Também todos nos lembramos da tentativa de golpe de estado, transmitida em direto, na noite de 16 de julho, com a consequência de 265 mortos e uma purga que segue incessante com números que parecem incríveis: 20 mil militares, incluindo um terço dos generais; 3600 juízes e magistrados; 68 mil professores, dos quais 6300 das universidades, 20 mil médicos. Todos despedidos, com mais uma centena de milhar de funcionários com funções diversas, por suspeita de ligação aos golpistas. A perseguição aos jornalistas é tremenda, nenhum outro país tem tantos profissionais das notícias presos.
A Turquia de Erdogan é um caso de estudo que merece atenção constante. Falamos de um grande país, um gigante na fronteira entre dois mundos. De um lado está Istambul, laica, secular, cosmopolita, sempre a olhar para a Europa. Do outro, Ancara, a capital, voltada para o universo muçulmano que a envolve. A Turquia é um ponto de equilíbrio (ou desequilíbrio) entre Oeste e Este, entre a Europa e os países a arder na bacia sul do Mediterrâneo. A Turquia faz fronteira a sul com a Síria e o Iraque em guerra.
Erdogan irrompeu como o sultão de um projecto neo-otomano. Pretendeu devolver à Turquia a sua grandeza antiga. Conseguiu ao longo de uma década extraordinários resultados económicos: pôs a economia a crescer em média 5% por ano. Acima de 7% em cada um dos primeiros três anos após a chegada ao poder em 2003. Foi um crescimento suportado pela siderurgia, pela mineração, pela petroquímica, pela refinação de petróleo, pelo têxtil, pela electrónica e pela construção, do imobiliário a pontes e auto-estradas. O turismo também conta mas está longe de ser pilar principal. Este crescimento da economia levou a que as classes baixas e a nova classe média tenham visto o seu nível de vida duplicar neste período. É esse o povo que em julho saiu à rua a defender Erdogan, até mesmo frente aos canhões da tropa. É o povo que lhe deu o triunfo em todas as eleições desde 2003. Em 2015, porém, a vitória não chegou à maioria necessária para mudar a constituição e instaurar o regime presidencial. Então, o crescimento económico começava a falhar. A construção tinha começado a retirar os andaimes, que caíram a pique. O investimento estrangeiro também desabou. Veio a cair à volta de 50% no primeiro semestre de 2016 e tornou-se quase insignificante depois da intentona de julho. As empresas estrangeiras queixam-se da politização dos organismos reguladores, da falta de segurança jurídica e do desrespeito da ética.
A Turquia que Erdogan quis refundar, depois de uma dúzia de anos triunfantes, confronta-se com a crise e a ameaça de desastre. Erdogan, com tentação hegemónica, escolheu abrir demasiadas guerras: rejeitou a oportunidade para algum compromisso com os curdos, e está numa guerra complexa com eles; empenhou-se para acabar com o regime de Assad na vizinha Síria, para isso chegou a favorecer o terrorismo das milícias do “estado islâmico” através do tráfico de armas, petróleo financiamento e treino; também abriu guerra política com um rival, o pregador Fethullah Gullen, agora a viver em Filadélfia de onde dirige uma rede de escolas, bancos e jornais, antigo aliado que Erdogan elegeu como inimigo a quem acusa de liderar uma confraria secreta para tomada do poder na Turquia. Erdogan cultiva a polarização, pôs o país laico em choque com o islâmico, a diversidade cosmopolita acossada pelo fundamentalismo muçulmano. É um líder que vai em frente, mesmo que não se saiba para onde – e até há quem compare esta falta de estratégia com o que levou Hitler ao desastre.
Erdogan afastou-se dos aliados tradicionais na esfera da NATO, os EUA e a União Europeia. Distanciou-se de Washington pela recusa americana de extradição de Gullen e pelo apoio do Pentágono aos curdos da Síria. Virou-se de lado para a Europa por esta ter colocado a Turquia numa indefinida lista de espera para eventual adesão ao agora tão fragilizado clube comunitário (a França no tempo de Sarkozy impôs que a Turquia ficasse de fora mesmo na época em que a Europa preferiu sucessivos alargamentos ao necessário aprofundamento interno). O líder turco voltou-se para leste, e encontrou em Putin um aliado de ocasião, com quem fez um apressado acordo sobre a Síria. O preço é manter Assad no poder, ou seja uma reviravolta de 180 graus na posição de Erdogan.
A Turquia não é hoje um estado de Direito. É uma democracia fictícia, um país gigante mas em estado frágil, apesar de blindado e repressivo, com liberdades suspensas. Os atentados sangrentos sucedem-se, com os aspirantes ao martírio a chegarem facilmente às margens do Bósforo. A Turquia de Erdogan é um país em estado de emergência, e sem remédio à vista. O campo está minado nos confins da Europa.
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