Na semana passada arranhei a ideia do desligamento artístico nos critérios dos Academy Awards. Já no que toca ao impacto comercial destes prémios, existem repercussões artísticas. Até nas Artes, e até no cinema quando é Arte, o dinheiro continua a fazer girar o mundo – não o afirmo por cinismo básico; basta ver alguns cineastas ditos independentes, mesmo os nossos, e o assunto “dinheiro” ou “financiamentos” é-lhes publicamente mais citado do que discursos artísticos. Não os censuro.
Embora me queira focar pouco na máquina capitalista - que tem no cinema de massas um dos seus braços armados (mesmo em filmes que tentam dar sermões anti-capitalistas) - ela será sempre uma sombra visível. Interessam-me agora, sobretudo, algumas breves leituras sociais e políticas que se podem fazer dos Oscar: como é que eles reflectem o presente, como é que o presente os reflecte; como é que se influenciam mutuamente. No final, talvez isto sirva de guia para quem quiser apostar nos prémios do próximo ano.
Antes de Trump ser o fantasma e o saco de boxe da última cerimónia, em 2016 foram os Oscar a própria polémica que ensombrou os Oscar. É importante recuperar a controvérsia do ano passado, até para não encerrar já em Trump todas as leituras que podemos fazer dos prémios, piadas e discursos de aceitação.
Em 2016, Jada-Pinkett Smith foi a primeira a anunciar o boicote aos Oscar, por não estarem nomeados quaisquer actores negros nas categorias de representação. A esse protesto juntaram-se algumas personalidades afro-americanas do cinema e, nas redes sociais, a discussão granjeou inúmeras mensagens de reclamação pontuadas com a hashtag “#OscarsTooWhite”. Pela questão histórica, eu próprio fiquei sensibilizado e intrigado com o protesto, e o microscópico Social Justice Warrior que há em mim tende a não desconfiar quando pessoas de determinados tons de pele, historicamente desfavorecidas e descriminadas, clamam alertas de descriminação.
Mas, e se não tiver sido discriminação? E se, pura e simplesmente, actores brancos tivessem tido melhores desempenhos aos olhos da Academia em 2016? Pondo-se em causa a justiça das nomeações brancas, não instituirá isto a suspeita sobre futuras nomeações não-brancas, como um emendar de mão forçado, ou uma qualquer quota de paridade? Que rombo é que isso faria na luta pela igualdade, ao permitir que se grite que vem lá o lobo, mesmo que não se tenha a certeza se é só um caniche branco? São questões mediáticas, não vão ser facilmente esquecidas; então que precedente será esse, se o acossamento for infundamentado?
Não havendo como provar motivações, já assumi a tendência que nos põe do lado dos que têm sido desfavorecidos pela História. Mas, neste caso, há argumentos de contra-peso que dão que pensar. Logo a começar, Jada Pinkett-Smith parecia carregar as dores duma comunidade inteira, mas é impossível ignorar que levava as dores do marido, Will Smith - não nomeado apesar dos elogios à sua actuação no filme “A Força da Verdade”. Nos nomeados, qualquer um dos actores teve um papel classicamente premiável pela Academia, tornando-se mais fácil provar a exclusão de Will Smith por motivos “artísticos” do que étnicos. O que espoletou a revolta de Pinkett-Smith pode ser mais daltónico do que nos fizeram crer.
Outro argumento que atenua as acusações é o puramente estatístico (dados do The Economist): desde 2000, cerca de 10% das pessoas nomeadas para a estatueta de melhores actor e actriz eram negras. Se considerarmos que menos de 13% dos americanos são negros, não se pode propriamente falar em discriminação. E, se soubermos que apenas 9% dos papéis principais são dados a actores afro-americanos, a única conclusão matemática é que a Academia até tem privilegiado esta minoria. O mesmo não se passa com outras minorias estadounidenses, que parecem ter ficado um bocado à margem da protecção dos arautos #OscarsSoWhite. A própria presidente da Academia, Cheryl Boone Isaacs, juntou-se ao coro de críticas contra o domínio branco das nomeações, mesmo que Cheryl - afro-americana e uma das mulheres mais poderosas de Hollywood – possa constituir-se prova viva de que a Academia, afinal, não deve ser assim tão racista.
O caso mudou radicalmente de figura para este ano: 6 actores negros nomeados, para não falar nas inúmeras nomeações de afro-americanos em categorias não técnicas, algumas das quais de grande importância. É legítimo pensar que se trata duma compensação para apaziguar os protestos do ano passado? É. Até é legítimo afirmá-lo, mas não deixa de ser uma desonestidade tremenda. Podemos afirmar, mas não podemos saber, ponto. Nesta América tensa com as questões raciais (detesto o termo, mas parece ser o mais corriqueiro), sobretudo numa era Trump, não creio que haja um passo em frente que não seja em falso.
