chegou a estrear. Está uma hora online para lhe encontrar a metade do preço o creme coreano que lhe porá a pele dos pés a brilhar. Entretanto, o namorado de Javier é colocado em espera se ele a vê a derrapar.
Madalena rodeia-se de quem mais a ama e a rede do Sagrado mostra-se. Luísa aparece do nada, entre a recolha de filhos, as missas e os jantares. Nas salas do IPO encontramos motivos para rir e refugiamo-nos na possível normalidade. Para a agradar comentamos ao pormenor as colecções da Loewe e da concorrência. Não damos troco a quem se aproxima na expectativa de desenrolar os lençóis da desgraça. As idas e as vindas da urgência insuficientemente equipada, as recidivas e os exames trocados, os enfermeiros exaustos. Com uma ponta de hostilidade afugentamos as aves e os seus ardis.
Na enfermaria onde Madalena recupera da cirurgia está uma mulher ruiva e muito magra, que ainda não tem trinta
anos. No dia seguinte, encontro um roupão de Madalena em cima da sua cama, e depois disso os seus chocolates e o iPad.
Alexandra não pára quieta, a agitação que a faz percorrer o corredor vezes sem conta, tantas quantas as tatuagens que tem no pescoço, reveladas quando apanha o cabelo, e que levam as enfermeiras a pensar em consumo de droga. Nem a medicina escapa ao preconceito. É hiperactiva, uma rebelde que antes da doença viveu nos cinco cantos do mundo.
Percebo que Madalena vai cuidar dela quando me pede que vá à casa de Graça e desocupe o quarto de hóspedes.
Quinze anos depois Alexandra ainda lá tem as suas roupas, se bem que tenha ido à sua vida e casado com um norte-americano.
A sororidade tem muitos quilómetros de estrada, começa logo na escola, para grande parte das mulheres. Com sorte cresce enquanto os namorados se distraem no futebol e na tecnologia.
As outras reconhecem o cansaço de uma mãe vencida pela falta de sono, a incredulidade de quem digere a violência de uma discussão com o marido. Os indícios de um casamento que desaba não escapam ao olhar desapiedado que só uma cúmplice exercita.
Vamos à cozinha buscar mais pão ou ver o assado e deixamo-nos ficar por lá. À frente de um copo de vinho, olho no olho. Os revezes do trabalho e os filhos que transbordam. As amigas, a igualdade que alimenta, as dores que se pacificam quando se tornam parte de uma história contada com humor.
A liberdade de maldizer a mãe ou o sogro sem parecer ingrata e ignóbil. A compreensão de quem também um dia se consumiu com acusações ferozes de filhos adultos. O território onde é tão possível falar de infidelidade como pedir roupa emprestada, de duvidar em voz alta como combinar boleias da escola.
Intriga-me a razão por que me terá escolhido Madalena, por que razão terá sido para mim o telefonema.
– Porque não terias pena de mim, vês-me ainda como aquela que fez uma pazinha vomitar as cábulas. Raios o partam. Não sou uma doença, não somos um grupo. Sofremos a tal degeneração celular e então?
Não a desdirei jamais, a recusa de se definir na doença é só socialmente reprovável, caso isso interessasse. Que diabo. As cicatrizes são de verdade e tracejadas na sua carne. A maminha sem mamilo, a forma manipulada, contorcida, desigual, amputada no equilíbrio e na sensibilidade. Os ombros desalinhados, a perda de força e de flexibilidade nos braços que é preciso contrariar.
O cabelo pós-tratamentos, arrepiado em pigmento e textura, numa estranha segunda encarnação. E entre esses bónus da excisão, as sobrancelhas escassas, as pestanas de bebé. Tenham provado de tudo isto, ou apenas uma parte, há que agradecer a Deus e à Medicina – estão vivas. Se podem ainda amar é outra questão.
– A senhora é outra, morreu, não percebe? Deixe-se de coisas, pense positivo.
A primeira parte da pergunta subentende-se. A última é repetida vezes sem conta por enfermeiros, e médicos apressados, encharca. Água benta, placebo, manual de auto-ajuda em um minuto, infâmia imposta a quem está tão derrubado que se agarra a qualquer condenação adiada. Nos hospitais são formadas estas seitas de mulheres apavoradas e aparvalhadas com o terrorismo do pensamento positivo, seja lá o que isso for. Inspira livros e conferências. O rol de boas intenções moralizantes que incutem a falsa aceitação e o conformismo. Antes recebêssemos vales para as consultas da Marta Crawford, diz-me Madalena. Alguém que as encoraje a agarrar o desejo e a vida, que as avise que o corpo é imenso e ainda lhes pertence, que o sexo não se fica pela penetração e o orgasmo.
Madalena foi uma das meninas queridas da Irmã Cecília, mais depressa levanta o nariz do que se dá por vencida, tomará
a realidade sem paninhos quentes.
Três meses depois de ter sido operada já regressou à vida habitual, entre lançamentos da Loewe e almoços com influencers.
