Uma viagem em cima de duas rodas com as mãos bem firmes num guiador e os olhos postos na estrada atentos à diversidade de caminhos e regiões de Portugal.

Pela frente, mais de 1200 quilómetros, zarpando de Lisboa até ao Alto Alentejo, invertendo a marcha pelo Alentejo profundo da margem esquerda do Guadiana, rasgando o Algarve do sotavento ao barlavento até Sagres, ao Cabo São Vicente, e regressando, pelo sudeste algarvio e litoral alentejano, à capital. Ao ponto de partida.

Tudo à média de 5 a 6 horas diárias de rabo sentado, o que dá 20 a 24 horas a conduzir (com direito a alguns minutos de pernas esticadas para descanso), um pouco mais de 300 quilómetros diários e cerca de oitenta horas fora de casa.

A proposta, acompanhada de um road book desenhado para quatro dias de passeio (e descanso) à descoberta de Portugal e de um briefing com normas de segurança, foi atirada para cima da mesa pela Hertz Ride, serviço de aluguer de motos e mototurismo criado pela Hertz Portugal (grupo Hipogest), que está presente em Portugal, Espanha, França Itália, Marrocos e que entrará, em 2019, nos Estados Unidos, Áustria, Eslovénia.

créditos: Miguel Morgado | MadreMedia

Mais que um simples passeio de mota é uma verdadeira submersão nas raízes, história, gastronomia e tradições do país e das suas gentes. Um retrato de lugarejos, aldeias, vilas e cidades acompanhado de um relato de quem vive por cá, ouvindo histórias de gente que ficou para trás. Mas também de quem escolheu o país para viver a meio termo vindo do Brasil na “hora da aposentação” e que, por aqui, decidiu continuar a escrever novos capítulos da sua própria estória; e de quem esteve de passagem, por aqui e por acolá, cantando e cozinhando, cumprindo uma temporada longa numa altura da vida em que o tempo ainda está todo à sua frente.

Prepara-se para um roteiro por terras de mouros e de Ordens Religiosas, por palácios de Reis e Rainhas, para (re)descobrir castelos, testemunhos vivos da história de Portugal, percorrer aldeias históricas e outras que passaram à história (aldeia da Luz). Um percurso olhando de soslaio praças de touros que salpicam a paisagem, pisando caminhos-de-ferro sem comboios, calcorreando estradas nacionais que permitem acelerar por retas infindáveis e caminhos regionais nos quais não cabem dois carros, rasgando curvas e pendulando em contra curvas, deslizando nas planícies e trepando pelas serras, entre copas de árvores, com o mar à vista ou ladeando o maior lago artificial da Europa. Um percurso pelo alcatrão sinalizado nos mapas e curtas incursões em terra batida que só aparece no GPS do Tour Leader, Ricardo Macieira Coelho, um homem dos sete ofícios que acumula milhares de quilómetros de capacete e luvas.

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Por entre terras de Ordens Religiosas e locais de Reis e Rainhas

Ponto de partida: Rua Castilho, em Lisboa. 9h00. Seis motos, divididas entre as BMW R 1200 GS (velozes) e as F 750 GS (poderosas), ambas com duas malas laterais e uma top case. Com tudo programado ao pormenor, por onde ir, comer, abastecer e dormir doravante, a primeira etapa rumou ao norte alentejano, a Portalegre.

O dia começou com uma travessia da ponte 25 de Abril, a 32ª maior ponte suspensa do mundo, construída entre 1962 e 1966, e, poucos quilómetros à frente, a deslumbrante vista de Galapinhos, paraíso na terra e a melhor praia da Europa de 2017, inunda qualquer alma menos sensível. A paz de espírito surge na Serra da Arrábida, ladeando o respetivo convento mandado erigir por D. João de Lencastre no qual viveram monges Franciscanos (1542) até ao ano da extinção das Ordens Religiosas (1834).

Seguiu-se a travessia de ferry, de Setúbal para Troia, sem avistar golfinhos. Sobrevoámos os arrozais da Comporta e cruzámo-nos com as cegonhas em Alcácer do Sal, penetrando o Alentejo até Arraiolos, vila reconhecida pela tapeçaria artesanal portuguesa que data do século XVII e pelo raro castelo de arquitetura circular (1305). O restaurante “Alpendre” serviu de primeiro ponto de confraternização à mesa.


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Alter do Chão (Castelo e Coudelaria), Crato (terra outrora sede da Ordem de Malta e de D. Prior do Crato, com vasto património militar, civil e religioso) e as muralhas do castelo medieval da vila de Marvão, situada no topo da Serra do Sapoio, a uma altitude de 860 metros, atravessam-se no percurso que deambula pela N359 e pelo Parque Natural de São Mamede, antes da chegada Portalegre.

A noite é passada na capital de distrito, cidade outrora rica na indústria têxtil e que alberga a casa museu José Régio. 336 quilómetros percorridos e tempo de alimentar o corpo no restaurante “Sal e Alho”. No Hotel José Régio descansámos o esqueleto.