A luta pela igualdade assentada em suspeitas que não se conseguem provar, ou que são questionáveis, pode abrir uma brecha em argumentos históricos intocáveis. E, independentemente do tom de pele, quando uma comunidade de privilegiados faz denúncias passíveis de confundirem-se como amuos, a causa que defendem pode parecer a causa que usam para se defender. Pinkett-Smith, Spike Lee ou Cheryl Boone Isaacs são uma minoria étnica, mas também são uma minoria de privilegiados. O privilégio gerará sempre antipatias e, nesta temática da igualdade, arrisca-se a oferecer pedras redondinhas para as fisgas de mentecaptos que não desejam igualdade.
Da mesma forma, uma leitura das nomeações deste ano como mera errata do ano passado, embora admissível, dificilmente será pedagógica. Pode resvalar para uma discussão que rasga feridas em vez de suturá-las. Preso por ter cão, preso por não ter, preso por caçar com um gato. O que é que pode afinal libertar-nos das más discussões? Fácil: um mal maior. E no contexto da indústria cinematográfica, onde é que se arranja um mal maior? Fácil: cria-se um vilão caricatural, produto inequívoco de ficção hollywoodesca. E onde é que a América vai buscar um vilão tão inusitado? Fácil: à Casa Branca.
Nos nomeados para melhor filme deste ano contam-se 3 com histórias de afro-americanos a tentar viver sob o peso da discriminação. Podia roubar-se-lhes o mérito da nomeação, exactamente com o argumento de que só lá estão para compensar a bronca do ano passado, mas felizmente há um presidente inenarrável que suga maus protagonismos, que puxa para si as más conversas. Qualquer tensão social, perante um presidente xenófobo e prepotente, será observada no contexto dele. Na lista de nomeados ainda há um filme de ficção científica cheio de avisos para o poderio nuclear, ou um western moderno de denúncia ao Capitalismo, ou ainda um filme de guerra com mensagem pacifista – três géneros clássicos das instituições narrativas americanas, aqui a poderem servir de vergasta à grande instituição política americana: a sua presidência.
Na cerimónia dos Oscar deste ano, uma larga parte das piadas e dos discursos foram contra Donald Trump (que, por muito que adore ser falado, detesta ser criticado). Mas não só o que se disse remontou a Trump. O próprio engano embaraçoso final foi usado como alegoria para a vitória de Donald nas presidenciais (Hillary a ser “La La Land”, com a vitória a escapar-lhe num golpe de teatro). Para além disso, por tudo o que aqui escrevi e, sobretudo, por Trump, estou em crer que no próximo ano teremos nos Oscar muitos nomeados mexicanos, ou temáticas sobre emigração a concorrer a melhores filmes, ou mais discursos de cidadãos de países interditados.
Tudo em torno de Donald, como ele gosta. Mas tudo a pôr Donald num torno. O pior deste trumpocentrismo é a legitimação do ego do “homem mais poderoso do Mundo”, mas coisas boas também virão. Surgirá uma cultura activa a desmarca-se de pessoas como Trump, a gerar paradigmas de prevenção contra novos vilões oxigenados. O entretenimento, e o entretenimento premiado, farão parte da força de bloqueio a uma presidência de muros e achaques. Mas, cuidadinho com os nossos falsos acossamentos, ou com os nossos maquiavelismos desonestos – há demasiadas coisas criticáveis na presidência de Trump (e ainda só vamos no início) para que precisemos de imputar-lhe o que seja além disso. A desonestidade do lado certo é combustível para o lado errado.
Isto contém spoilers: na novela gráfica “Watchmen” de Alan Moore e Dave Gibbons, é elaborado um plano onde se cria o mais grotesco dos monstros para dizimar a população de Nova Iorque. O intuito disto era a salvação da Humanidade que, consternada com o que acontecera em Nova Iorque, esqueceria as suas diferenças e abandonaria uma guerra nuclear prestes a acontecer. Trump não é um monstro inventado, mas se as consequências da sua governação servirem de purga para algumas maldades do mundo, aproveitemos. Já. Não depois de cidades dizimadas.
O genial livro "Watchmen" tornou-se num filme mediano de super-heróis em 2009. Teve alguma aclamação da crítica, mas zero nomeações nos Oscar. #OscarTooNormal. Tudo igual no ano seguinte.
SÍTIOS CERTOS, LÚGARES CERTOS E O RESTO
Apenas uma recomendação, mas que vale por 60 anos. Seria injusto emparelhá-la com outras. O arquivo que a RTP disponibilizou esta semana é uma das melhores coisas que chegou à Internet portuguesa na última década.
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