Acorda-me numa chamada feita às cinco da manhã, atirou-se para a cama com não sei quem e fala sem pausas:
– Done, foi sexo na mesma, tinha uns inacreditáveis sapatos cor de camelo, mas isso é o menos. A lingerie teve o seu
papel, pelo menos para mim. Não imaginas como precisava disto, estou viva, acho.
Brindei à distância, a ela e à parte de mim que teima em abocanhar a vida, pés fincados nas imperfeições e no que estava prometido não falhar mas nos abalroou.
*
Acordo e percebo que esqueci o telemóvel na sala, não sei que horas serão. Por momentos, no quarto ainda escuro, o meu corpo. Toco-me, mão esquerda sobre o pescoço, procuro-me.
Não há barulhos no prédio, estou saciada de sono, não tive insónias, já comia qualquer coisa. Sem precisar de relógio tive a certeza de que já seriam horas de me levantar. O corpo sobrevive ao desmerecimento.
Habitualmente, se não estou doente e dormi bem, acordo na melhor forma da ira que faz ir em frente. Um pico de consciência, guelra oxigenada e clareza que se esbate com a continuação do dia. Levanto o estore e a luz dispara para dentro do meu sistema. «O primeiro dia do resto da minha vida.»
«Um dia inicial inteiro e limpo.» Exponho-me a ele desde que começo a subir o estore, escorro adrenalina e gratidão em proporções variáveis, nos meus passos para o duche.
Na gaveta da mesa de cabeceira guardo um pequeno livro de anjos gordos e irónicos, pintados por Andy Warhol. Às imagens foram acrescentadas citações retiradas do seu diário, fast food pop em capa dura. O livro foi-me dado por Belém.
«Haverá de vir o dia em que toda a gente pense precisamente aquilo que quer pensar.» Não me consigo desfazer dos presentes dela e isso é patético, pelo meio das minhas coisas um frasco de perfume cheio e adulterado pelos anos, na banheira uma vela que já foi laranja, parafinada por ela.
Guardo outros vestígios ainda mais estranhos, como a fotocópia rabiscada da cartilha de João de Deus, que não foi suficiente para me convencer a entrar num programa de alfabetização do colégio. Tínhamos treze anos e só Belém repara no anúncio afixado na secretaria, procurando voluntárias. Milú dá-lhe boleia e ela apresenta-se no colégio deserto e escuro, como nunca o viu. Apenas duas salas iluminadas, onde adultos aprendem a ler, sobretudo empregadas de limpeza das Avenidas Novas. Sem se deixar intimidar, encara a aluna finalista que a recebe, uma morena de mini-saia e botas altas, que não vê outra saída senão a de aceitar o curto reforço da miúda, que por lá vai andar.
Por momentos, na discussão que tivemos no arraial, perdi de vista a Belém que tapava com colónia Johnson Baby o cheiro a lixívia que lhe ficava no cabelo depois das aulas nocturnas (sem nunca termos percebido bem a razão da sua persistência), que viu as notas baixarem porque dormia pouco, sem pensar em desistir da alfabetização.
As palavras azedas não se anunciaram. Depois de passarmos um dia tranquilo de praia, saímos para jantar umas febras na festa popular de São Luís, na aldeia de Santo André. Ricardo tinha preferido ficar em casa. Estávamos combinadas com Rita e Joaquim, que não tinham mãos a medir com o turismo de habitação que abriram no Cercal. À mesa éramos dez pessoas.
Quando o bailarico começou deixámos a mesa, e então vi Belém ser abordada por um homem baixo e muito bebido, estrangeiro. Insiste que ela lhe deve o dinheiro do pagamento da última campanha, diz-lhe que ela não lhe devia ter feito os descontos. Oiço-a responder:
– Uma vez ladrão, sempre ladrão.
O desvario e o ódio no olhar do homem. Vira-nos as costas e afasta-se, em Belém nenhum tremor.
Quando a banda termina de tocar despedimo-nos, as pessoas começam a dispersar. Deixámos o carro longe, fizemos de propósito para caminharmos e darmos a volta pela lagoa.
Olhámos uma para a outra, instintivamente desviamo-nos da multidão, reduzindo a possibilidade de o reencontrarmos. Caminhamos a passo largo e entramos num terreiro deserto.
Estamos já a chegar ao pinhal quando o pensamos ver surgir do nosso lado direito, alguns metros à frente. Não era ele.
– Se o tipo se atrever a chegar ao pé de mim, chamo a polícia. Está ilegal e ainda faz exigências.
– Mas como é que o contrataste?
E bastou. Depois da crítica a discussão acesa em que me acusa de falar de cima, de julgar sem conhecer o mundo real, feito de trabalhadores ingratos e traiçoeiros.
– Sabes? Estou cansada da Vera que anda aos ziguezagues e não sabe o que são responsabilidades nem salários para pagar.
Num ápice salto para fora das palavras e concentro-me nas minhas sandálias, idiotas e deslocadas, sobre o piso irregular.