Segundo dia, segundo trajeto, de Portalegre a Monsaraz (302 quilómetros), com paragem para almoço em Évora (Cozinha da Catarina). Antes, a N246 levou-nos até Elvas, considerada pela UNESCO como Património da Humanidade, a maior cidade fortificada da Europa onde desagua o aqueduto da Amoreira e na qual se destaca o castelo edificado em 1226 por D. Sancho II e o Forte de Nossa Senhora da Graça.

O alcatrão fronteiriço levou-nos até às ruínas do castelo de Juromenha, guardião do Guadiana antes de chegarmos a Vila Viçosa, testemunho vivo da Dinastia de Bragança.

Em Évora, com as motas a descansarem debaixo do Templo de Diana, é tempo de olhar para o GPS. O maior lago artificial da Europa, Alqueva, esperava-nos. Na Amieira as motas quase que flutuam numa linha de terra que separa terra firme do lago.

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A viagem prosseguiu até ao Hotel Rural Horta da Moura, que beija as margens do Alqueva e tem vista para a encosta das muralhas do Castelo de Monsaraz.

Cumprida a parte da gastronomia e vinho alentejano, a contemplação de um céu estrelado como sobremesa eleva-nos a uma dimensão um tanto ou quanto onírica. A paisagem enfeitiça antes de nos atiramos para o vale dos lençóis.

Aldeia da Luz: visita à aldeia nova com vista para a outra que passou à história

Ao amanhecer limpam-se as viseiras dos capacetes. Ricardo Macieira Coelho, o “homem do leme” sempre meticuloso, é experiente nestas lides. Trabalhou num grupo de media ligada ao motociclismo e aos carros (Motopress) onde fez “1300 números” de uma das revistas. A paixão, desde pequeno, por motas, levou-o a ser “assistente de corredores portugueses no Paris-Dakar” e a ter no curriculum “17 Bajas Portalegre”, notou. Hoje opera no turismo de motas.

A contemplação de um olival milenar (a segunda oliveira mais antiga do país com 2450 anos que é acompanhada de uma meia dúzia que tem entre 750 e 1500) abriu o apetite para o que viria a seguir. Estávamos nas “fronteiras” do Alqueva. O tal lago que durante anos a fio tinha a inscrição numa das paredes da barragem “construam-me, porra!” e que hoje, construído, alimenta turismo e agricultura.

Chegada à aldeia da Luz. As casas cheiram a novo ainda, mas quem lá vive, o BI é, claramente, outro. É simplesmente Luz, conforme está escrito no chão da estrada onde termina a aldeia ainda sem história que procura refletir a outra carregada dela, mas cujas origens estão agora e para sempre submersas no imenso lago.

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Depois de uma extensa lista de castelos — Palmela, Arraiolos, Avis, Crato, Flor da Rosa, Alter, Elvas, Juromenha, Évora, Portel, Estrela, Monsaraz —, o da Lousa, não está à vista. Está debaixo de água, conforme escrito num placard fotográfico algo comido pelo sol.

Ali perto, na tal estrada que vai dar ao museu da Aldeia da Luz e a mais lado nenhum, Jacinto da Silva Susano, nascido na “outra” Luz em 1935 (83 anos), vive da reforma e de “duas cabras e mais nada”, atira sentado debaixo de uma sombra de uma oliveira. Trabalhou dos 6 aos 75 anos, começou ao lado do pai “a tratar de porcos e cabras” e terminou “granadeiro em Mourão e nas redondezas”, recorda.

Casado com “Maria Antónia”, pai de “dois rapazes e uma rapariga” lamenta o tal progresso prometido que chegaria com o Alqueva. “Não ajudou nada”. Diz que “ficou pior”. O tal salto qualitativo prometido representou, aos olhos de Jacinto, na “perda de trabalho”, lamenta recordando, com saudade, a agricultura que “já não há” a que se seguiu a fuga “para o estrangeiro”. Toldado pela nostalgia recorda a “água para beber” que era “de borla”, em contrapondo à da rede que “não é a mesma coisa”. A conversa é finalizada com elogios nostálgicos à aldeia submersa. “Era melhor”, finalizou.

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O cenário convida a disparos fotográficos e mais frames para um filme. Seguimos. Cruzámos Praças de Touros à beira da estrada (Póvoa de São Miguel) e caminhos-de-ferro extintos (Pias e Moura), com carris perdidos no tempo escondidos entre a densa vegetação que ficou por cortar. Circulámos por estradas nacionais e outras que nem no mapa estão, mas cujo asfalto limpo e tracejado que pinga de fresco parecer ter sido obra feita para motard passar.

Um banho na primeira localidade a receber luz elétrica: Mina de São Domingos

A paisagem da planície alentejana não se altera. Numa estrada que rasga a povoação de S. Miguel reabastecemo-nos de combustível. Aproveitamos para esticar as pernas, à beira da estrada, num banco a vê-los (carros e motas) passar.