Passos desacertados e rápidos, em fúria. A infidelidade ao que fomos sendo, a chama que não se deixa ver. Oiço-me a dizer desastrosamente:
– Não te reconheço.
Fazemos o caminho de regresso caladas, sobre um silêncio agudo. Na madrugada seguinte, saí de Santiago ainda ela dormia.
Custódia obrigou-me a uma caneca de café e a uma torrada, que comi a olhar para o saco de fim-de-semana, a meus pés.
*
A irradiante religiosa que ensaiava o coro e cantava Zeca Afonso, tão amada pelas alunas, a freira de olhos azuis que respirava esperança deixou o colégio. A bella donna de pele de porcelana que poderia ser uma estrela de cinema, a ex-aluna do colégio de Braga e mestra do colégio de Lisboa, virou costas.
O Instituto aceitou o seu pedido, julga-se mais útil noutro lugar, os ministérios são vastos.
A Irmã Virgínia candidata-se a um anúncio de ajudante de cozinha na Batista Russo, a grande oficina instalada na rotunda de Cabo Ruivo. Quer estar junto de trabalhadores, fazer parte do dia-a-dia proletário, lutar pelos seus direitos. Com autorização da Madre Superiora inicia um quotidiano duro. Ao empregador, a Sociedade Comercial e industrial de Automóveis Francisco Batista Russo & Irmão, diz ter a quarta classe.
Estranham-lhe as mãos poupadas aos calos e cortes. No refeitório industrial, almoçam os operários que asseguram reparações e manutenção das marcas comercializadas, as alemãs MAN, Diana e BMW.
Na grande cozinha, cedo se começam a sentir altercações. Na primeira vez que o encarregado lhe pede para carregar uma enorme saca de batatas, as colegas disfarçam a perplexidade.
– Não, senhor Júlio, sou ajudante de cozinha. Não sou paga para carregar sacas de batatas. Haverá outras pessoas com essa função, que não sou eu nem o senhor, imagino, mas o senhor lá saberá.
Ao incidente das sacas, segue-se um outro, à entrada do edifício, uma manhã. À espera do mesmo elevador, um grupo
de engenheiros. Quando se abrem as portas do elevador, Virgínia avança, dando o primeiro passo em frente. Terá de se justificar, depois.
– Estava a aguardar o elevador há tanto tempo como os engenheiros. Sou mulher e nem que fosse por boa educação era natural que me dessem a primazia.
Mas o mais determinante desenvolvimento acontecerá no fim do primeiro mês de trabalho. Bate à porta do departamento de pessoal, enganaram-se por certo nas contas, não me pagaram as horas extraordinárias. Por sua insistência, que espanta as colegas, o assunto acaba por ser apresentado a um administrador, que é surpreendido e reconhece a ilegalidade, perante a argumentação suspeita, serena e bem fundamentada.
Ao fim do dia, já no Lar, partilha com as outras irmãs os episódios, radiante. Leva os dias iguais aos de tantas outras mulheres, acorda de madrugada e apanha dois autocarros, numa latinha traz para o lar o jantar com o que sobra na Batista Russo, o que faz sorrir as outras Irmãs.
O fim dos seus dias na empresa dos Olivais está para breve. Ao ajudar os colegas do refeitório que se enervavam por não estarem a conseguir entender os pedidos de uma delegação alemã, denunciou o seu inglês perfeito do British Council.
O encarregado viu aí a sua oportunidade de a despachar para os escritórios, deixando de o acicatar na cozinha. Virgínia não vai aceitar a transferência e é despedida. Irá depois continuar a misturar-se com o operariado, em funções igualmente humildes, numa outra empresa.
Pouco tempo depois, mudar-se-á para a Margem Sul e cruzar-se com a Irmã Maria Manuela, que já lá trabalha, junto do padre Manuel Pereira Crespo. Os três andam na casa dos quarenta anos. Partilham os ideais e a fé, o padre é líder sindical da Lisnave e membro do PRP-BR. As Brigadas Revolucionárias contam, numa fase inicial, com a participação de católicos progressistas, que se afastam depois da organização, desagradados com o apelo à luta armada, que não assusta a activista política, a Gina, como a conhecem os camaradas.
Vivem junto de grupos abandonados e hostis, a missa é feita na escola primária, a igreja matriz foi vendida em hasta
pública e convertida em armazém. Os Filhos da Caridade são animadores dos movimentos operários da Acção Católica (JOC e LOC) e da Pastoral Operária, que juntam o movimento operário à Igreja.
No bairro dos Estaleiros Navais de Lisboa/Lisnave, a maior concentração de operários do país, Virgínia inscreve-se na cooperativa de limpeza. Estará ao lado de quem trava as grandes lutas salariais e de direitos no país. Sabe bem o alcance nacional e partidário de cada avanço.
A agitação social também se aprende e é uma jogada preciosa a favor do proletariado. Virgínia tem fibra, independência e nada a perder.
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