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A Mina de São Domingos, que começou a ser explorada antes dos romanos, industrializou-se em 1854 e foi encerrada em 1966, traz à memória paisagens idílicas que pululam pelo país. Ali chegados à praia fluvial da Tapada Grande, o óbvio acontece. A roupa é pendurada na mota, que por sua vez apara as botas. A praxe do mergulho está cumprida na primeira aldeia do país a receber luz elétrica.

Faz-se tarde e é tempo de almoçar. Passagem por Mértola e paragem, obrigatória, na “Casa dos presuntos” em Cortelha, em plena serra algarvia, provando que, por vezes, o melhor do Algarve está escondido na serra. Pão, azeitonas, queijo e presunto de entrada e tarte de alfarroba com laranja, de saída. Pelo meio, borrego assado.

A Serra do Caldeirão não é um desafio fácil. Em especial de barriga aconchegada. O vira para a esquerda e o inclina para a direita pesam na balança da idade. Percorridos alguns quilómetros na mítica N2, a N114 transportou-nos quase de ponta a ponta do Algarve, desembocando noutra estrada famosa, a 125, antes de rasgarmos, com o sol pela frente, e em passo acelerado, contra o vento pela Via do Infante, até Sagres.

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O brasileiro apaixonado por Portugal e os irmãos alemães que cantam e cozinham

O pôr-do-sol no Cabo São Vicente foi a razão da presa. Àquela ponta de Portugal conflui gente de todo o mundo. Wieland der unglaubliche e Hermann frömming são dois irmãos, 21 e 20 anos, que interromperam as suas vidas na Alemanha para prosseguir outra em Portugal ao sabor do vento, da gastronomia e da música.

Com um hostel ambulante em forma de carinha de cor amarela, começaram pelo Porto, onde viveram dois meses, desceram até Lisboa, cidade que os acolheu por mais dois meses, até aterrarem no Algarve, durante meio ano, tendo regressado à terra natal, em finais de novembro.

Tocam música. Não são originais, são covers de sucessos de todos os tempos, num inglês carregado de pronuncia germânica. Wieland acumulou os trocos que ganhou ali dos turistas com outros amealhados enquanto “cozinheiro em Monchique”, disse.

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Não estavam a fazer nenhum “gap year”, garantiu. “Ainda pensei voltar à faculdade, mas não vou. Logo vejo que vou fazer”, deixou em suspenso, Hermann.

Fim de música. Lua ao alto, inicio do jantar na “Casinha”. É o peixe que mais ordena.

A pausa matinal na Pousada Infante Sagres é aproveitada para dois dedos de conversa com Jair, um dos turistas de duas rodas. Brasileiro de 60 anos, o ar jovem que ostenta poderá ser o resultado de cinco décadas andar de capacete e luvas.

Carioca de nascença, vive no Rio de Janeiro, na Barra da Tijuca. Uma primeira visita, de moto, a Portugal, fê-lo regressar. Uma vez, duas vezes, cada vez mais dias de permanência, até que hoje em dia tem uma casa na Arruda dos Vinhos.

“Vim tantas vezes que decidi ficar. Já estava na idade da aposentação”, atira o empresário que abriu uma empresa em Portugal. Jair é um de muitos brasileiros que têm “fugido” da insegurança brasileira e escolhe Portugal. “Antes vinham a procura de emprego agora trazem os recursos deles e não precisa nada”, exclamou.

270 km das mais belas praias do país

As estradas de terra e pó nas escarpas do Concelho de Vila do Bispo servem para “oxigenar” forças depois da mais longa etapa percorrida: 346 quilómetros.

Sente-se o cheiro a maresia. Respira-se ar puro e consome-se energia para a mais curta ligação deste roteiro turístico. É tempo de regressar a casa.

Faltam 270 quilómetros, um trajeto feito pela Costa Vicentina e pelo Parque Natural do Sudoeste Alentejano e com duração marcada de 3 horas e 32 minutos de rabo a trepidar.

Como não poderia deixar de ser, avistamos mais um castelo: Aljezur, a última conquista aos mouros.

A subida até Lisboa (N120) é rápida e tem como vizinhança algumas das mais belas praias portuguesas. Ponta Ruiva, Cordoama, Amado, Carrapateira, Bordeira, Vale Figueiras, Arrifana, Monte Clérico, Carriagem, Vale dos Homens, Amália, Carvalhal, Zambujeira, Vila Nova de Mil Fontes, Malhão, Aivados, Ilha do Pessegueiro até chegar a Porto Covo e São Torpes, à hora do almoço, à praia do Morgavel e ao restaurante “Bom Petisco”.

Última pausa. Um pouco mais à frente o asfalto nacional gratuito é trocado pelo alcatrão pago e, tal como tinha começado, o rio Sado volta a ser navegado de ferry. Lisboa está a uma hora de distância. Golfinhos, nem vê-los.

A entrada na Rua Castilho, na capital, aconteceu às primeiras horas da noite. Foi o fim de três noites e quatro dias de mota pelos caminhos de Portugal. Uma viagem no tempo e pela história.

* O jornalista viajou a convite da Hertz Ride